Alfredo Teixeira
Opinião de Alfredo Teixeira
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Fado, a música que nos escuta

06 out, 2025 • Alfredo Teixeira • Opinião de Alfredo Teixeira


O interesse pelo estudo das músicas urbanas reflete não apenas a pluralidade de práticas musicais disponíveis nas sociedades contemporâneas, mas também as novas formas de produção, circulação e apropriação da música.

A coleção “Estudos de Religião” da Imprensa Nacional acolheu, recentemente, mais um volume, talvez inesperado. Trata-se do título «“O meu corpo feito grito”: fluxos religiosos na poesia e nos gestos do fado (1926-1945)», escrito por Cátia Tuna, docente e investigadora da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

A partir do pós-guerra, na segunda metade do século XX, o estudo das músicas urbanas tornou-se um campo interdisciplinar, valorizado pela sua capacidade de refletir as dinâmicas que tecem a sociedade e, além disso, agir sobre elas. Ampliou-se o reconhecimento das músicas urbanas enquanto veículos de conhecimento das sociedades modernas e contemporâneas, superando o enfoque excludente focado apenas na chamada música erudita e na música popular folclorizada.

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O interesse pelo estudo das músicas urbanas reflete não apenas a pluralidade de práticas musicais disponíveis nas sociedades contemporâneas, mas também as novas formas de produção, circulação e apropriação da música. Este tipo de abordagem historicizou e contextualizou a prática musical, permitindo entender a produção, circulação e receção da música em diálogo com os processos de urbanização, industrialização, globalização e as transformações tecnológicas que marcam as múltiplas modernidades.

Um dos protagonistas da nova atenção dada ao pluriverso sonoro das geografias urbanas, Tim Carter, destaca a necessidade de mapear a música que circula nos espaços urbanos, não de uma forma abstrata, mas incluindo as práticas, as redes profissionais e os fluxos simbólicos, descobrindo os espaços urbanos como territórios sonoros ativos.

Makis Solomos, por seu turno, discutiu a “musicalização do ruído” e o papel das ecologias sonoras urbanas na própria criação musical, nas sociedades pós-industriais.

No contexto brasileiro, nomes como Mariza Lira, Mário de Andrade ou Jairo Severiano estudaram os itinerários de afirmação do samba, do choro e da bossa nova sob a lente da transformação social da metrópole urbana, estabelecendo importantes correlações entre expressões musicais, movimentos sociais e processos de mestiçagem cultural. Os discursos etnomusicológicos tornaram-se assim, tantas vezes, agentes de desocultação de identidades silenciadas, dando voz às feridas que rasgam os tecidos urbanos.

Também Cátia Tuna mobilizou o olhar historiográfico para compreender o arquivo de gestos – corporais, vocais e poéticos – que habitaram a requalificação do fado durante o recorte cronológico estudado (1926-1945). A originalidade deste texto passa por esse interesse em descobrir as correlações entre a gestualidade e os artefactos poéticos que dão corpo ao fado praticado.

Nesse contexto, entreabre-se uma janela para a compreensão da interioridade das mulheres fadistas, identificando nela as sobredeterminações do mundo social em que se manifesta. A expressão “fluxos religiosos” visa, precisamente, sinalizar esse pluriverso de expressividades que flui entre os lugares do fado e os imaginários coletivos. Como sublinha o prefaciador deste livro, o historiador Tiago Pires Marques: “O conceito de ‘fluxos religiosos’, sugerindo afetos significantes transitando em espaços caraterísticos (como as casas de fado), através dos corpos moldados das fadistas, e materializando-se em gestos que se vão tornando cada vez mais reconhecíveis e idiossincráticos, parece, pois, particularmente apropriado para apreender a ligação do fado à religião”.

Emerge, assim, uma religiosidade trágica, em que as perdas, os desamores, as fatalidades se redimem no gesto de verticalização do corpo, dirigido ao alto – por isso se evoca o fado de João Dias, “meu corpo feito grito”, cantado por Beatriz da Conceição. À semelhança de outros géneros e geografias da canção popular, encontra-se, assim, no fado deste período histórico, uma heroicidade melancólica ligada ao lado B da história, transcrito nos quotidianos anónimos: a pobreza, a honra, o coração orante, o ressentimento, o sagrado materno, a cidade imaginada, etc.

As cenografias e as coreografias do fado, tal como Cátia Tuna as desvela, transportam-nos para lugares de descoberta, onde aquilo que se apresenta físico e material se revela como o rasto mais eloquente do que se afigura espiritual. De alguma forma, reescreve-se uma teologia do corpo e da ferida, similar à que se descobre na composição “A incredulidade de São Tomé” de Caravaggio, mestre do barroco italiano – na figuração brutalmente física abre-se uma fenda espiritual. O trabalho da historiadora sobre a expressividade dos corpos transporta-nos para uma biografia coletiva, reescrita no fado, como uma tatuagem no corpo ou um graffiti na cidade. Por isso, quando ouvimos o fado, escutamo-nos. Por isso, quando se canta o fado, se pede silêncio, para que nessa interrupção a memória se possa reinventar.


Alfredo Teixeira, antropólogo, docente e investigador da Universidade Católica Portuguesa

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