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Todas as semanas, uma entrevista para ajudar a entender as opções de política económica e o caminho que as empresas vão abrindo na conquista de mercados, nacionais e internacionais. Um olhar para os pequenos e grandes negócios numa conversa conduzida pelos jornalistas Arsénio Reis e Sandra Afonso. Para ouvir aos sábados ao meio-dia.
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Hospitais privados queixam-se de falta de médicos

22 mar, 2025 • Sandra Afonso , Arsénio Reis


Já não é só um problema do Serviço Nacional de Saúde, no privado também faltam médicos, diz o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, em entrevista ao programa Dúvidas Públicas. Óscar Gaspar critica ainda alterações pontuais nas remunerações de médicos e enfermeiros. Na gestão, garante que há privados interessados em parcerias público-privadas em hospitais e centros de saúde e que esta matéria não deve ser usada em disputas partidárias. Reconhece ainda que o SNS está a trabalhar mais, mas ainda precisa dos privados para diminuir as listas de espera.

Dúvidas Públicas com Oscar Gaspar
Dúvidas Públicas com Oscar Gaspar

Na semana em que apresentou os números de 2024 da hospitalização privada em Portugal, o presidente da Associação deixou o alerta na Renascença: “temos problemas graves de falta de médicos, público e privado”. Segundo Óscar Gaspar, este problema já se arrasta, pelo menos, há 15 anos e “tende a piorar”.

Em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) explica ainda que há várias especialidades que estão a sentir mais esta dificuldade em contratar médicos. São necessárias mais vagas e novos cursos de Medicina, “sem comprometer a qualidade”, mas a Europa enfrenta outros problemas: os jovens estão a afastar-se da medicina e a nova geração de médicos já não está disponível para acumular horas extraordinárias.

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Óscar Gaspar defende, ainda, “requalificações remuneratórias” na saúde, mas estas devem ser “claras, transversais e sistemáticas”. O antigo secretário de Estado da Saúde do PS critica alterações pontuais, como as que se realizaram nas urgências, que acabam por criar outros problemas.

Com novas eleições legislativas à porta, defende que as novas parcerias público-privadas (PPP) na saúde, anunciadas pelo Governo de Luís Montenegro, não sejam usadas para disputas político-partidárias. Óscar Gaspar garante que há privados interessados em dividir com o Estado a gestão de unidades de saúde. Tudo irá depender das condições que forem apresentadas.

O presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada admite ainda que o Serviço Nacional de Saúde tem hoje mais meios e presta mais cuidados, mas as necessidades da população também aumentaram. Por isso, as listas de espera ainda são um problema e ainda se justificam programas como o SIGIC, que se apoiam nos privados para diminuir o tempo de espera por cirurgias no público. No entanto, na prática, todos os anos diminuem os utentes do SNS reencaminhados para cirurgias no privado.

Óscar Gaspar não comenta a continuidade da atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, mas defende a figura do diretor executivo do SNS e diz que ainda é cedo para avaliações, até porque desde que o cargo foi criado já foi dirigido por três pessoas.

O programa da Renascença Dúvidas Públicas entrevistou este sábado o economista, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada e antigo secretário de Estado da saúde do PS, Óscar Gaspar. Um trabalho também disponível em podcast, no YouTube, no site e na aplicação.
Com tantos hospitais privados a abrirem no país, em 2024 chegaram às 131 unidades, têm médicos suficientes para tudo ou já começam a ter dificuldade em assegurar as escalas?

Os hospitais privados são de facto a maioria dos hospitais em Portugal, desde 2016. Vale o que vale, porque no público temos mega-hospitais como o Santa Maria, o São José, o São João ou o Hospital Universitário em Coimbra. Obviamente, os hospitais públicos continuam a ter a grande maioria da atividade hospitalar.

Nós representamos cerca de 30% do total da atividade, em termos de urgências representamos 20%, em termos de cirurgias 30%, em termos de consultas de especialidade já estamos nos 40%.

Não há nenhuma reunião internacional em que eu participe em que o tema não seja recursos humanos. Porque as necessidades de saúde têm aumentado muitíssimo, por causa do envelhecimento da população, por causa das legítimas expectativas das pessoas de terem uma segunda opinião, de terem os meios de diagnóstico, porque há mais inovação, etc.

O crescimento é muito forte e nós não temos profissionais de saúde suficientes. O relatório da OCDE de dezembro do ano passado diz que faltam 1 milhão e 200 mil médicos e enfermeiros na Europa. Isto não é um problema de Portugal, de Espanha ou de França, é um problema da generalidade dos países da Europa.

"Há vários países da Europa em que os jovens já não sentem essa atração pela saúde, e isso deve ser um motivo de enorme preocupação"

E já representa um problema para a gestão das escalas no privado, em Portugal?

Eu não diria da gestão das escalas, mas, claramente é um problema para a gestão das instituições de saúde públicas ou privadas. Nós, Portugal, nós, Europa, temos de nos preocupar com esta matéria. No caso português, temos de ter mais escolas de medicina no país.

Como sabem, até há muito pouco tempo havia um exclusivo público, agora há quatro anos existe uma faculdade de medicina da Universidade Católica Portuguesa, mas ainda é pouco. Faltam escolas.

Em Portugal sabemos que todos os anos há centenas de jovens, rapazes e raparigas, que ficam à porta das faculdades de Medicina porque não têm vagas por causa de numerus clausus. Mas já há vários países da Europa em que os jovens já não sentem essa atração pela saúde, e isso deve ser um motivo de enorme preocupação.

Acha que é por causa dessa dificuldade de acesso aos cursos de Medicina?

Não. O que temos constatado nos últimos anos é que os jovens têm a perceção de que as profissões na área da saúde são muito exigentes, obrigam a fazer noites de escala, obrigam a estar nos hospitais durante fins de semana, obrigam a ter muitas horas, a formação é prolongada e há aqui uma parte psicológica, que é tratar com o sofrimento humano, tratar com a vida e a morte. São profissões muito, muito, muito exigentes.

Depois, podem não ter a necessária recompensa salarial para o nível de exigência da profissão?

Não só em Portugal, mas também em vários países da Europa, aquilo que os jovens sentem é que há outro tipo de profissões que acabam por recompensar mais e também deixar as pessoas realizadas.

Temos necessidades crescentes de recrutarmos mais médicos, mais e mais enfermeiros, e temos cada vez menos jovens a quererem ir para essas profissões. No caso português, o problema está sobretudo identificado nos médicos. Felizmente, continuamos a formar muitos e bons enfermeiros e continuam a sair para Inglaterra, a Suécia, os Países Baixos, a Alemanha, e eu percebo o atrativo, nomeadamente, em termos financeiros.

Não é a vida, também, recrutarmos no estrangeiro. É sabido que os nossos vizinhos espanhóis tendem a ir buscar médicos à América Latina. Nós também já fomos à Colômbia, ao Uruguai, a Cuba. Temos também dos países de leste. Os nossos amigos italianos vão buscar (médicos) à Argentina, havia muitos médicos indianos e paquistaneses a trabalhar em Inglaterra, há muitos médicos sírios a trabalhar na Alemanha, por exemplo.

A grande orientação da OMS [Organização Mundial de Saúde], que eu partilho, é que nós não podemos estar a roubar talentos também a países menos desenvolvidos. A Europa tem de, por um lado, formar mais profissionais de saúde, segundo, ter políticas de realização pessoal e profissional e de retenção dessas pessoas. Terceiro, porventura, temos que refletir sobre o conteúdo funcional das diversas profissões de saúde.

Regressando à formação, como se explicam estas restrições, estes numerus clausus, com esta falta de médicos, um problema que já se regista há alguns anos?

Há cerca de um ano, a PlanAP, que é um organismo público de planeamento, fez um estudo sobre os recursos humanos de saúde e a conclusão é dramática: diz que nunca houve planeamento de recursos humanos em saúde e também não houve em relação ao SNS. Ou seja, enquanto país, vivemos sem ter ideia de quais são os recursos humanos de saúde que precisamos.

Por exemplo, olhamos para a pirâmide etária dos médicos e é um motivo de fortíssima preocupação, porque muitos estão entre os 60 anos e os 65, 66, 67. Sabemos que nos próximos anos, tendencialmente, vão reformar-se e não temos jovens médicos para os substituir.

Com a agravante de que estão no topo da carreira.

Exatamente. Temos problemas graves de falta de médicos, já não estou a falar apenas de um encerramento de urgências, mas de que, público e privado, sentimos falta de dermatologistas, de anestesiologistas, de psiquiatras, de pediatras, etc. E sabemos que o problema será maior daqui a três ou quatro anos, isto não tende a melhorar, tende a piorar. Temos de tomar medidas.

Porque é que não se tomaram essas medidas em tempo real?

Nós temos um problema em Portugal, em várias políticas públicas, o que habitualmente designamos de miopia. Olhamos muito para o curto prazo, para os problemas que vão aparecendo. As primeiras páginas dos jornais, o que abre os telejornais, é sempre um motivo de enorme preocupação para um decisor político. Aquilo que é mais estratégico, por vezes, acaba por ser preterido.

Não escondo que no nosso setor e, no caso português, sinto que se agravam alguns movimentos corporativos, não digo que são ilegítimos, mas não ajudaram a que tivéssemos atempadamente planeado os recursos humanos em saúde.

Este problema sente-se há quanto tempo? Tem ideia? Com o encerramento de urgências ficou, pelo menos, mais visível.

Eu diria que pelo menos nos últimos 15 anos sentimos que há falta de médicos.

Já houve tempo para serem lançadas medidas?

Sim. E quando refere as urgências, o problema não é só o número de profissionais, é também as horas que dedicam. Hoje, e isto sente-se muito no pós-Covid, há menos apetência para trabalho extraordinário. Temos muitos casos documentados, em Portugal, em França, na Alemanha, de profissionais que nos dizem que fizeram tudo aquilo que era possível, a partir de hoje já não estão disponíveis para continuar a fazer noites atrás de noites, ou fins de semana.

"Temos problemas graves de falta de médicos. E o problema será maior daqui a 3 ou 4 anos"

E esta nova geração tem muito mais esse espírito do que a geração antiga?

Exatamente. A nova geração, e não estou a fazer nenhuma crítica, aquilo que notamos é que valoriza mais este balanceamento entre vida pessoal e vida profissional e não está disponível para ter algum tipo de entrega que as gerações anteriores faziam. E isso obriga-nos a repensar a situação.

É uma questão de gestão?

É uma questão de gestão. E já agora, disse que temos mega-hospitais, instituições que têm milhares de colaboradores, orçamentos de centenas de milhões de euros. Estamos a falar das maiores empresas do país, ora, têm de ter uma direção de recursos humanos a sério. Não é uma direção que serve para fazer contratação e despedimentos ou a tramitação de processos disciplinares, se for o caso disso.

Está a criticar a Direção Executiva do SNS?

Não. Eu acho que foi uma boa medida, sou defensor da Direção Executiva porque deve haver uma separação entre o nível de decisão política e a reflexão sobre políticas de saúde, por um lado, e a gestão do sistema do SNS, por outro. Essa parte cabe à direção executiva.

Também acho que é útil e importante que no Ministério da Saúde haja, por um lado, a prestação, leia-se direção executiva, e, por outro, a questão do financiamento, leia-se a ACSS. Portanto, a clarificação dos papéis junto do Ministério da Saúde é importante.

Agora, é injusto fazermos neste momento a avaliação da direção executiva, tem pouco tempo e já teve três diretores executivos.

Como é que lê o facto de uma direção executiva que tem tão pouco tempo ter tido já três diretores diferentes?

Acredito que quem mais lamenta até é o próprio Ministério da Saúde, que gostaria de ter mais alguma estabilidade. Em parte, penso que decorre do facto de ser uma instituição nova e, portanto, haver alguma dificuldade em adaptar essa instituição às novas competências e fazer a redistribuição de papéis dentro da tutela. Nestes três anos vamos ter três governos diferentes. Isso também tem um impacto negativo na continuidade de algumas instituições da saúde.

