José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​O tempo da Igreja

14 mai, 2025 • Opinião de José Miguel Sardica


O tempo dos Papas é expressão do tempo da Igreja - e este transcende a fugacidade dos momentos, reenviando cada tempo para a longuíssima temporalidade de dois mil anos.

Durante dezoito dias, o período que mediou entre a morte do Papa Francisco e a eleição do Cardeal Robert Francis Prevost para a cadeira de Pedro, todos os católicos do mundo, e o mundo ele mesmo, na voragem dos media, suspenderam a respiração, colocaram os olhos e os ouvidos em Roma e… esperaram. Ao fim da tarde de 8 de maio, o fumo branco da chaminé da Capela Sistina revelou enfim que estava eleito o 267.º Pontífice da longa história do papado romano. Uma hora volvida, na varanda central da Basílica de São Pedro, Leão XIV passou instantaneamente de desconhecido das multidões a referência humanista, moral e ética global, numa transmutação e transubstanciação que só um Cardeal renascido como Papa pode realizar, seduzindo os 150 mil crentes e curiosos que estavam na Praça de São Pedro, “abraçados” pela Colunata de Berrini, e os biliões que televisionaram o momento.

Aos 69 anos, Robert Prevost é um católico de biografia riquíssima. Nasceu norte-americano, com ascendência franco-italiana pelo lado do pai e espanhola pelo lado da mãe. Viveu vinte anos no Peru, onde se latinizou com dupla nacionalidade. É formado em Matemática, mestre em Teologia e doutor em Direito Canónico. Conhece tão bem Roma e a Cúria como os mundos do mundo. Por ser agostiniano, está muito predisposto ao encontro, ao diálogo, à escuta, e a um permanente espírito missionário que continuará o legado de Francisco de uma Igreja “em saída”, ecuménica, acolhedora dos mais humildes, com uma agenda de humanismo que procurará unir os dois hemisférios, Norte e Sul. E por ter escolhido chamar-se Leão XIV, Prevost assumiu as heranças de dois papas históricos: Leão I, ou São Leão Magno, do século V, que lutou pela autonomia do bispo de Roma perante os poderes imperiais e recentrou a mensagem da Igreja na humanidade de Cristo; e Leão XIII, do século XIX, o Pontífice fundador da moderna Doutrina Social da Igreja, ou seja, do reposicionamento de Roma, expropriada do seu poder político pela unificação italiana, como voz audível na defesa da dignidade da pessoa humana, do seu trabalho e valor, em sociedades em profunda mudança pela industrialização, a urbanização, a massificação e os -ismos políticos emergentes (socialismo, marxismo ou anarquismo).

Tal como Leão XIII (1878-1903), também Leão XIV poderá ter um longo pontificado, de quinze, vinte ou mais anos. Diz quem o conhece, e falam a sua vida e obra, que é um moderado, um conciliador, que combinará a unidade intemporal da doutrina, sem excessiva uniformidade, com a diversidade dos desafios sociais, éticos, económicos ou ambientais. A primeira impressão foi muito favorável: aparato ritual e discurso bem pensado, emoção genuína, mas contida, mensagem tão simples quanto abrangente na agenda imediata - a paz “desarmada e desarmante”, a “luz de Deus” como “ponte para a humanidade”, o caminho “missionário” com “todos”, de sinodalidade e comunidade fraternal, a essencial unidade de todos os cristãos diante de Deus e de Maria, a quem orou, em coro com todos os orantes. O menos americano de todos os cardeais norte-americanos poderá ser um diplomata suave da palavra e do exemplo num mundo de populistas, ditadores, polarizações e guerras. Só o futuro o dirá. Mas o tempo dos Papas é expressão do tempo da Igreja - e este transcende a fugacidade dos momentos, reenviando cada tempo para a longuíssima temporalidade de dois mil anos. Foi por isso que nesta soalheira tarde de maio de 2025, as primeiríssimas palavras de Leão XIV foram as que Jesus ressuscitado dirigiu aos apóstolos numa qualquer tarde de 33 d.C.: «A Paz esteja com todos». Porque sem essa Paz, fundamento trans temporal do cristianismo, nenhuma outra, das que os media freneticamente falam, será possível.

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