Luís Caeiro
Opinião de Luís Caeiro
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Europa. Liderança precisa-se!

03 mar, 2025 • Luís Caeiro • Opinião de Luís Caeiro


No cenário atual, o que está em causa não é apenas a quebra da unidade europeia e a ameaça à sua segurança; é a sobrevivência dos valores humanistas da cultura ocidental e o sistema de crenças que mantém a confiança nas instituições.

O que designamos de "sociedade ocidental" é o produto de um complexo cruzamento de culturas e movimentos sociais. Tem raízes profundas nas civilizações grega e romana de onde recebeu as principais influências nas áreas do direito, da filosofia, da política, da literatura e da arte.

A tradição judaico-cristã moldou as crenças religiosas, os valores morais e a visão do mundo. Os movimentos renascentista e iluminista promoveram o racionalismo, o individualismo e as bases do desenvolvimento científico que abriram caminho à revolução industrial e à sociedade tecnológica dos nossos dias. A revolução francesa legou-lhe os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, declarou os direitos universais do homem e do cidadão, estabeleceu as bases das repúblicas democráticas, instituiu a separação de poderes e influenciou os sistemas jurídicos dos estados modernos.

Esta história com mais de dois milénios moldou o essencial da matriz política, cultural e ideológica que define a identidade do mundo ocidental.

Os países que herdaram esta longa tradição são maioritariamente democracias liberais, defendem os direitos humanos, são estados de direito com eleições livres, praticam a separação de poderes, têm economias de mercado e aplicam a lei de forma igual a todos os cidadãos. São países com instituições sólidas e economias desenvolvidas, apoiadas no progresso científico, na tecnologia e na inovação.

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O que hoje melhor define a sociedade ocidental não é tanto a geografia, porque em termos alargados abrange países tão diversos com os EUA, a Itália, a Austrália, o Brasil ou Israel, mas o complexo de crenças e valores partilhados pelos seus cidadãos. A sociedade ocidental existe porque os seus membros acreditam na dignidade humana e nos direitos do homem, na justiça e no estado de direito, na liberdade e autonomia individuais, na democracia e na participação cívica, na economia de mercado, no conhecimento e na educação, na inovação e no progresso tecnológico, na solidariedade e na responsabilidade social. Estas crenças apoiam-se nos valores da dignidade humana, da liberdade, da justiça, da solidariedade e da inclusão. São eles que garantem a coesão social, o sentimento de pertença e a confiança nas instituições, fornecendo a base comum para o diálogo, a cooperação e uma visão do futuro, apesar dos particularismos históricos, políticos e culturais de cada país.

O ocidente europeu, que foi o símbolo desta revolução civilizacional, não só está a perder coesão e influência global como parece à deriva, sem uma estratégia clara nem liderança credível. A parte mais evidente desta realidade são as polarizações internas na UE, a incapacidade de falar a uma só voz no cenário internacional e, mais recentemente, o humilhante afastamento das negociações para pôr termo a uma guerra nas suas próprias fronteiras. A parte menos visível, mas com impacto mais profundo, está na quebra dos princípios unificadores e na fragilidade das lideranças. A falta de uma liderança clara, forte e mobilizadora, na União Europeia, sobretudo no atual contexto de crise e ameaça, torna difícil prosseguir a consolidação do projeto europeu, definir o posicionamento face aos desafios da nova ordem internacional e, sobretudo, salvaguardar os valores identitários.

A crise das lideranças na Europa vem-se acentuando na última década. As lideranças transformadoras que instituíram a CEE e enfrentaram as várias crises de crescimento foram capazes de formular uma visão coerente e credível para a Europa, fundada nas crenças e valores da cultura ocidental. Inspiraram um sentido de unidade e de propósito, e souberam converter as crises em oportunidades de crescimento.

Na última década, estas lideranças transformadoras deram lugar a uma vaga de lideranças transacionais, focadas em agendas próprias, que utilizam o espaço comum europeu para "negociar" vantagens para os seus estados-nação. São líderes a quem falta visão de longo prazo e, sobretudo, o protagonismo dos valores europeus. Muitos fatores têm contribuído para esta mudança: a estagnação económica, os fluxos incontroláveis de migrantes e refugiados e a incapacidade de os integrar, o declínio dos partidos do centro político, o peso da burocracia, a corrupção e a ineficiência, a influencia das redes sociais e, mais recentemente, a guerra híbrida conduzida pela Federação Russa com o apoio aos extremismos divisionistas na Europa.

A ausência de uma liderança forte e transformadora, decisões políticas erradas que colocaram a UE em graves dependências, a fragmentação dos processos de decisão, a demora na resposta a questões prementes e a necessidade de compromissos que tiram eficácia às decisões, tudo dificultou respostas prontas e eficazes para as crises e desafios que surgiram. O ambiente de frustração com a governação europeia foi aproveitado pelos movimentos populistas que mais não fizeram do que preencher o vazio de liderança e capitalizar o descontentamento.

Em nome das soberanias nacionais, as lideranças populistas opõem-se às políticas que promovem posicionamentos coletivos, polarizam o debate dificultando o diálogo colaborativo e impedindo decisões unificadas. O discurso populista aproveita as falhas da sociedade liberal e a ineficácia da liderança política para passar a mensagem de que a elite governante não responde às necessidades dos cidadãos. É, por isso, um sério obstáculo à integração europeia, à procura de soluções de conjunto e à existência de uma estratégia de afirmação global para a Europa. As agendas nacionalistas de curto prazo impedem as estratégias coletivas de longo prazo

Embora haja quem argumente que o projeto europeu, uma vez em curso, não necessita de lideranças transformadoras porque promove uma liderança partilhada, pouco visível, baseada na construção de consensos, a verdade é que as crises que se vivem no plano interno e os desafios da nova ordem internacional exigem decisões rápidas e atitudes firmes. Em contextos de crise e de ameaça as lideranças unipessoais que estão à frente dos EUA, da China e da Federação Russa têm nítida vantagem sobre uma UE amarrada a consensos, lentos e difíceis, a 27+1, se considerarmos a importância estratégica do Reino Unido.

O fortalecimento do eixo franco-alemão e a sua extensão à Polónia, e a estreita colaboração com o Reino Unido, podem ser a chave para reforçar a liderança europeia e enfrentar a atual crise, como em boa parte sucedeu com a crise da zona euro e a crise pandémica. No cenário atual, o que está em causa não é apenas a quebra da unidade europeia e a ameaça à sua segurança; é a sobrevivência dos valores humanistas da cultura ocidental e o sistema de crenças que mantém a confiança nas instituições. A UE está perante três desafios existenciais: a garantia da sua segurança, a manutenção da unidade interna e a sobrevivência dos seus valores.


Luís Caeiro, Professor Associado Convidado da Católica Lisbon School of Business and Economics

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica-Lisbon School of Business and Economics

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