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Entrevista a Adolfo Mesquita Nunes

“O populismo de direita tem tido mais êxito que o de esquerda porque os seus temas são mais próximos dos algoritmos”

31 out, 2025 • José Pedro Frazão


A Inteligência Artificial está a transformar as nossas democracias, ao ponto de as colocarem em risco. A tese é do advogado e antigo governante Adolfo Mesquita Nunes em entrevista à Renascença sobre o seu livro “Algoritmocracia”, agora lançado pela D.Quixote.

O ex-militante do CDS acaba de escrever "Algoritmocracia", livro onde tenta abrir um debate sobre a forma como os algoritmos não apenas dominam muitas áreas da sociedade como podem pôr em causa as liberdades que sustentam a democracia liberal. A entrevista concedida por Adolfo Mesquita Nunes à Renascença coloca o debate em diversas frentes – da global à nacional, passando pela legislação europeia.

Este livro assenta muito num tripé composto por verdade, liberdade e democracia. A palavra ‘algoritmo’ só aparece à página 136. É a democracia que está em risco com o algoritmo? Ou é a liberdade? Porque a verdade parece já ter sido suprimida.

O livro parte de uma reflexão acerca do panorama político mais polarizado, mais radical. Um quadro em que os políticos mentem e os desmentidos parecem valer pouco, em que alguns políticos parecem imunes aos desmentidos, em que se desacreditam com muita facilidade a ciência, os dados e os factos. Inventaram-se expressões como ‘factos alternativos’ ou ‘a minha verdade’.

Fui procurar a razão disto, sobretudo porque esta circunstância me estava a incomodar particularmente. Por um lado, porque via o crescimento de partidos populistas e de vocação iliberal, como aquilo que aconteceu na Hungria, e, por outro lado, porque o meu espaço político, da direita, estava a ser transformado por estas manifestações.

Só essa parte dava uma outra entrevista.

Por isso é que, sendo um livro sobre algoritmos, a palavra ‘algoritmo’ só aparece mais tarde. Antes, tive de explicar ao leitor o que é que senti e porque é que este tema me interpelou.

O algoritmo é um instrumento do ecossistema informativo dos dias de hoje. Procuro explicar no livro que somos hoje agentes passivos da informação. Antes éramos agentes ativos, íamos procurar o jornal, a rádio, a televisão. Agora abrimos o telemóvel e todos os dias somos bombardeados com o conteúdo que molda a nossa perceção do mundo.

Podem ser notícias, sim. Mas há também vídeos, há ‘memes’, há paródia, há sátira, tudo sobre assuntos da atualidade.

É o fim do espaço público, como o conhecíamos?

O espaço público está em mutação. O que se passa aqui é que o algoritmo organiza aquilo que vemos todos os dias no nosso telemóvel, que é completamente diferente daquilo que o outro vê. E eu quis saber porquê. Como é que funcionam os algoritmos? Quem é que escolhe os vídeos que vejo? Quem é que me recomenda estes vídeos?

Há uma parte muito positiva nesse mecanismo algorítmico de recomendação: estão à procura de me dar coisas que me interessam. E, portanto, se não gosto de ‘heavy metal’, não me sugerem músicas de ‘heavy metal’, sugerem-me mais música francesa que eu gosto. Isto é-me útil.

Mas do ponto de vista político, como é que isto acontece? Fui perceber como é que os algoritmos funcionam e onde é que está a raiz do problema. Os algoritmos procuram reter-nos o máximo tempo possível nas redes.

É a economia da atenção.

Querem que fiquemos agarrados, porque querem-nos conhecer melhor, querem-nos dar mais serviços, mais produtos. Até aí tudo bem. Agora, se olharmos para aquilo que, como seres humanos, mais nos interpela e nos agarra, vamos concluir que somos muito mais motivados para clicar numa história insólita, num link que tenha uma noção de escândalo, de segredo, que nos estão a esconder, ‘aquilo que as farmacêuticas não querem que você saiba’. Se clicamos com muito mais facilidade em vídeos que dizem ‘Político A humilha em direto o político B’, somos muito suscetíveis a conteúdos de algo que nos mete a medo, que nos assuste, que nos interpela e que nos faça sentir a perder. E isso faz com que sejam esses os conteúdos que ganham destaque.

Mas quem é que tornou central essa tendência no algoritmo?

