17 jan, 2025 • Manuel Fúria
É público que futebol não é desporto. Desporto é uma coisa que se faz ao fim do dia entre amigos. Ou para alcançar magreza. E diz-se dele que é o que acontece quer se ganhe, quer se perca; da pobre expressão “ganhar ou perder é desporto”. Ora o futebol é inimigo fatal deste manso e terapêutico modo de pensar. Insano, quando todo o desporto é saúde, e contudo tão elementar no meu horizonte vital.
Não deixa, por isso, de causar escândalo chamar “Desportivos” às publicações que tratam do tema. Devíamos estar despertos para o equívoco. E para o eufemismo: tão cara-de-pau quanto dizer que na escola tínhamos aulas de “Educação Física”. Não tínhamos. Jogava-se à bola. E de vez em quando lá se faziam uns passes de uma ou outra modalidade para não parecer mal. Ainda hoje carrego as penas desta sobredosagem de pé-na-bola, tendo a fama (sem proveito) de dois esquerdos.
Pois, se eu tivesse uma coluna num “desportivo”, seria assunto sério. Intensa, como as sobrancelhas do Luís Miguel Cintra são intensas. Intrépida, como Paiva Couceiro foi intrépido. Um bastião de oposição lírica; suicida como só a pena romântica pode ser suicida. Uma Monarquia do Norte da bola. Uma Vendeia dos campos relvados. O último suspiro, do último mosquete, na última mão, do último braço, do último neurasténico de pé em Évora-Monte. Embriagado em benfiquismo.
Diria reaccionaríssimas atrocidades, de um romantismo insuportável. Que, mais que ultrapassadas, julgar-se-iam textualmente impossíveis, malpropícias, resvés Conde Ferreira. Os comentários seriam odiosos. Insultar- me-iam de tudo: “Quem é que pensa este que é?”, “Ingénuo!”, “Tartufo!”, “Tanto arabesco para nada.”, e assim por diante. Deixar-me-ia capturar pelo mais assassino melodrama futebolístico e, rumo aos moinhos-de-vento, lá ia eu.
Seria uma espécie de obituário. No qual só escreveria sobre o que morreu. Tornar-me-ia num especialista da frase curta e evocativa: “Onde um dia se praticou o futebol”, “Um homem que foi, ele próprio, a totalidade do desporto português”, ou “Tirsense: aqui jaz uma cidade”. Firmaria assim as mais pungentes inscrições tumulares.
Mas estes fantasmas, compreenderia o leitor, tal como numa fita de Tim Burton, seriam vibrantes, luminosos, mais vivos que os vivos. E ficaria claro, também, que quem apodrece e contamina os campos da bola é esse conjunto de sinistras realidades e personalidades às quais se chama, com pusilanimidade: “Futebol Moderno”. Os agentes e os presidentes; os príncipes e as arábias; as SADs e os fundos, e os mundos, de ladrões e transacções, de milhões e de barões, que nunca vestiram calções.
E ainda assim a bola fica. E um indizível leva o homem a abandonar temporariamente o lar para ir ao Estádio vê-la rolar. Insistiria que esse espírito pode já ter sido mais evidente, resplandecente; como o Taj Mahal, ligeiro e imponente. Ilustraria ainda que as claques são o seu sacrário; que apesar de tudo têm o coração no sítio certo e são elas a Irmandade do Anel.
A coluna seria sobre aquilo que se pensa e não se diz. Que se diz e não se escreve. Que se escreve e não se assina. Que se assina e se arrepende. Desconsiderando toda e qualquer razoabilidade, todo e qualquer sentido de “realismo” (irra!). Tentando recuperar em cada ponto e vírgula, aquela fracção desmesurável em que, rente a um paralelo a fazer de poste, marquei golo; e o muro da feira em Santo Tirso, foi o Terceiro Anel, e o pequeno Manuel, Rui Águas.
Clarificaria o seguinte: o actual Estádio da Luz é uma fraude; João Noronha Lopes é o nosso legítimo Presidente; o Sporting não existe, só existe o Anti-Benfica; o F. C. Porto não é uma nação; a Lei Bosman estragou tudo. Falaria sobre o Paneira e o Bernardo. José Maria Nicolau e Felix Bermudez. Jorge de Brito e 1979. Eis o que diria de uma vez só: o verdadeiro futebol encontra-se hoje mais numa Assembleia Geral do que num jogo.
Seria assim, destrutivo como as paixões são destrutivas. E o leitor ficaria a perceber que os bons velhos tempos invocados não moldariam o carácter da crónica para uma coisa do tipo entusiasmo por carros antigos. Pelo contrário. Começando no título, o ponto de vista seria cristalino, como toda a loucura é cristalina. E a pena seria livre como só uma conversa de bifana na mão pode ser livre.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome