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80 anos da Vitória na Europa

“Seis mil portugueses terão combatido na II Guerra Mundial”

08 mai, 2025 • José Pedro Frazão


Em entrevista à Renascença, o presidente da Comissão Portuguesa de História Militar explica como Vladimir Putin interpreta as “contradições soviéticas” no curso da Segunda Grande Guerra até aos dias de hoje e acredita que Donald Trump é um dos fatores preventivos de uma Terceira Guerra Mundial. Vieira Borges comenta ainda a forma como a Alemanha vive um momento de rearmamento após oito décadas de paz após a derrota nazi.

A rendição nazi foi efetivada às 23h01 de 8 de maio de 1945, o chamado “Dia da Vitória na Europa”. Devido à diferença horária, já era dia 9 em Moscovo que passou a ser também o “Dia da Vitória” no que os russos chamam a Grande Guerra Patriótica entre 1941 e 45. Em entrevista à Renascença, o major-general João Vieira Borges partilha o que se sabe sobre a participação portuguesa na Segunda Guerra Mundial, apesar da neutralidade declarada por Salazar.

Sabemos que houve muitos resistentes de origem portuguesa que lutaram na Segunda Guerra Mundial. O que é que ainda há para descobrir sobre esta matéria?

Os portugueses estiveram na frente japonesa, aquando da invasão de Timor pelos japoneses. Esse trabalho está mais ou menos feito a nível de investigação. Houve uma mortandade enorme no período de ocupação japonesa. São números muito elevados, nos quais estão alguns milhares de portugueses mortos, quer em bombardeamentos, quer em lutas nas montanhas, nos combates contra os ocupantes. Essa é uma história importante, até porque Timor fazia parte do território português. Muitos investigadores trabalharam, sobretudo depois de 25 de abril, sobre a participação de portugueses em Timor durante a Segunda Guerra Mundial.

No teatro de operações europeu, têm sido muito interessantes os estudos que têm sido desenvolvidos em França, materializados em dois livros de José Manuel Barata-Feyo, com o apoio de vários investigadores. O primeiro, “A Sombra dos Heróis” é sobre os portugueses que participaram na resistência. É o nosso conhecido “Alô! Alô!” da televisão, com muitos portugueses envolvidos na luta contra a ocupação da parte francesa pelos nazis.

O seu último livro, “Os Soldados Fantasma”, tem a ver com os portugueses que participaram diretamente nos combates por voluntariado. Com a declaração de guerra de França, muitos emigrantes ofereceram-se voluntariamente e fizeram parte dos regimentos de voluntários estrangeiros, que foram dizimados quase totalmente em combate. Muitos portugueses - entre 600 e 800 - dos 1.600 que terão participado, terão morrido. A investigação foi dificultada pelo facto de que os alemães levaram todos os processos desse regimento. Só recentemente esses processos vieram para França e estão disponíveis para investigação adicional. Esta é a segunda dimensão, do combate em França, onde havia muitos emigrantes

Há depois uma terceira dimensão de portugueses, que participaram em forças norte-americanas, canadianas e brasileiras, que tinham muitos emigrantes portugueses.

Esses estudos estão a ser feitos, já temos alguns dados, mas teremos certamente mais no próximo ano. A intenção da Comissão Portuguesa de História Militar é tentar juntar todos esses estudos no próximo ano num congresso que se chamará provavelmente “Portugal e os Portugueses na Segunda Guerra Mundial”.

[Abordaremos] Portugal, com a sua posição neutral - colaborante segundo alguns, flutuante segundo outros - e depois os Portugueses, que se empenharam dos dois lados, mas maioritariamente do lado dos aliados, em busca da liberdade e contra os nazis. Há também alguns portugueses que estiveram com a Divisão Azul e com os espanhóis, em número bastante menor. Presumo que serão menos de duas centenas os que também lutaram ao lado das tropas de Hitler.

Se olharmos para o número global, de uma forma um pouco grosseira ainda assim, qual é a estimativa que faria na globalidade e nos dois lados?

Tenho uma lista na minha posse, que me foi dada pelo investigador francês Georges Viaud, com 1.600 nomes de combatentes nas unidades militares em França, fora aqueles que participaram - pelo menos mais de um milhar - na resistência. Com os dados que tenho disponíveis, serão sempre mais de 3.000 portugueses que terão participado na Segunda Guerra Mundial no Teatro de Operações europeu. No Teatro de Operações asiático, é um número certamente ainda muito próximo, tendo em conta o número de portugueses que se encontravam em Timor. Os timorenses eram portugueses nessa altura, mas havia muitos deportados de origem portuguesa nessa altura em Timor e a Macau. Grande parte deles participou nos combates.

Serão 6.000, no mínimo?