Essa é a nossa tendência natural enquanto seres humanos. São os nossos vieses. Da mesma forma que temos muito mais tendência para acreditar nas histórias que confirmam aquilo que achamos e a duvidar de qualquer coisa que contrarie isso.

Isso é o nosso viés da confirmação, que está há muito estudado e conhecido. Portanto, estes algoritmos - é preciso que se saiba - não são ‘vendedores de enciclopédias’ mais convincentes.

Nem têm um poder central?

São feitos por cientistas, por neurologistas que sabem exatamente aquilo que o nosso cérebro mais procura. É aquilo que cria emoções mais fortes, que liberta mais dopamina, que faz com que a maior parte dos conteúdos seja cada vez mais polarizador, radicalizador, que nos caricature aquelas pessoas com as quais não concordamos.

Pergunto isto muitas vezes: ‘quando é que foi a última vez que ouviu um argumento sensato do partido em que não vota?’ A maior parte das pessoas vai-me dizer; ‘há muito tempo’. Porque o algoritmo não dá a visão do outro lado sensato, mas a visão caricatural desse outro lado.

Mas a pergunta que muitos fazem é: há alguém, algum movimento, alguma estrutura que programou o algoritmo para ser assim?

O algoritmo é programado assim, como é normal que seja programado assim, porque é essa a vontade de nos manter agarrados. Não significa que haja um senhor a dizer ‘eu quero que o Adolfo agora vá pensar a coisa A ou a coisa B’. Aliás, ele nem sequer sabe em que é que eu vou clicar. Ele só instrui o algoritmo para me dar mais daquilo em que eu clico.

E, portanto, não há propriamente uma espécie de um manipulador. O que existe, isso sim, é essa possibilidade. Quando Elon Musk diz que vai apoiar determinadas causas, não fazemos a mínima ideia se ele consegue programar ou se consegue dar instruções para que os seus algoritmos nos condicionem.

Deixando isso de lado, não há dúvida que há agentes políticos que percebem melhor o funcionamento dos algoritmos do que outros. Sabem ver e medir muito bem aquilo que desperta atenção, que gera reação. E aí os partidos populistas são mestres. Eles conseguem perceber o funcionamento dos algoritmos e alimentam o seu discurso político com as palavras, com os temas e com os assuntos que os algoritmos valorizam. Mas também acontece com jornalistas e comentadores na televisão.

Mas escreve no seu livro: ‘Quem paga esta estrutura são as marcas, os partidos, os governos, as influências, as associações e até indivíduos com causas pessoais. As pessoas que pagam este sistema não podem ser penalizadas?

O algoritmo não distingue o que é verdade e o que é mentira. Não tem nenhum tipo de ética ou de moral. E as pessoas que programam os algoritmos não vão ao ponto de querer influenciar-nos. Isso é o resultado normal de uma certa ideia de ‘eu vou dar à pessoa aquilo em que ela mais clica’.

O problema é que aquilo em que mais ‘clicamos’ vai-nos fechando em câmaras de eco e em ‘bolhas’. E é aquilo que mais nos radicaliza, que mais nos assusta e que mais medo nos faz. Por um lado, isto condiciona a nossa visão do mundo. É como se eu todos os dias usasse o GPS para andar por uma cidade e ele me mandasse sempre por ruas cheias de lojas, de restaurantes, animadas.

A minha visão vai ser que ‘esta é uma cidade divertida’. Mas se o GPS da pessoa ao meu lado mandá-lo por ruas esconsas e escuras, ele vai achar que a cidade é completamente diferente. Isto é o nosso panorama informacional hoje. Nós somos condicionados pela forma como os algoritmos programam.

Pergunto: mas quem é que mandatou o algoritmo? Que poder tenho eu sobre o algoritmo que me está a organizar as notícias? Nenhum. E isso eu contesto. Mas isto está também a condicionar o panorama político.

Por isso é que perguntei se a democracia estava em risco.

Está, porque os políticos, os jornalistas e os comentadores querem aparecer, serem ouvidos, que as pessoas ouçam aquilo que eles têm para dizer. E, portanto, vão adaptando a linguagem, os temas e adaptando as posturas para poderem ser ouvidos.

Hoje é muito evidente. Compare o comentariado político de há 10 anos com o de hoje. Hoje as pessoas estão muito mais conflituais, bélicas, aliás com bastantes mais gestos, porque temos uma coisa chamada ‘Reels’. E os comentadores - e é normal - querem ser ouvidos e, portanto, é isso que é valorizado.

