José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​O "bom povo" e a "canalha"

28 mai, 2025 • Opinião de José Miguel Sardica


Se vota por nós, o povo é bom; se vota contra nós, é ignorante; e a democracia, tal como as redes sociais, só é útil nas nossas mãos.

A hecatombe eleitoral das esquerdas nas eleições legislativas, que o magro crescimento do Livre não apaga, transformou o tradicional bipartidarismo centrista português num novo tripartidarismo, no qual as três forças da direita (AD, CH e IL) têm, pela primeira vez, uma maioria de mais de dois terços do parlamento. O facto chave foi insofismável: o PS passou a valer o mesmo ou menos do que o CH, a CDU recuou e o BE quase desapareceu. Contudo, em vez de humildade, autocrítica, compreensão do mundo e tolerância democrática, essas mesmas esquerdas têm acumulado exercícios retóricos que oscilam entre a jactância e a fúria, a vitimização e a intolerância, a hipocrisia e o desespero. Tudo isto cega-as para verem o óbvio: foram derrotadas pelo livre e soberano exercício do voto dos portugueses que optaram por não confiar nelas, escolhendo reforçar mais a AD, muito mais o CH e um pouco mais a IL.

E o que disse a esquerda? Em vez de olhar para os factos e para os números, fez a fuga para a frente, refugiando-se numa narrativa que tem dois refrões: a) os portugueses não perceberam a beleza iluminada das propostas de Pedro Nuno Santos, Mariana Mortágua ou Paulo Raimundo; e b) não perceberam porque uma conspiração racista, fascista, xenófoba e iletrada caiu sobre o país, obnubilando juízos e carreando os ingénuos eleitores para os braços de um canto de serpente. E desta narrativa retiram-se já consequências e uma dupla linha de ação a impor à AD do alto do seu majestoso menos de 1/3 do total parlamentar: a) é preciso reforçar o cordão sanitário de guetização do partido de André Ventura; e b) a AD, que subitamente descobriram ser afinal democrática, tem de dialogar com as esquerdas que fizeram o que fizeram e disseram o que disseram do PSD desde o golpe da “geringonça” à arrogância da maioria absoluta de António Costa!

Não perceberam nada e não aprenderam nada: foi o autofechamento, a oligarquização, os compadrios e corrupções do sistema (de que o PSD também é culpado), o wokismo intolerantemente policiador de pequenas esquerdas inflacionadas pela vaidade e pelos media, e a arrogância dos “donos do regime” e seus apêndices que fez insuflar o CH. Não há, em Portugal, 1,35 milhões de fascistas, racistas ou facínoras, para lá de que banalizar a palavra “fascismo” é sempre perigoso. O que há é um país cada vez mais numeroso na rejeição “disto” que existe. Não são deploráveis, nem ignorantes; se calhar, são só democratas (muito) descontentes. Eu não votei no Chega: mas tratar os seus eleitores como as esquerdas persistem em fazer demonstra que são elas que não respeitam a expressão democrática do voto.

A suposta superioridade moral da esquerda é um “must” da tradição portuguesa. Os republicanos tomaram o poder, em 1910, pretextando só eles poderem e deverem pastorear o «bom povo», que teorizavam como barro moldável nas suas mãos demiúrgicas. Mas sempre que o «bom povo», mantido ao largo pela oligarquia lisboeta do Partido Republicano, dava em protestar, porque não votava, passava fome, lhe fechavam a Igreja ou o forçavam a partir para a guerra, passava a ser a «canalha», varrida da rua pelo «racha-sindicalistas» (Afonso Costa) e suas milícias da «formiga branca» (a linguagem citada é da época). Um século depois, o vício de postura mantém-se: se vota por nós, o povo é bom; se vota contra nós, é ignorante; e a democracia, tal como as redes sociais, só é útil nas nossas mãos. Se não, não! É por isso que as esquerdas não conseguem perceber ou aceitar que quem hoje vota no CH já votou ao centro ou mesmo nelas (ou arrancou-se à abstenção para protestar), resvalando para a leitura antidemocrática de que o «bom povo» se tornou a «canalha».

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