Um em cada três membros do Governo é formado em Direito. Isso é bom, mau ou indiferente?

Se olharmos para a mesa do Conselho de Ministros, o número sobe: mais de metade saiu das faculdades de Direito. São 10 em 18. Esta é uma tendência histórica que também se estende ao Parlamento. A Renascença foi tentar perceber as causas e consequências de sermos governados por juristas e advogados.

07 mai, 2024 - 06:30 • João Carlos Malta (texto) , Diogo Camilo (dados) , Salomé Esteves (infografias)



Tomada de posse do XXIV Governo Constitucional liderado por Luís Montenegro. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa
Tomada de posse do XXIV Governo Constitucional liderado por Luís Montenegro. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

Dos 59 membros do Governo, entre ministros e secretários de Estado, 21 são formados em Direito. Ou seja, um em cada três é advogado ou jurista. Uma percentagem que sobe e é superior a 50% quando olhamos apenas para o Conselho de Ministros. Em relação aos estabelecimentos de Ensino Superior, a Universidade Católica é a mais representada entre os ministros do Governo liderado por Luís Montenegro, também ele formado naquela instituição.

O historiador e comentador político José Pacheco Pereira defende que a “dominância de duas profissões, as ligadas ao Direito, como juristas, advogados e juízes, e os médicos são sempre um sintoma do atraso e da fragilidade das democracias”.

Segundo Pacheco Pereira, é um fenómeno “estudado em detalhe para a América Latina”, mas que “também se aplica obviamente a Portugal”. Argumenta que uma proporção tão grande de uma classe socioprofissional “afunila muito o tipo de experiência e o tipo de conhecimento que os governantes, independentemente dos partidos e independentemente dos momentos históricos, têm sobre a realidade”.


“É suposto que a governação implique por parte de quem é eleito no plano político diferentes experiências, diferentes modos de vida e profissões. E isso é que traz riqueza a um Governo e a qualquer outro órgão [de poder]”, reforça.

Engenharia segue Direito ao longe

Segundo os dados coligidos pela Renascença, a seguir ao Direito é a Engenharia a área do saber mais representada, com 10 membros no Governo. O pódio fecha com Economia, com nove titulares.

Esta tendência é algo que tem um lastro histórico grande, como o jornal Público noticiou no início deste mês, mal foram conhecidos os nomes dos ministros do executivo da AD. Segundo aquele jornal, um em cada três ministros, nos últimos 50 anos, foram formados em Direito.

Para Nuno Garoupa, presidente da European Association of Law & Economics e professor de Direito na Universidade George Mason, nos Estados Unidos, há duas causas que explicam esta situação.


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"A dominância de duas profissões, as ligadas ao direito como juristas, advogados e juízes e os médicos são sempre um sintoma do atraso e da fragilidade das democracias", Pacheco Pereira, historiador e comentador político.

“Primeiro, o facto de Portugal ter um Estado burocrático, omnipresente que, até certo ponto, continua a ser autocrático, apesar de não autoritário nos últimos 50 anos”, começa por dizer.

Por que há menos cientistas?

O professor de Direito diz ainda que “há uma excessiva obsessão com as leis e com aquilo que é legislar, e isso leva, obviamente, com que haja necessidades de juristas de forma desproporcional no mundo político”.

E parte daqui para a comparação com os cientistas que Nuno Garoupa afirma estarem em número reduzido na política. Isso acontece, segundo este especialista, porque a “carreira política, o exercício de cargos políticos, não traz nenhuma vantagem pessoal a um cientista, pelo contrário, prejudica a sua carreira”.

“Isso não é verdade para os juristas, porque estes vivem num mundo de leis em que eles próprios as fazem pelo Estado, fazem negócios com o Estado, têm inter-relações com o Estado, isto para não falar do lobby. E obviamente que traz vantagens para os juristas, portanto, é normal que haja muito mais juristas do que cientistas envolvidos na vida pública”, concretiza.


Em conclusão, o académico pensa que os juristas escolhem mais a política devido a “futuras possibilidades de carreira depois da passagem por cargos públicos”.

Já segundo o vice-presidente da associação Frente Cívica, João Paulo Batalha, a prevalência de pessoas formadas em Direito neste Governo e em anteriores, mas também no Parlamento, “é uma distorção da representação dos portugueses, porque obviamente ainda não temos uma percentagem tão grande de portugueses formados em Direito”.