E, portanto, porque é que a democracia pode estar em risco? Em primeiro lugar, porque são os partidos antissistema que mais têm lucrado com os algoritmos. Porque o algoritmo, como não faz distinção entre o que é verdadeiro e falso, permite que sejam criadas as percepções das mentiras, as meias verdades, as manipulações e as descontextualizações.

Para caricaturar, posso não ter nenhum problema de falta de água. Mas se todos os dias tiver vídeos que me mostram problemas de falta de água, eu vou achar que ele existe.

É como a perceção da criminalidade?

O problema é uma perceção sobre algo que existe, mas não com aquela proporção, nem com aquela acuidade. Mesmo que resolva esse ‘problema da criminalidade’, se os vídeos continuarem, é como se eu não o tivesse resolvido, o que significa que a verdade vale pouco.

O valer pouco da verdade é mesmo um dos traços do nosso tempo. Vemos hoje como políticos desacreditam rapidamente relatórios técnicos e descobertas científicas como se nada fosse. Acho que a ciência pode ser contrariada, mas com novas evidências, não apenas porque não gosto ou porque ‘está tudo comprado’.

Muitos políticos querem desacreditar qualquer instituição: os tribunais, os jornalistas, a comunicação social, a ciência, os parlamentos. Querem desacreditar para que as pessoas deixem de ter referências institucionais sobre o que é justo ou o que é verdadeiro. Por um lado, há este crescimento de soluções iliberais, mas, por outro lado, nenhuma democracia sobrevive sem instituições fortes e sem o cumprimento de regras básicas. Desde logo, quem ganhou eleições governa e quem as perdeu tem de ser respeitado.

Ora, quando na maior democracia do mundo temos um presidente que mente descaradamente sobre os resultados eleitorais e diz que não perdeu as eleições, e achamos normal o assalto ao Capitólio, à vista de toda a gente, como se fosse um pequeno excesso que não devia acontecer isto é um sintoma do quão doente já está a confiança nas instituições. Isto faz perigar algumas das regras frágeis das democracias liberais e é por isso que escrevo o livro.

Escreve neste livro que o populismo de direita tem tido mais sucesso que o da esquerda. Porquê?

Isto não é uma questão de saber quem mente mais ou menos, quem descontextualiza mais ou é mais manipulador. Nesse sentido, o populismo de direita e de esquerda são iguais. Agora, não posso negar que o populismo de direita tem tido muito mais êxito eleitoral, e, desde logo, também nas redes. Temos hoje manchetes que mostram como determinados partidos políticos, um pouco pela Europa fora controlam milhares e milhares de ‘bots’ e de contas, com uma capacidade de penetração nas redes sociais que nenhum outro partido tem.

Porque investem.

Porque investem, mas também porque a sua linguagem e os seus temas são mais propensos ao algoritmo. O populismo de esquerda atua muito sobre a culpabilização da sociedade de que nós fazemos parte. Isto é, procura dizer que esta é estruturalmente racista, misógina, homofóbica e desigual, da qual somos todos parte e temos de reabilitar-nos disso. O populismo de esquerda trabalha com a culpa. O populismo de direita trabalha com o medo e com o ressentimento.

O medo do diferente, do imigrante, dos novos modelos de família, da tecnologia. O medo é um sentimento muito mais forte do que a culpa. O medo, do ponto de vista neurológico e do que nos impele a carregar numa ligação, é muito mais forte e imediato, pois precisa de menor explicação.

Se todos os dias virmos vídeos que dizem que os professores, numa aula com miúdos de 5 anos, os ensinam a ser homossexuais, é evidente que as pessoas vão reagir, revoltar-se e dizer que estão perante uma loucura que lhes toca no mais fundo, nas crianças. Ou na pátria, se for esse o assunto.

Há um momento a partir do qual deixamos de perceber que esses vídeos são uma mentira, uma instrumentalização. Começamos a acreditar que isso é verdade. E, se não é verdade, poderia ser.

Isto é muito mais forte para ‘clicar’ do que conteúdos de populismo de esquerda, que poem as culpas em nós, na sociedade. Por isso, penso que o populismo de direita tem tido mais êxito. Não porque minta ou descontextualize mais do que o de esquerda, mas porque os seus temas são mais ‘algoritmizáveis’.

Não defende que tudo tenha de ser filtrado, o que diz mesmo ser impossível. Mas mais à frente no livro enceta uma reflexão sobre regulação. Afinal, o que propõe?

