15 mai, 2025 • Pedro Vaz Patto
O Papa Leão XIV esclareceu já a razão da opção por este seu nome, que a muitos surpreendeu. Trata-se da evocação do último Papa com esse nome, Leão XIII, que marcou a história da Igreja sobretudo através da sua encíclica "Rerum Novarum", a qual lançou as bases da versão moderna e sistematizada da doutrina social da Igreja.
Leão XIV vê nessa encíclica um modelo para enfrentar as “coisas novas” (“Rerum Novarum”) de hoje (a revolução da inteligência artificial) como foram enfrentadas as “coisas novas” desse tempo (a industrialização com os dramas socias a ela associados, em especial no que às condições dos trabalhadores dizia respeito).
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Essa encíclica, do ano de 1891, foi sendo sucessivamente celebrada com a publicação de outras marcantes encíclicas sociais: aos seus 40 anos com a "Quadragesimo Anno", de Pio XI, aos seus 80 anos com a "Ocotgesima Adveniens", de Paulo VI, e aos seus 100 anos com a "Centeisimus Annus", de João Paulo II.
Já isso poderá indicar que mantém uma perene atualidade, apesar da sua vetusta idade. Certamente a sua linguagem não será a que hoje seria usada e o contexto social e eclesial que a rodeava em muito se foi modificando. A partir dela a Doutrina Social da Igreja foi sendo aprofundada, completada e enriquecida, também de modo adequado a essas mudanças de contexto. Mas pode dizer-se que muitas das suas visões, então longe de serem consensuais, foram sendo confirmadas pela experiência. E, mesmo assim, ainda hoje devem ser recordadas, porque são muitas vezes esquecidas.
A "Rerum Novarum" denunciou vigorosamente a tese de que as condições do exercício do trabalho assalariado deveriam ser sujeitas às regras do mercado, como qualquer mercadoria, salientando que a assimetria entre empregadores e trabalhadores (para cada um destes o trabalho é necessário como condição de sobrevivência, aqueles podem escolher entre muitos candidatos) falseava a autêntica liberdade contratual. Fê-lo nestes termos:
«Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.» (n. 27)
Esta visão contrariava outra então praticada e defendida pelo liberalismo da chamada Escola de Manchester. Mas foi a partir dela que se veio a consolidar o Direito do trabalho. Continua a ser necessário recordá-la quando periodicamente se advoga a autonomia absoluta do mercado (neste como noutros âmbitos), como se dele, sem qualquer corretivo, viesse a solução para todos os problemas.
A "Rerum Novarum" recusou, porém, o socialismo coletivista como alternativa às injustiças do capitalismo liberal. Advertiu para o perigo que representava o domínio absoluto do Estado sobre a economia com o sacrifício do direito de propriedade como garante de liberdade pessoal e familiar (o que haveria de afetar os próprios trabalhadores).
No final do século XIX essa era apenas uma proposta (seguida, porém, por muitos ativistas e intelectuais), mas a sua concretização (o chamado “socialismo real”) veio a confirmar esse perigo, como salientou João Paulo II na encíclica "Centesimus Annus", a propósito da queda do comunismo depois de 1989. Esse alerta e essa premonição também nos fazem refletir hoje na busca de outro tipo de alternativas, consentâneas com a liberdade.
À luta de classes, também então por muitos propugnada, contrapôs a "Rerum Novarum" a concórdia e a colaboração entre elas. Mas realçou também com clareza que é a justiça o verdeiro antídoto contra o ódio, o ressentimento e a violência. Também neste aspeto pode dizer-se que se trata de uma encíclica atual e inspiradora passados que são mais de 120 anos.
O desfio é agora enfrentar as “cisas novas” de hoje com a inspiração dessa e de outras encíclicas. Um desafio para o Papa Leão XIV e também para todos os que, de uma forma ou de outra, lidamos com essas “coisas novas”.