Na minha perspetiva, sim. Espero não estar muito longe da verdade. É muito difícil [determinar um número] porque todos os documentos das forças mobilizadas para a guerra desapareceram. Curiosamente - o que é muito estranho para nós, investigadores - torna-se muito mais fácil obter indicadores dos resistentes do que propriamente dos militares, exatamente porque foram roubados todos esses documentos pelos alemães. Alguns foram destruídos e outros só agora foram colocados para investigação em Paris, numa caixa - a “caixa alemã”.

"As hostilidades cessam oficialmente". Há 80 anos Churchill declarou o Dia da Vitória na Europa
"As hostilidades cessam oficialmente". Há 80 anos Churchill declarou o Dia da Vitória na Europa

Oitenta anos depois, em 2025, como é que olha para a forma como, por exemplo, os alemães têm vivido estas décadas, particularmente nos últimos anos, e agora, neste contexto em que se fala de um rearmamento da própria Alemanha? Há alguma ambivalência de sentimentos na sociedade alemã?

Continua a haver. Conheço bem a Alemanha, onde vou frequentemente à Alemanha, onde a minha filha está a trabalhar. Constato uma grande diversidade e basta ver o processo eleitoral, onde a própria Alemanha de Leste, que esteve sob regime comunista, é aquela que tem mais votantes de extrema-direita, atingindo valores nunca pensados pelos alemães. Estas zonas que eram comunistas e passaram a ser de partidos de extrema-direita olham para este processo do rearmamento com um olhar completamente diferente da maioria dos alemães, designadamente dos dois partidos do poder, o SPD e a CDU. Mesmo aí, como vimos agora na eleição do chanceler, há divisões, não apenas sobre questões de imigração, mas também relativamente ao rearmamento.

A Alemanha, maior potência económica da Europa, não acompanhou os Estados Unidos ou a China no domínio da competitividade, a par do rearmamento. Se a primeira dá empregabilidade, a segunda obviamente fornece qualidade adicional a esses empregos, ligados diretamente à investigação e desenvolvimento. O problema é que a Alemanha estava desarmada e, portanto, as próprias forças armadas alemãs obviamente não tinham nada a ver com as francesas ou com as inglesas.

O caminho a percorrer para ter capacidades mínimas para defender a própria Alemanha é um muito mais longo, o que , como disse agora o chanceler, ir buscar 500 mil milhões de euros também através de empréstimos. Isso tem opositores internos. Se a economia não evoluir, corremos o risco na Alemanha, de ficarmos numa situação muito complexa, em que o segundo maior partido se tornar o primeiro. Se falhar, obviamente já não há mais hipóteses. Teremos um partido de extrema-direita a alargar a sua zona de influência.

Falemos de outros parceiros da história e do presente. A Rússia foi aliada na vitória e 1945. Como vê a narrativa russa à volta da Segunda Guerra Mundial?

É uma narrativa que o próprio Putin soube corrigir. Ele condena o pacto Molotov-Ribbentrop, assinado a 23 de agosto de 1939, um tratado de não agressão por 10 anos, com um protocolo secreto, para divisão dos espaços, designadamente da própria Polónia e dos países bálticos.

Putin diz condenar o pacto, considerando imoral uma aliança de um país comunista com os nazis. Mas por outro lado defende que o pacto foi um mal necessário. Ou seja, na perspetiva de Putin, foi uma estratégia de Estaline para ganhar tempo e espaço, para depois, mais tarde, poder fazer face à Alemanha nazi, alegando que não o conseguiria em 1939. Esta é uma narrativa que entendemos, obviamente, mas a União Soviética, na altura, soube fazer os rearranjos para a Estónia, para a Finlândia, para a Estónia, a Letónia, a Bielorrússia, etc, conquistando todos esses territórios. Tivemos depois uma União Soviética forte e na “grande guerra patriótica” - designação russa desta guerra - morreram cerca de 26 milhões de soviéticos, o que serviu de fator de união e de coesão numa narrativa histórica contra os nazis.

Essa é uma linguagem que tem sido usada ao longo dos anos, exatamente como fator de união, independentemente da desunião que houve entre 1989 e 1991. Depois disso, e sobretudo com Putin, têm sido usadas essas cerimónias com uma dimensão que nada tem a ver com as europeias. É uma dimensão mais psicológica e ideológica, multilateral ao trazer os países do Terceiro Mundo a essa mesma cerimónia, tornando-se a liderança do mundo que luta contra o nazismo. E contra um inimigo, seja ele onde for, na Síria ou na Ucrânia, que passa a ser “nazi”, na narrativa de Putin.

Curiosamente, explora a Segunda Guerra Mundial para unir quando a própria União Soviética foi a grande potência que deu toda a liberdade de ação a Hitler durante dois anos. É um contrassenso, mas é um fator histórico de leitura muito interessante. Como é possível que o país que deu mais aos nazis na fase inicial da grande invasão - porque se lutasse a partir dessa altura obviamente não teríamos certamente um Hitler tão forte, passados dois anos - como é que é possível depois voltar atrás?