Defende, por isso, a necessidade de à mesa do Conselho de Ministros haver mais visões do mundo, e “a cabeça organizada de outra forma além das que saem das faculdades de Direito”. “O resultado final do trabalho político sai prejudicado porque tudo se resume à regulação, à legislação e à produção de normas. Governar com qualidade é muito mais do que isso”, lembra.

Acrescenta que quando há este peso de juristas e advogados em locais de poder “estamos a criar incentivos perversos em torno da advocacia e do exercício do poder”.


José Pacheco Pereira diz que o excesso de juristas no Governo"um sintoma do atraso e da fragilidade das democracias". Foto: Mário Cruz/Lusa
José Pacheco Pereira diz que o excesso de juristas no Governo"um sintoma do atraso e da fragilidade das democracias". Foto: Mário Cruz/Lusa

João Paulo Batalha esclarece, no entanto, que “há uma parte desta predileção por juristas que se percebe”, porque há uma parte considerável do trabalho do Governo e da Assembleia da República que tem a ver com a produção de leis.

Mas o fenómeno também se explica, considera, “com os mecanismos de recrutamento dos partidos e de como se fazem as carreiras políticas, sobretudo das pessoas que têm carreiras partidárias”. “Quando começam a estudar também já vão para Direito porque é um curso natural para recrutar pessoas para a política. Portanto, é um fenómeno que se alimenta a si próprio”, sublinha.

Falta de capacidade de decisão

A mesma ideia é defendida por Pacheco Pereira, que fala de um sistema partidário “muito elitista”. É sinal, segundo o historiador, de carreiras políticas que se reforçam dentro dos aparelhos partidários sem ligação à sociedade civil.


O bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando de Almeida Santos, não pondo em causa o processo de seleção dos governantes, teme que o resultado final seja o de “algum desvirtuamento das necessidades”. Diz que ao longo do exercício das funções que desempenha se deparou com “alguns governantes” “sempre com muito boa vontade de querer pôr as coisas a andar no país”, mas que “depois a capacidade de execução, de implementação e até de decisão fica aquém daquilo que seria desejável”.

Fernando de Almeida Santos bate muitas vezes na tecla da falta de capacidade de decisão dos políticos como causa primordial para alguns dos atrasos estruturais em Portugal e relaciona isso com a falta de escolha de técnicos para os lugares governativos. “Não é puxar a brasa à nossa sardinha, mas é mais fácil para um engenheiro ser analista de competitividade do que para um jurista, sem prejuízo de haver excelentes juristas e pessoas de direito em Portugal”, resume.

Consequência e não a causa

Há quem defenda que a desproporção de juristas em lugares governativos não é causa, mas sim uma consequência da “burocracia” e da “obsessão em legislar” em Portugal. “Seria corrigida se tivéssemos menos Estado omnipresente na sociedade e na economia”.


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"Portugal tem um Estado burocrático, omnipresente que até certo ponto continua a ser autocrático, apesar de não autoritário nos últimos 50 anos", Nuno Garoupa, professor de Direito.

A economista Susana Peralta olha para este assunto com interesse apesar de alertar que gostava de saber como é que esta distribuição socioprofissional ocorre noutros países. No entanto, pensa que a predominância de uma só área de formação pode levar “a pensar numa certa captura do aparelho da tomada de decisões por uma classe profissional da qual sabemos que há um problema de conflitos de interesse e portas giratórias”.

Sobre esta matéria, diz que uma das consequências mais visíveis desta predominância de juristas e advogados em cargos de decisão é a contratação pública de serviços de advocacia.

“Vemos que os escritórios de advogados fazem parte de um grupo com o qual há muita contratação pública. Isso leva a que se questione se esta predominância tem ou não a ver com pessoas que vão gerar negócio para as suas empresas de origem. E esse negócio pode ser com atraso no tempo, não tem de ser contemporâneo”, acusa.


Nuno Garoupa afirma que "há uma excessiva obsessão com as leis". Foto arquivo: Joana Bourgard/RR
Nuno Garoupa afirma que "há uma excessiva obsessão com as leis". Foto arquivo: Joana Bourgard/RR

Em relação a este tema, Garoupa diz que se o Estado não fizesse 'outsourcing' jurídico “colapsava” porque “está baseado naquilo que é o Diário da República, que tem milhares de páginas, todos os dias, com milhares de portarias, milhares de decretos de leis e milhares de leis”. “Ninguém sabe fazer um Estado diferente em Portugal”, resume o professor de Direito.

Legislar para depois resolver o contencioso

Já o bastonário dos Engenheiros aponta para uma outra consequência deste desequilíbrio, o “excesso de legislação em Portugal”. “Muitas vezes, isso acontece sem critérios objetivos, o que provoca facilmente litigância, dúvidas na análise dos processos, cria ambiguidades”, explica.

