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Manuel Fúria
Opinião de Manuel Fúria
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​A carne e o tempo

31 jan, 2025 • Opinião de Manuel Fúria


Estes homens tinham 25 anos quando eu nasci, em 1983. Mas, para todos os efeitos, naquela noite, o velho era eu, e não era uma alegoria exuberante: eu era mesmo católico.

Não tenho qualquer recordação de quando Portugal era um país de velhos. Não me calhou em sorte. É uma coisa que lamento, eu que desde novo velho me sinto. Calhou-me o país do cartão jovem, da conta jovem, da moda jovem, da neurose jovem. Uma terra que abomina a velhice; que tem medo da carne e do tempo.

Tomo o meu café e depois outro, fumo o primeiro cigarro e assim sucessivamente. Faço a barba e aperto a gravata, levo os miúdos. Compro os jornais que quase sempre leio. Se calha passar por alguma das obscenidades em cartaz, baixo os olhos; e levanto o chapéu quando me cruzo com a Senhora Edite. Faz 16 anos em Maio que o cabelo me cai, e mesmo assim, só essa eventualidade me leva a colocá-lo na cabeça. E assim por diante, como um burro que fica de pé até à alvorada, pratico o meu dia no mais esplêndido velhismo.

Neste Portugal embriagado em puberdade, é natural que o leitor possa tomar estas palavras como uma alegoria exuberante, um fascínio de parada. Compreendo bem o mal-entendido.

Também o Edgar Pêra se enganou a meu respeito. Há muitos anos, numa Sexta-feira de Cais do Sodré, o bem-intencionado realizador tentava resgatar a minha reputação artística à mercê de um respeitável pós-modernismo - “Calma, [ele diz e faz estas coisas], mas é provocação”. Ora, o mestre, Pedro Ayres Magalhães, que partilhava connosco aquela mesa impossível, do alto do seu venerável fastio, responde - “Não faz não; ele é mesmo católico”. Um silêncio incómodo e sanguíneo apoderou-se da cara do realizador que, anos antes, me tinha ensinado o que era a renúncia. (Foi durante uma sessão de Marialva Mix, que num acto de pura afectação, levantei-me e saí da sala).

Reparem, estes homens tinham 25 anos quando eu nasci, em 1983. Mas, para todos os efeitos, naquela noite, o velho era eu, e não era uma alegoria exuberante: eu era mesmo católico.

Dizia que me sinto velho. Mais que um sentimento, coisa que hoje tendo a menorizar, é uma insurreição a favor da infância alheia. O jovem é o incompleto, o que ainda não é. Ai de mim roubar-lhes a condição precária de que ainda padecem. Os meus filhos (e os filhos dos outros) nunca me ouvirão dizer - “tenho um espírito jovem!”. Nem verão as marcas desses fantasmas no meu corpo. Não farei aos meus filhos (nem aos filhos dos outros) a desfeita de me tatuar, ou cortar o cabelo à desenho animado japonês. De me plastificar com injecções ou de calçar sapatilhas de circo, vestir roupa de circo, falar como artista de circo.

O jovem precisa da margem para se edificar. Por isso os marginais são quase sempre gente nova, e é bom que assim se mantenha. Depois crescem e tornam ao centro da vida como ela é. Os drogados septuagenários que nas margens da Avenida de Ceuta ficaram, não são senão a mais pura manifestação do feitiço do Pã. São eles as crianças. São eles os meninos perdidos que perdidos ficaram. Mas hoje, é para a margem higiénica que o velho é empurrado. Esses lares, esses lugares, edifícios de impecabilíssima razoabilidade, onde o velho estufa e é ocultado para sempre.

Ontem na Segunda Circular, Ágora em drive-in ou a alegoria automóvel da cidade onde todos comunicam, avançava a cair de podre, tranquilíssima e inabalável, uma Peugeot 505, de 80 e troca-o-passo. Disse logo para a Catarina - “Sempre gostei desta carrinha”; verdade, o meu tio Gil tinha uma igual. Abrando para me aproximar e espreitar lá para dentro. Respiro fundo de contente: curvados, chapéus enterrados na careca, dois fósseis do tempo do hidroavião e do barco a vapor. Dos que ainda jogam à bisca e pagam em dinheiro. Daqueles que, mesmo sob o mais cinzento e implacável céu deste soturno mês de Janeiro, só acendem os faróis quando lhes apetece.

Ali estavam eles, no centro da vida a acontecer, à margem da margem, cercados pela vastidão tecnológica, pelas luzes automáticas ligadíssimas no máximo. No gesto elementar da sua desvelada existência, eram de súbito, a inversão de João Cesar Monteiro na Comédia de Deus - “Não são vocês que nos expulsam, nós é que vos condenamos a ficar”.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome

Comentários
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  • Rui Lima
    31 jan, 2025 Barcelos 17:56
    Belo artigo. Este país não é para velhos?
  • Alek Doo
    31 jan, 2025 Faro 17:39
    Gostei. E partilhei.
  • Maria
    31 jan, 2025 Lisboa 15:07
    Até que enfim boas crónicas que nos deixam a pensar , sem vaidades nem pretensões… e que não são mais do mesmo !
  • Henrique Manuel de C
    31 jan, 2025 LISBOA 14:20
    Muito bom e muito bem escrito.
  • Conceicao Ļima
    31 jan, 2025 Moreira de Cónegos 09:59
    Tu és , espantosamente, um " velho" que desafias o pensame to jovem...Parabéns!