Chegando à conclusão de que temos aqui um problema, a primeira reação intuitiva é que temos de controlar o que é dito e por quem é dito. Isso não só é impossível como é uma solução com que não concordo. Não posso atribuir a ninguém o poder de filtrar e de definir o que é verdade. Digo, aliás, que a verdade é um processo em construção permanente, através de um método científico que implica debate constante sobre as coisas e, portanto, não existe nenhuma instituição com esse poder.

As minhas soluções não vão no sentido do controlo ou da censura. Embora haja controlos que defendo - e que existem - não podemos ter conteúdos criminosos - como a pedofilia por exemplo - nas redes. Há, com certeza, filtros que devem ser tidos em conta nesse sentido.

Tirando isso, se dissesse que o Governo todos os dias escolhe as notícias e vídeos que vejo e a que horas, como e quando, e que escolhe também aquilo que não me aparece no meu’ feed’, eu acharia que isto era uma autocracia. Mas é isto que acontece todos os dias. Não é o Governo, são os algoritmos.

E a circunstância de não estar propriamente ninguém detrás dos algoritmos não retira o problema. Não estou a ser livre na escolha dos meus conteúdos. E quando tenho um grande problema e não sei muito bem como o resolver, volto ao meu valor básico e principal na política, que é a liberdade.

Enquanto utilizador, tenho de ter liberdade para personalizar o algoritmo, dizer como quero que ele funcione, para poder depois, de alguma forma, ser dono do meu processo de pensamento.

Dizem-me muitas vezes que tecnologicamente isso é muito difícil e eventualmente quase impossível. Ora, num tempo em que andamos a falar de superinteligência, de como vamos todos ser superados por sistemas e máquinas, e como vamos descobrir a cura para o cancro - e espero eu que isso aconteça - não me vão dizer que não vamos conseguir criar uma solução tecnológica que não dê às pessoas o poder de decidir como é que querem que os algoritmos lidem com elas.

São novos filtros de pesquisa, por exemplo?

É a possibilidade que tenho de dizer ao algoritmo como quero que ele me organize a informação, como quero que não me ligue a determinado tipo de dados e não me dê determinado tipo de conteúdos.

Hoje, neste momento, a única coisa que, de vez em quando, as redes sociais nos perguntam é se queremos ver mais ou menos de qualquer coisa. Mas nem sequer sei para que serve aquela pergunta e que conclusões estão a retirar daquilo. O funcionamento do algoritmo é totalmente opaco. Não sei como funciona, se eu quiser refilar, para poder escolher até um outro produto que não existe, para poder até sugerir melhorias, telefono a quem? Bato à porta de quem? Falo com quem?

Se isto fosse qualquer coisa de lateral nas nossas vidas, o problema continuaria eventualmente a existir, do ponto de vista teórico, mas não tinha esta repercussão. Aquilo que o livro dizer às pessoas é que temos um problema, porque acho que isto ainda não é líquido para muita gente. Temos um problema, temos de ter uma conversa sobre isto. Pode não ser com as minhas soluções, podem ser outras. Mas não é possível continuar a acreditar que esta fase que as sociedades ocidentais estão a viver, mais conflitual, mais binária, mais maniqueísta, é uma fase social.

Está em linha com a proposta ‘middleware’ de Francis Fukuyama.

É um pouco a ideia de Fukuyama, quando fala em ‘middleware’. É precisamente encontrar um intermediário entre o algoritmo e nós, que possamos customizar.

Isto não resolve tudo. Aliás, o livro é mais para problematizar do que para solucionar, porque acho mesmo que as melhores soluções vêm do debate entre várias perspetivas diferentes. O problema é que não há debate sobre este assunto.

É preciso abrir um debate sobre as soluções?

E sobre o problema.

O problema não está interiorizado.

O problema não está interiorizado. Quando em qualquer redação são sujeitos também à pressão dos ‘cliques’ e dos ‘likes’ e da quantidade de gente que está a ver e que não está a ver, também vocês estão a ser alvo desta ‘algoritmocracia’. E também isso condiciona as vossas escolhas editoriais, as palavras que utilizam, os temas que abordam, o estilo de programas que têm.

Isto está mesmo a transformar as nossas discussões políticas. Há dias, na SIC Notícias, deixei a provocação: ‘é também por causa dos algoritmos que vocês - e outros - convidam permanentemente, André Ventura para a televisão. É porque dá audiências e, portanto, está-se a dar um tempo de antena inaudito a um político que tem todo o direito de ir à televisão - e muito mais quando é convidado - numa oportunidade que não é dada a mais nenhum outro, apenas e só porque dá audiências.

