04 jul, 2025 • Mafalda d’Oliveira Martins | MOM
Decidi arrumar o meu atelier a fundo. Limpei o pó de tudo quanto era sítio e particularmente do habitual lugar mais parado, a estante de livros. Arrumei aquilo a que chamo de “diários de bordo”, espécie de diários de atelier onde registo pensamentos, ideias e esboços sobre o trabalho. Enquanto arrumava, não consegui deixar de ceder à tentação de espreitar cada um, tarefa aliás de que me devia lembrar de fazer mais vezes. Nesta revisão de pensamentos passados deparei-me com a seguinte frase: “brincar à melancolia é coisa pantanosa”.
A melancolia é um estado de espírito frequentemente associado aos artistas, ou aos intelectuais, criativos de outras áreas do conhecimento. Esta ideia não é apenas uma herança do Romantismo, época de emoções exacerbadas: remonta, sobretudo, à Antiguidade Clássica, onde se teorizam as primeiras noções sobre a melancolia. Aristóteles associa-a aos grandes pensadores do seu tempo: aos artistas, aos políticos, aos poetas, entre outros, ligando esta à criatividade e até à genialidade “sempre e enquanto formos capazes manter à distância, com esperança, vitalidade, coragem e realismo, os sentimentos de pesar” (Hermsen, 2016).
Só no início da Idade Moderna, no Renascimento, é que esta noção foi retomada com igual relevância. Importa aqui perceber que nesta época renasce o pensamento clássico e acrescenta-se um novo elemento cultural, o antropocentrismo. A melancolia tornou-se um elemento distintivo do indivíduo e da individualidade, pois convida ao recolhimento e permite o acesso ao conhecimento. A mais icónica manifestação deste pensamento que chega ao nosso tempo é a gravura de Durer, “A melancolia”, que mostra precisamente uma figura recolhida em pensamento, rodeada por elementos que aludem a diversas áreas do conhecimento, insinuando que o estado da mesma é a porta necessária para aceder a essas áreas.
Desde então, a nossa maneira de entender a melancolia foi mudando ao longo dos tempos e hoje parece distanciar-se desta positividade cautelosa que pareceu pautar a sua existência na história moderna. “A Felicidade de estar triste”, como escreveu Vitor Hugo, ou “a tristeza despojada de peso”, segundo Italo Calvino ou até mesmo como escreve John Keats em “a Ode à Melancolia”, “as lágrimas de uma nuvem que reanimam as flores”, são associações que hoje parecem desajustadas. Isto porque a forma como entendemos os estados de espírito também mudou radicalmente em apenas um século.
A Melancolia é um estado ambíguo. Se por um lado comporta tristeza, por outro, prevê esperança, se por um lado comporta recolhimento e isolamento, por outro, prevê a abertura à novidade. Isto, segundo o que Platão descreveria como a melancolia saudável, em oposição à melancolia patológica. Esta última, real, e cada vez mais conhecida pela ciência, pode anteceder a depressão ( a qual Susan Sontag descreve como a “melancolia desprovida do seu encanto”) e assume vários estados que hoje são palavra do dia: ansiedade, inquietação, stress, revolta, entre tantos outros. Qualquer estado sombrio, actualmente, recomenda-se ser medicado. E nas últimas duas décadas o consumo mundial de antidepressivos e ansíoliticos quadruplicou.A busca desesperada para resolver rapidamente os transtornos psicológicos leva muitos a procurarem estas soluções, cuja eficácia dificilmente coincide com a espectativa. Tudo isto porque há pressa. A produtividade, o valor mais elevado desta época, exclui a possibilidade de estados transitivos, onde o indivíduo possa processar ao seu ritmo, e não ao dos outros, a realidade que o consome. A melancolia também é isso: espaço para processar.
Joke Hermsen, teórica contemporânea, escreveu em 2016, A Melancolia em Tempos de Perturbação (Quetzal) onde, entre outras coisas, advoga que estamos cada vez mais mal preparados para lidar com perdas, decepções e contratempos, que “parecemos também ter-nos distanciado de nós mesmo”. Numa época em que a qualidade de vida é incomparavelmente superior a qualquer outra que a anteceda, o sofrimento vivido pela sociedade cai, sobretudo, no medo de sofrer. E este medo é paralizante, afasta-nos das experiências reais da vida, dos outros, e finalmente, de nós mesmos.
É curioso contrapor este cenário actual com as narrativas que ainda preenchem a nossa cultura: como nos comovemos com a história de Lizzie Velasquez, considerada “a mulher mais feia do mundo” que, contra tudo e todos, lutando contra várias depressões, criou campanhas anti cyber-bullying que foram um sucesso global; ou o famoso caso de Chris Gardner (que mais tarde inspiraria o filme À Procura da Felicidade com Will Smith), que passou por várias tribulações, desde passar fome, a viver na rua com o seu filho e que, com persistência e talento, conseguiu erguer-se e criar uma vida de sucesso; ou até mesmo com um rapaz que era considerado “mau aluno” e que acabou por ser um dos maiores génios da nossa história, Albert Einstein.
O que torna então a experiência contemporânea tão empática relativamente ao que nos é longínquo mas tão receosa ao que nos é próximo? Aí está o medo ao sofrimento real, que nos possa tocar (e pegar, qual doença), que nos deixe eventualmente melancólicos e que esse estado nos atire para o desconhecido, um mundo para o qual nunca nos preparámos. É apenas natural, então, que tentemos fugir desta sombra cujo conteúdo é imprevisível. Mas não estaremos a rumar para uma experiência de vida artificial, solitária e ainda mais isolada?
“Brincar à melancolia é coisa pantanosa”, sim! Brincar é a forma primordial de aprendizagem e ao longo da vida podemos vir a brincar com coisas sérias. Não sou particularmente melancólica, talvez por ser consequência de tudo isto que escrevi, mas definitivamente espero vir a aprender a extrair a esperança deste estado de espírito que, inevitavelmente, incorre sobre todos os processos de criação. Espero também que, no fim de tudo isto, não me ponham um Prozac na sopa.
Mafalda d’Oliveira Martins | MOM - Artista visual