"Acho que foi uma boa medida, sou defensor da Direção Executiva "

Para fecharmos aqui a questão dos recursos humanos. Já foi secretário do Estado da Saúde, permita-me o desafio: o que é que faria para atrair e fixar mais jovens na Medicina e em Portugal?

Falemos para já dos médicos. O médico não tem necessariamente de ser um clínico e aquilo que nós também sentimos é que há muitos jovens que estão agora a fazer os seus cursos ou as suas especialidades e não querem ter prática clínica, querem fazer investigação, querem ir para a indústria farmacêutica, para os dispositivos médicos. Eu também não sou capaz de criticar, porque é legítimo e porque nessas funções é importante ter médicos.

Por exemplo, uma companhia de seguros que tenha uma carteira significativa de seguros de saúde, é óbvio que tem de ter uma direção clínica. Tem que haver mais escolas de Medicina em Portugal.

Privadas?

Eu diria que é uma inevitabilidade. O anterior ministro da Ciência, o professor Manuel Heitor, disse que não havia condições de abrir mais cursos do lado do público. Para mim o importante não é ser público ou privado, é que haja mais formação. E não estou aqui a defender que haja uma redução dos critérios de exigência. Em Portugal a formação médica é de excecional qualidade e nós queremos que continue a ser. Era importante termos uma direção de recursos humanos à séria, de gestão das carreiras, no SNS como um todo e em cada uma das unidades locais de saúde.

Concordo também que deve haver uma requalificação e, portanto, melhores condições, nomeadamente remuneratórias para os profissionais de saúde. Nós comparamos mal com o que se paga lá fora.

O que é preciso mudar na política salarial?

Essas requalificações remuneratórias devem ser claras, transversais, sistemáticas. Sou muito favorável a que haja uma renegociação com os sindicatos dos médicos ou dos enfermeiros, para rever as carreiras. Percebo mal algum tipo de medidas, mais ou menos pontuais, que levam a que depois haja pagamentos à hora que acabam por desestruturar completamente o sistema e causar alguma perturbação até nas instituições, quando tentamos resolver problemas mais agudos, como nas urgências.

O que está em causa não é uma determinada tabela, mas contratar para resolver apenas um problema. Isso tem impactos positivos num primeiro momento para o profissional em causa, mas são negativos para a instituição e para o sistema como um todo. Vemos com muita preocupação que uma parte significativa do Orçamento da saúde não tem a ver com remunerações certas e permanentes, mas com os chamados abonos variáveis e pontuais.

Para o profissional é preferível ter um valor de base, expectável, mais elevado, mas depois que não haja estas variações, contratação à peça, que prejudicam a todos.

Disse que cerca de um terço da capacidade instalada no país já é assegurada por privados. Inclui todo o tipo de atendimentos, não só hospitais?

Costumo dizer que nós na hospitalização privada em Portugal fazemos tudo, de A a Z, com uma exceção. Nós não fazemos transplantes.

Porque estão impedidos ou porque não se justifica?

Estamos impedidos legalmente, mas também admito que não se justifica, tendo em conta a dimensão do país. Portanto, há recursos que não devem ser dispersos.

Os privados cumprem as características do Serviço Nacional de Saúde, mesmo geograficamente?

Não sou capaz de ir tão longe. Eu diria que o mapa da hospitalização privada em Portugal está no litoral. Está como o país, demasiado litoralizado. Nota-se uma concentração muito forte entre Setúbal-Braga, no litoral algarvio e temos alguma presença na Ilha da Madeira e na Ilha de São Miguel.

E qual é a perspetiva de abertura para novos hospitais privados?

Nós continuamos a crescer. Neste momento há obras em curso em Leiria, na Covilhã, projetos para Beja, projetos para a Guarda, etc. Em 2024, o investimento foi superior a 200 milhões de euros, quer em termos de edificado como em termos de equipamentos técnicos. No ano passado, fizemos 10,7 milhões de consultas de especialidade, mais de um milhão e meio de episódios de urgência e fizemos cerca de 290 mil cirurgias.

Como compara com o setor público?