Ventura é um ‘político do algoritmo’?

É um dos ótimos exemplos de político que percebeu rapidamente como é que os algoritmos podem jogar a seu favor. Não digo que os algoritmos estão manipulados a favor do CHEGA, não é nada disso que digo. É alguém que entende como é que eles funcionam e percebeu, por exemplo, que utilizar um vídeo a dizer que ‘A humilha B’ tem muito mais visualizações do que ‘A expõe a política setorial do partido’.

Ele percebe que vídeos com deputados a manifestamente humilharem outros e a fazerem piadas de outros têm visualizações e geram repercussão.

Podíamos pensar que repercussão é negativa, as pessoas vão-se revoltar contra isso.

Escreve que as pessoas não penalizam a mentira.

O algoritmo não penaliza a mentira porque o algoritmo não sabe o que é uma mentira. Aquilo que tenho registado é que, nos políticos antissistema, as pessoas tendem a desvalorizar o facto de eles mentirem. Sabemos perfeitamente que quando se diz que as eleições nos Estados Unidos ‘foram roubadas’, para dar o exemplo de Donald Trump, muitas pessoas que votam nele sabem que isso é uma mentira.

Mas porque é que o banalizam e o aceitam? Por dois motivos. Em primeiro lugar, a sociedade está tão polarizada que o inimigo é pior do que a mentira. Preferem mentir e dizer que as eleições foram roubadas a permitir que venha uma presidente, que seria Hillary Clinton, acusando-a de ter uma rede de pedofilia montada numa pizzaria, que era uma das teorias da conspiração que existia. E se pensarmos que aquelas pessoas acreditam que ela tinha mesmo uma rede de pedofilia montada, se calhar percebe-se que a pessoa aceita a mentira.

Por outro lado, os políticos antissistema representam uma espécie de vingança face ao sistema. E há muita gente que se sente vingada de cada vez que os políticos “se marimbam” no sistema. É uma espécie de salvo conduto para poderem abanar o sistema. Se outro político visto mais como do sistema utilizasse as mesmas técnicas, provavelmente seria bastante penalizado. E, portanto, há um certo terreno desigual, que procuro também descrever no livro, de como é que isto acontece e o que os algoritmos têm a ver com isto.

Mas há algo humano - demasiado humano, diríamos - numa frase que deixa no livro. Alimenta uma certa esperança de que as pessoas se cansem disto.

É a esperança de muita gente de que isto é tão barulhento, a sociedade está tão crispada e conflitual, que um dia vamo-nos fartar disto e, portanto, vamos preferir de novo pessoas que falem com voz pausada e deputados que sejam educados uns com os outros

É uma esperança humana, não muito digital.

É muito difícil hoje olhar para este Parlamento e saber sequer como é que se toma conta de um grupo parlamentar que está permanentemente a causar problemas.

Levanta no seu livro o problema das instituições não agirem.

As instituições têm dificuldade em agir, porque as suas regras são muito mais frágeis do que pensamos. Estão baseadas num pressuposto que está a ser posto em causa: ‘estou de acordo com essa regra, aceito que perdi as eleições, aceito que não posso tirar a voz àquela pessoa’. Se não aceito, as instituições começam a ficar mais frágeis.

Voltando ao ponto da esperança, a história ajuda a ter essa esperança. Houve momentos de maiores conflitualidades e de crispação que depois, muitas vezes, geraram catástrofes e a sociedade voltou a um certo equilíbrio. Porém, há qualquer coisa de novo aqui. É este clima de ‘mata e esfola’ permanente. Estamos permanentemente a ser alimentados e estamos sempre a dar produto para ficarmos ainda mais viciados nisto e a querer mais.

Yuval Harari, bastante mais pessimista do que eu, escreve que os algoritmos têm - e é verdade - uma componente aditiva de vício. E claramente temos. Hoje vemos como todos estamos viciados nos telemóveis e as crianças estão viciadas no telemóvel. Ele sugere que temos de tratar o algoritmo da mesma forma que estamos a tratar o álcool, a droga ou o tabaco. É preciso criar regras, porque isto está-nos a viciar e o meu medo é que isto nos vicie em conflitualidade.

Mas esses vícios foram tratados ou com abstinência ou com terapia de substituição. Como é que isto se pode fazer com o algoritmo?