Os nazis invadiram a Polónia Oriental em junho de 1941. Só nessa altura há uma declaração de guerra da Alemanha. E a Rússia resiste, escondendo a declaração de guerra, até tudo vir ao de cima nas memórias do General Zhukov, em 1969 e depois, claro, em 1991. É muito interessante a forma como a história “factual” pode ser interpretada e sobretudo usada como instrumento de poder e de coesão, é muito interessante.

Em sentido contrário, no simbolismo que a história nos traz, observamos alguma erosão do laço transatlântico decisivo sobretudo a partir de 1944 com o dia D. Para os Estados Unidos, tudo parece hoje uma história muito distante, ao contrário da narrativa presente e simbólica que se vive em Moscovo

Concordo. Esse afastamento dos Estados Unidos face a esta narrativa histórica, comemorando somente o Dia D ou o mês de setembro como final da Segunda Guerra Mundial, afastando o carácter ideológico desta guerra, afastando essa “chama de união”. Aqui, no Ocidente, era também importante que esse simbolismo fosse usado hoje nos discursos na Europa sobre a importância dos Estados Unidos para a vitória. E da mesma maneira, era bom que os Estados Unidos usassem esta guerra como líderes da vitória.

É importante comemorar este 8 de Maio, porque há muitos líderes autocráticos no mundo que obviamente comungam das mesmas ideias nacionalistas de Hitler. Quando temos um mundo em que apenas 45% dos países são considerados democracias pelo índice da revista The Economist, acho que o perigo está aí novamente. E era preciso unirmo-nos em torno de valores, de narrativas históricas que fazem essa união transatlântica em defesa de determinados valores.

A história é importante para o cidadão comum entender que, para não cometermos os mesmos erros, só coligados conseguimos fazer esses combates em prol da liberdade, do Estado de Direito e da democracia que foi conquistada nessa altura.

Estamos no momento mais próximo de podermos ter um conflito de natureza global como uma Terceira Guerra Mundial, ou apesar de tudo, essa guerra poderia ser confinada apenas ao território europeu?

Passado algum tempo, existem partes da História importantes esquecidas, como a crise dos mísseis de Cuba ou na Europa, momentos muito complicados em que o ‘botão vermelho’ esteve muito próximo de alguns dirigentes das duas potências da Guerra Fria. Esquecem-se rapidamente esses momentos de crise, até porque na altura não havia os instrumentos de comunicação de hoje.

Isso são fatores importantes para compreendermos que hoje há situações, como esta guerra na Europa, que não são comparáveis com uma Terceira Guerra Mundial. Independentemente da dissuasão nuclear entre as grandes potências - e essas é que serão sempre percussoras de uma guerra mundial -ela continua lá.

Independentemente dos conflitos, designadamente agora na Europa, se exponenciarem para a dimensão nuclear tática, isso é algo que nunca tivemos na História. Há fatores controladores, apesar das organizações internacionais terem cada vez menos peso. Há, no fundo, uma série de atores num sistema multipolar que conseguem fazer pressão, como tem acontecido inclusive com os Estados Unidos, com uma postura completamente diferente nesta nova administração.

O facto de termos Trump é muito mau para muitas questões, mas, para as questões da paz mundial, é positivo porque impedir uma terceira guerra mundial faz parte do seu ADN. Ele tudo faz para que os seus aliados cedam, designadamente a Ucrânia relativamente à Rússia ou à Europa, ou relativamente a ele próprio nas questões económicas. E, portanto, julgo que [a Terceira Guerra Mundial] estará mais longe, considerando esta administração, a postura e o ADN de Trump.

Independentemente disto, temos de olhar para o grande competidor dos Estados Unidos, como a China. Acredito naquilo que o próprio Trump já disse no Conselho de Segurança - e que foi conhecido pelos livros de John Bolton – de que, no caso de uma guerra em Taiwan, os Estados Unidos podiam apoiar os seus aliados, mas de forma limitada. Eles não estão na Europa. A distância é muito maior, a necessidade de aparelhos é muito maior e a relação de forças, neste momento, é muito mais equilibrada do que durante a própria Guerra Fria. A postura base de Trump, mesmo num conflito no Indo-Pacífico, será sempre de busca da paz, arranjando depois outros aliados no sentido de não caminhar para uma Terceira Guerra Mundial.

Portanto, não estamos mais próximos da Terceira Guerra Mundial?

Acho que não estamos mais próximos - independentemente de muitas vozes ameaçarem - com esta administração Trump e independentemente dos erros que comete noutras áreas, da postura bélica, ou pelo menos pouco diplomática, relativamente a questões como o Canadá, Groenlândia ou Panamá. Naquilo que diz respeito a um grande conflito, ele é claramente um opositor e fará tudo para que não se caminhe para uma Terceira Guerra Mundial

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