O SNS faz mais hoje do que fazia há três anos ou há cinco anos, ao contrário daquilo que às vezes passa, o SNS tem hoje mais médicos, tem mais enfermeiros, tem mais técnicos, tem mais meios e tem mais atividade.

Qual é o problema? É que o ritmo de crescimento da procura e das necessidades de saúde é superior ao ritmo de crescimento do SNS. O que tem acontecido é que quem colmata este acréscimo de necessidades acaba por ser o privado. Se não houvesse privados, o SNS teria a sobrecarga de mais de um milhão e meio de urgências que foram feitas pelo privado.

E há interesse dos grupos privados em criar unidades de saúde familiar modelo C? Porque o Governo diz que recebeu 40 propostas válidas, algumas de grupos de hospitalização privada.

Sim, eu não sei exatamente quantas dessas 40 ou 41 é que são de hospitais privados. Aquilo que eu sei dos meus associados é que há disponibilidade para este tipo de desafios, seja as unidades de saúde familiar modelo C, centros de saúde geridos por privados, ou também as parcerias público-privadas, a gestão de ULS geridas por privados.

Sobre os casos concretos, depende dos termos em que o Ministério da Saúde o queira fazer.

Por exemplo, num painel de discussão em Cascais, um senhor disse que tinha concorrido a uma USF modelo C, mas os termos apresentados não permitem atualizar ao longo do tempo o valor da remuneração dos médicos e aquilo que é expectável é que os valores tenham de ser atualizados ano a ano, daqui a três anos, daqui a cinco anos. Isto são matérias que podem influenciar, atrair ou não atrair entidades para esta gestão.

"O ritmo de crescimento da procura e das necessidades de saúde é superior ao ritmo de crescimento do SNS"

Estas condições ainda podem ser negociadas ou estão fechadas?

Normalmente, nestes processos não há negociação, o que há é um caderno de encargos, apresentado pelo Governo. Os privados respondem, se estão ou não disponíveis. É por isso que em relação às parcerias público-privadas ainda vamos ter de esperar, diria, nove meses, independentemente do Governo, para perceber exatamente o que é que pode estar em causa.

São nove meses, porque estamos a mudar de Governo?

Não, não. Mesmo que não tivéssemos agora eleições legislativas, na minha perspetiva, não seria possível em menos de nove meses sabermos exatamente o que é que está em causa. O Conselho de Ministros tomou duas decisões. Criar o chamado comparador do setor público, ou seja, o Estado dizer exatamente quanto é que aquela prestação custa ao Estado. Depois define o valor base e pergunta aos privados se fazem por menos.

Porque há uma regra que, às vezes, é esquecida, e a lei portuguesa tem sido cumprida, que diz que em caso algum o Governo, o Ministério da Saúde, pode adjudicar o que quer que seja ao privado, se não for abaixo do custo público. Portanto, o recurso ao privado tem de ser sempre poupador para o público.

Outra questão tem a ver com o caderno de encargos, que também tem de ser feito. Até porque, o que tivemos há 20 anos no processo das quatro PPPs que existiram (Braga, Vila Franca de Xira, Loures e Cascais) incluíam construção e a atividade hospitalar. Hoje a parte da construção não existe, é gerir aqueles que já existem. Mas, hoje a estrutura do SNS já não tem hospitais, tem unidades locais de saúde, hospital com cuidados de saúde primários, os cadernos de encargos têm que ser diferentes.

Pode dar um exemplo?

Um hospital do SNS, tipicamente, era financiado por atividade, pelo número de consultas, pelo número de raios-x, pelo número de episódios de emergência, etc. Hoje não é assim. Hoje as unidades locais de saúde do SNS são financiadas per capita, um valor por cada pessoa da sua área de abrangência. O Ministério da Saúde também tem que fazer essa reflexão, se o desafio que lançam aos privados é passarmos para um financiamento per capita ou se é para manter, o que aconteceu no caso das outras PPPs, um pagamento por ato.

Qual seria o modelo mais interessante para os privados?