Fernando Almeida dos Santos dá o exemplo do Código dos Contratos Públicos, “feito naturalmente por juristas com muito pouca intervenção técnica”. “Os técnicos não são chamados”, critica.

O bastonário dos Engenheiros diz que é um fator que não favorece a “competitividade” e prejudica o país. Mas há quem ganhe, diz este responsável. “Beneficia depois a profissão de Direito, ou seja, são necessários para litigar ou para ajudar a litigar as partes, mas do ponto de vista técnico, do ponto de vista do desenvolvimento das coisas, elas estagnam”.


João Paulo Batalha concorda que este é um fator com efeito na qualidade das instituições “que aplicam ou não aplicam as leis” e criam “défices de gestão enormes na política e na administração pública”. Por causa disso, Batalha, diz que os partidos, não só no momento, em que são chamados a escolher o governo, mas também quando estão a formar e a recrutar quadros para as suas listas, “deviam ter o cuidado de ir à procura noutros sítios que não nas faculdades de Direito e pior ainda, muitas vezes, nas faculdades de Direito do costume”.

Pacheco Pereira alerta para o aparecimento de uma série de universidades privadas e de cursos “que não têm reconhecimento ou sequer grande qualidade”. A isso soma “a oligarquização dos partidos políticos que depois tem reflexo na vida governativa”. “Não tem nenhum sentido que mesmo em áreas mais especializadas, como por exemplo Economia e as Finanças, muitas das pessoas partam apenas de uma experiência de carácter jurídico”.

Inversão do Direito

Numa outra dimensão, o vice-presidente da Frente Cívica considera que nos aspetos que lidam com a “grande corrupção ou captura do Estado, o Direito em Portugal, mas não só em Portugal, transformou-se numa forma não de puni-las, mas de branqueá-las”.

“O poder estrutura-se em torno do Direito para legitimar a violação do interesse público”, frisa.

Nuno Garoupa não está muito convencido de que este problema tenha uma solução. Como não o vê como causa, mas como consequência, tem dificuldade em imaginar que “possa ser alterada sem mudanças muito profundas no Estado, que são mudanças culturais e mesmo antropológicas”. “Não vejo que ninguém tenha qualquer interesse em fazê-las neste momento em Portugal”, acrescenta.


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"Há alguma falta de capacidade técnica em governos sem decisores com capacidade técnica", Fernando Almeida dos Santos, Bastonário da Ordem dos Engenheiros.

Numa viagem ao passado do país, Pacheco Pereira, lembra que “deixou de haver uma representação de muitas profissões” desde o 25 de Abril. “Em muitas estruturas partidárias, mesmo até no Partido Socialista ou no Partido Social Democrata, e noutros partidos, havia gente com profissões como carpinteiros, operários, metalúrgicos, professores do ensino secundário”.

Segundo historiador, eram pessoas com uma experiência de trabalho na Administração Pública e “isso implicava uma maior riqueza de funcionamento da democracia”. “Pouco a pouco criou-se um mecanismo de fechamento que tem a ver com o fechamento dos partidos em relação à sociedade”.

Quotas?

Sobre como resolver esta questão, João Paulo Batalha lembra que nas quotas de género “mesmo que pareçam contraintuitivas, resultaram”. O mesmo recorda que estas trouxeram outras pessoas para a política e “equilibraram melhor a sociedade, formando quadros de grande qualidade”.


Considera também que era importante encontrar mecanismos que controlassem o peso excessivo do Direito e das profissões jurídicas. Mas reconhece que há riscos: “Termos de começar a gerir muitas quotas ao mesmo tempo, mulheres, áreas profissionais, torna mais difícil de fazer listas e organizar candidaturas.”

Pacheco Pereira discorda. Não é favorável aos mecanismos de quotas. Prefere que haja alterações a lei eleitoral que retire aos partidos a hegemonia dos eleitos. “Ganha-se uma eleição pela posição que se tem na lista dos partidos, independentemente da qualidade e influência social que se tem”, critica.

Refere que houve uma altura em Portugal em que havia consenso sobre a criação de um sistema misto, com um círculo nacional e outros círculos uninominais, que desapareceu.

“Os partidos não querem perder o controlo sobre quem escolhem para deputados e isso retira poder a quem vota para dizer este é melhor do que aquele. Isso podia implicar uma maior diversidade de experiência, de profissões, e de visões do mundo”, remata o historiador.


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