É verdade e, portanto, é preciso esta conversa que estamos a ter aqui. É preciso uma certa consensualização sobre o que é que estamos a fazer, do que é que estamos a lidar.

Percebo as pessoas que dizem que isto ainda está a começar, que ainda é cedo, é preciso ver mais, avaliar consequências, defendendo que não podemos agora inventar regras para algo que ainda não se conhece muito bem.

Não se conhece muito bem, mas o algoritmo conhece-nos melhor do que ninguém. E não tenho qualquer dúvida que estamos e vamos continuar a ser profundamente influenciados.

Os relógios digitais inteligentes já nos condicionam, porque já nos dizem a que horas é que temos de nos levantar, a que horas é que temos de ir dormir, como é que fazemos e não fazemos

Gostava de recuperar uma liberdade que sinto que está perdida. Não me podem dizer que a minha liberdade é não estar nas redes sociais ou não ter telemóvel, porque isso é uma opção inexistente.

Propõe mais literacia mediática. Mas, por exemplo, o programa de assinaturas de jornais para jovens falhou. Pode ser uma boa terapêutica mal aplicada?

Acho que é importante que, quando damos aulas, ensinemos as pessoas a tentar olhar para o contexto daquilo que aparece. Exemplos de manipulação algorítmica, exemplos de notícias falsas.

Temos de ensinar as pessoas, as crianças, os jovens, a identificarem e sentirem os sinais de que algo está manipulado e descontextualizado. Tem de ser com exemplos práticos e concretos, não apenas dizer às pessoas que leiam jornais ou que os jornais são mais fidedignos do que as redes sociais, porque isso não é necessariamente verdade. Temos que fazer com que as pessoas tenham capacidade de filtrar, identificar e procurar o contraditório.

É por isso também que explico muito como é que funcionam os modelos de linguagem natural, porque é que os CHAT GPT não podem ser instrumentos de acesso ao conhecimento único, porque dão-nos visões enviesadas, parcelares e muitas vezes confirmatórias. Por isso essa literacia é importante.

Porque propõe que os trabalhos de verificação de factos entrem na notícia?

Faz pouco sentido que o ‘fact-check’ seja uma espécie de uma secção dentro de um jornal ou de uma redação. Se concluo que um político mentiu, eu não posso classificar algo como uma mentira e tratá-lo num debate como se ele não tivesse mentido.

Às vezes essa verificação demora tempo a fazer.

É verdade. Não estou a dizer que é no momento. Mas quando esse político voltar a aparecer, tem que esclarecer aquilo que disse. O ‘fact-check’ é uma espécie de uma secção que não tem consequências. Também explico quais são as deficiências dos verificadores de factos num mundo de algoritmos. A bolha que recebe a mentira poucas vezes recebe o desmentido. E quando recebe o desmentido, acha que é mais uma prova de que o sistema está feito contra a pessoa que mentiu.

Por fim, o Digital Service Act e o AI Act poderão fazer aqui alguma diferença no enquadramento europeu?

São boas tentativas de começar a dizer às empresas que há algum tipo de regras que elas têm de cumprir e tipos de riscos que têm que ser evitados.

Não sei se são as melhores legislações, mas temos de ter alguma humildade de dizer que a legislação pode não ser a melhor, mas temos de começar por algum lado.

Temos de ir por tentativa e erro aqui?

Também temos de começar a ir. Confesso que defender regulação é uma coisa que nunca pensei que me acontecesse na vida. Sempre defendi desregulação e quando tive oportunidades de governo desregulei tudo aquilo que pude. Só que, neste caso, não estamos a falar de regular a mais. Estamos a falar de algo que não tem regulação. Zero. E a regulação serve para resolver problemas.

Só temos sinais de trânsito e a regra de que a prioridade é de quem vem da direita, porque um dia tínhamos carros a mais e não tínhamos regras para tentar descobrir como é que isto podia funcionar. E houve um momento em que se decidiu que é melhor criarmos aqui umas regras e que não anda tudo à velocidade que quer, colocando uns sinais de trânsito, para organizar a vida em sociedade.

Isto condiciona tanto a nossa vida em sociedade que se calhar temos de começar a criar algumas regras. Depois podemos discutir se a regulação é boa ou má, mas é preciso algum tipo de regulação, não tenho dúvidas. É a primeira vez na vida que o defendo - não sei se isso me dá autoridade ou se retira, mas os leitores e os ouvintes depois de lerem o dirão.

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