Vai depender do perfil de cada grupo privado e da sua capacidade de gestão, da sua perceção do modelo. No caso da gestão privada, uma das grandes diferenças em relação à gestão pública é em termos de recursos humanos, a possibilidade de podermos dar prémios de produtividade, prémios de incentivos em termos de assiduidade, etc. Os profissionais, quando estão num contrato de uma PPP, têm de perceber exatamente quais é que são os mecanismos de financiamento.

Também acha que este anúncio das cinco PPPs, parcerias público-privadas em hospitais, é uma forma do Governo assumir a incompetência na gestão do Serviço Nacional de Saúde, como disse o líder do PS, Pedro Nuno de Santos?

Não me compete comentar nenhum interveniente político. O que posso dizer em relação às PPPs, é que tivemos quatro PPPs em Portugal e funcionaram bem, muito bem, os contratos foram cumpridos, a atividade assistencial foi cumprida e foram poupadoras para o Estado, cerca de 23% de poupança.

Outro fator muito relevante é o da previsibilidade. Numa PPP, o Ministério da Saúde sabe quanto é que gasta com aquele hospital e sabe que se houver algum tipo de derrapagem, essa derrapagem tem de ser assumida pelo prestador privado. No SNS, aquilo que sabemos, por exemplo, em relação ao ano passado, é que terá havido um déficit da ordem de 1.500 milhões de euros nos hospitais do SNS.

A experiência do passado leva-me a concluir que as PPPs podem ser um instrumento em prol da sustentabilidade do SNS, seja em termos financeiros, seja em termos de uma continuidade da prestação de cuidados. Não é, com toda a certeza, uma solução única e eu penso que as PPPs não devem ser matéria de disputa politico-partidária. Por uma razão simples, as quatro PPPs iniciais aconteceram também com o ministro Correio de Campos, no Governo Socialista. O professor Correio de Campos, quando cria a figura das unidades de saúde familiares, já previa as unidades tipo A, tipo B e aquelas tipo C de gestão do privado. Portanto, ser o partido A ou o partido B à frente do Ministério, não tem necessariamente de levar a que se inclua ou exclua a participação do privado na gestão também de parte do SNS.

Mas não teme que esta medida caia, por exemplo, se o Partido Socialista vencer agora as próximas legislativas?

Os momentos prévios às eleições são sempre bastante complicados e tendem a exacerbar as diferenças entre as partes. Eu penso que estamos todos de acordo que a saúde é uma grande preocupação dos portugueses e dentro da saúde o acesso.

Hoje teremos qualquer coisa como 75 mil cirurgias para fazer no SNS em atraso. Nós teremos mais de 300 mil consultas de especialidade para ser feitas, ultrapassando também o tempo máximo de resposta garantido. Temos, segundo os números oficiais, cerca de 1 milhão e 600 mil portugueses sem médico de família.

Esses é que são os problemas e os instrumentos devem contribuir para resolver estes problemas. Se é mais PPP, se é mais outro instrumento, é uma boa discussão que os diversos partidos devem fazer internamente, nos seus programas eleitorais e entre eles, no próximo Governo.

Ainda que, sobre as PPP, já tenha dito que os privados ficaram traumatizados. O negócio não é vantajoso?

O que me foi dado a perceber é que, em muitos casos, não foi entendido verdadeiramente como uma parceria público-privada, que tem de ser importante para as duas partes e tem de obrigar as duas partes a dialogar.

O que aconteceu é que houve sempre um nível de litigância muito forte, que, em alguns casos, aliás, ainda se mantém, em relação às outras PPPs. Em termos financeiros, houve de facto PPPs que levaram a prejuízos significativos da parte dos operadores privados.

Não estou aqui a culpar apenas o setor público, estou a dizer que o sistema foi montado de tal maneira que obrigou a demasiado desgaste de todas as partes.

"As PPPs podem ser um instrumento em prol da sustentabilidade do SNS, seja em termos financeiros, seja em termos de uma continuidade da prestação de cuidados"

Os hospitais privados realizaram, no último ano, mais cirurgias, mas estão cada vez a realizar menos cirurgias no âmbito do SIGIC, o programa para a redução das listas de espera no Serviço Nacional de Saúde. Ainda faz sentido este programa, tendo em conta que, pelos vistos, o SNS está a conseguir, ele próprio, responder a este problema?

