26 jul, 2023
A Península Ibérica tem dois países, Espanha e Portugal, cujas interligações históricas suscitam, e bem, inúmeros paralelismos e comparabilidades. Na época contemporânea, os regimes de um e de outro lado da fronteira (monarquia liberal, república e ditadura) foram praticamente síncronos, e as transições para a democracia (“pactada” em Espanha, revolucionária em Portugal) colocaram os dois países na senda do reencontro com a Europa, na qual ingressaram juntos em 1986. Não espanta, portanto, que as eleições gerais em Espanha tenham sido observadas com muita atenção em Portugal, com vista a 2026 (será antes?). Afinal, onde a Espanha tem PP+Vox e PSOE+Sumar, Portugal tem PDS+Chega e PS+BE. Acontece que estas equações são enganadoras, porque o contexto político-eleitoral espanhol tem especificidades que não existem do lado de cá da fronteira. E, como se viu no passado domingo, são elas que, afinal, irão condicionar a difícil tarefa de encontrar um governo viável a partir das contas apuradas nas urnas.
Há mais de cem anos, já no estertor da monarquia constitucional espanhola, José Ortega y Gasset cunhou a imagem das “duas Espanhas”: a “España Vital”, otimista, progressista, futurista, urbana, jovem, remexida e republicana, e a “España Oficial”, conservadora, elitista, ruralista, estabelecida, prudente e monárquica. Aquela esquerda e esta direita discutiram entre si o século XX espanhol, em 1923, em 1931, em 1936-39, em 1975-78. As suas identidades e os seus conflitos cavaram uma fronteira dicotómica muito mais forte do que a fronteira porosa entre direita e esquerda portuguesas, mais afeitas ao “centrão” dos interesses do que no país vizinho. Se o bipartidarismo espanhol saiu reforçado do 23J (PP e PSOE somarão quase 74% dos deputados nas novas Cortes), a distância entre Feijóo e Sanchez é maior que nunca, porque enraizada naquela oposição estrutural entre as duas Espanhas. Portugal também é um país dual, mas é-o mais em termos sociológicos e territoriais, de interior vs. litoral, do que em termos ideológicos, entre projetos político-partidários mutuamente exclusivos.
Acresce que a Espanha é uma federação envergonhada de “nações” e de regionalismos autonómicos mais ou menos separatistas ou independentistas. Dos 15 partidos candidatos às eleições de domingo, 11 são regionais. Os nacionalistas bascos já disseram que tolerarão o PP, mas sem o Vox, que é também o anátema de todos os que de Madrid querem mais autonomia e concessões. O Junts, da Catalunha, já disse que só ajudará o PSOE mediante o indulto total do golpe separatista catalão de 2017. Isto é: qualquer que seja o governo em Madrid, Feijóo ou Sanchez estarão sempre reféns da dinâmica centrífuga que tanto complexifica a vida política espanhola – um desafio que nunca Açores ou Madeira colocaram sobre Lisboa e que deve servir de aviso aos que associam a regionalização a mais liberdade.
Finalmente, e para falarmos do elefante na sala, o Chega não é o Vox. A direita radical espanhola tem um lastro ideológico histórico, implantação nacional, pensamento estruturado, nomes importantes para lá de Abascal, e uma militância de anos contra uma também maior deriva espanhola de radicalismos fraturantes de esquerda. Sim, há nele um veio neofranquista que é prejudicial à democracia. Por isso o PP terá sempre maior dificuldade em “geringonçar” com o Vox do que o PSD com o Chega, também radical, mas, até ver, mais inofensivo. E quanto a um eventual “Sumar” português, bastará lembrar o fosso que existe entre bloquistas e comunistas lusos para percebermos que Mariana Mortágua jamais será uma Yolanda Díaz.