O problema existe.

O SNS está a responder mais e, portanto, internalizou essa atividade. Ótimo, ótimo, ótimo para todos. Questão distinta é que, apesar disso, as listas de espera continuam a aumentar e devo dizer que o setor privado está disponível para fazer mais e para contribuir mais para a redução das listas de espera.

Por que não faz?

O SIGIC tem muitos problemas, para os quais nós alertámos há vários anos e continuamos a alertar. Só para dar dois exemplos, sistematicamente há cidadãos, por exemplo, aqui da margem sul do Tejo, que recebem vales cirúrgicos para ir para o norte do distrito Porto ou para o sul do distrito de Braga. A pessoa não está disponível para fazer 200 quilómetros, 300 quilómetros, para fazer uma pequena cirurgia, em alguns casos. Outro caso é que a lei prevê que o processo clínico de quem vai ser operado no privado ou no social seja transferido para a unidade que vai realizar a cirurgia, em muitos casos isso não aconteceu.

Há aqui muitas entropias. No ano passado fizemos cerca de 15 mil cirurgias para o SIGIC, mas isso não ultrapassou 5,5% da nossa atividade cirúrgica. Aquilo que suscitámos junto do Ministério da Saúde é que com algumas pequenas alterações no SIGIC seria possível fazermos bastante melhor.

O Governo tinha previsto lançar um novo programa que permitisse recorrer mais ao setor privado e ao setor social, quer para as cirurgias como para as consultas externas e era suposto avançar este primeiro semestre de 2025. Com esta conjuntura política isso não vai acontecer. Se o programa de consulta a tempo e horas que existe para o SNS fosse aberto à generalidade dos hospitais privados, podíamos ainda dar um contributo substancial numa série de especialidades.

Ainda segundo os últimos dados, dos 80 mil partos realizados no último ano, 15 mil foram feitos em hospitais privados. Em Lisboa, o hospital que faz mais partos já é um privado. Isto é um reflexo da insegurança que as grávidas sentem no SNS, com maternidades que fecham e abrem?

Não, não sou capaz de chegar a essa conclusão. Aquilo que nós constatamos nos últimos anos e até principalmente desde 2020 é que há um crescimento sucessivo do número de partos no privado, mesmo quando há redução da taxa de natalidade no país. Qualquer uma das três grandes maternidades do privado em Lisboa são das maiores maternidades do país, ao contrário daquilo que se possa pensar.

Constatamos ainda que cada vez há mais pessoas com seguros de saúde. Ultrapassámos os 4 milhões de pessoas com seguros de saúde em outubro do ano passado. Há ainda um milhão e meio de pessoas que têm ADSE ou um outro subsistema público.

E que em muitos casos recorrem ao privado?

Com seguros de saúde ou subsistemas, têm um acesso mais direto aos hospitais privados. Este aumento de procura e da nossa atividade também está relacionada com a democratização dos seguros de saúde em Portugal.

Acha que este governo conseguiu reduzir a pressão sobre o atendimento hospitalar? Sobretudo nas urgências.

Em termos globais, em termos estratégicos e sistemáticos, o número de urgências em Portugal é difícil de compreender. Nós temos um número de urgências que compara mal com os rácios internacionais. Devíamos ter menos urgências.

Para termos a sustentabilidade do sistema de saúde, temos de atuar pelo lado da prevenção.

Vamos ter novas eleições legislativas. Caso Luís de Montenegro vença, Ana Paula Martins deve ser reconduzida no Ministério da Saúde?

O que posso dizer é que a professora Ana Paula Martins, em termos de formação, em termos de currículo, preenchia claramente as condições para ser Ministra da Saúde. Quando foi nomeada, penso que ninguém em Portugal achou estranho.

Agora, também é verdade que a pasta é muitíssimo exigente, são muito poucos os Ministros da Saúde que concluíram uma legislatura depois do 25 de Abril, e como eu disse há pouco, em muitos casos, independentemente do Ministro A ou do Ministro B, ou do Governo, os problemas e a pressão do dia-a-dia é tão grande que acaba por nos fazer desviar a atenção daquilo que é mais estrutural.

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