Pedro Vaz Patto
Opinião de Pedro Vaz Patto
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Matar o direito à esperança

03 jun, 2025 • Opinião de Pedro Vaz Patto


O hábito de apresentar exemplos estrangeiros como vias a seguir necessariamente é muito comum em Portugal.

Há quem proponha a revisão da Constituição portuguesa no sentido de tornar possível a aplicação da pena de prisão perpétua a crimes particularmente graves (sem que, porém, se definam com grande rigor os tipos de crime em causa). Alega-se, para além do mais, que essa pena é admissível em quase todos os países da Europa.

É verdade que muitos países europeus admitem a prisão perpétua, como o revela um estudo elaborado pelos serviços da Assembleia da República, acessível no respetivo sítio. Há que considerar, porém, que, de um modo geral, nesses países se prevê a possibilidade de libertação condicional depois de determinado período de cumprimento de pena (e esse facto torna admissível a extradição de Portugal para esses e outros países de pessoas que possam vir a ser condenadas nessa pena). A possibilidade de aplicação dessa pena não impede que, em termos gerais, os períodos de encarceramento na maior parte dos países europeus - revelam-no também relatórios do Conselho da Europa - sejam inferiores aos que se verificam em Portugal. E não será certamente essa a pretensão dos proponentes da revisão da nossa Constituição no sentido da admissibilidade da pena de prisão perpétua. Parece claro que se pretende, com essa revisão, tornar possível uma pena de prisão efetiva que perdure por toda a vida do condenado e que, consequentemente, passem a ser ainda maiores os períodos de encarceramento entre nós.

O hábito de apresentar exemplos estrangeiros como vias a seguir necessariamente é muito comum em Portugal. Neste caso em especial, esse hábito levar-nos-ia a desprezar uma tradição de que, pelo contrário, nos deveríamos orgulhar. Sim, o nosso orgulho nacional deveria salientar o pioneirismo da história da legislação portuguesa no que se refere à abolição da pena de morte e da pena de prisão perpétua. Portugal foi dos primeiros países do mundo a abolir essas penas e esse facto é saudado em muitos ambientes. A abolição da prisão perpétua em Portugal remonta ao Código Penal de 1886. Foi por influência da cultura portuguesa que igual pioneirismo se verificou, no contexto africano, alguns anos depois da independência dos países africanos de língua portuguesa e se verifica na legislação de Macau, em claro contraste com o contexto político chinês que rodeia tal território. De modo algum se têm traduzido tal pioneirismo e tal tradição nas taxas de criminalidade portuguesas, que nos situam entre os países mais seguros do mundo (muitos mais seguros do que outros onde são aplicadas as penas de morte e de prisão perpétua)

A pena de prisão perpétua (tal como a pena de morte) não se coaduna com uma das finalidades da pena hoje aceites pela generalidade dos sistemas jurídicos, incluindo o nosso: a reinserção social da pessoa condenada, ou, se formos mais coerentes e ambiciosos, a sua regeneração e reconciliação com a sociedade ferida com a prática do crime (sem nunca as impor, mas facilitando-as e incentivando-as).

Essa perspetiva é também a do Catecismo da Igreja Católica (ns. 2266 e 2267), que alude à função medicinal da pena. É assim porque a dignidade da pessoa não se perde com a prática do crime, por muito grave que este seja. Na perspetiva cristã, porque «Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva» (Ez, 13, 11). Bem o ilustram as parábolas evangélicas da ovelha perdida e do filho pródigo, ou a figura do bom ladrão.

A pena de prisão perpétua fecha definitivamente a porta da reabertura do agente do crime à sociedade. Apaga aquela “luz ao fundo do túnel” que subsiste mesmo nas penas mais longas. Esse facto desincentiva qualquer esforço de mudança e regeneração e gera desmotivação e apatia que acrescem aos malefícios no plano da saúde mental próprios do encarceramento.

Tal como rejeitou várias vezes a admissibilidade da pena de morte, o Papa Francisco também rejeitou várias vezes a admissibilidade da prisão perpétua (efetivamente aplicada em Itália, onde é designada como “ergastolo”), que qualificou como «pena de morte escondida». Fê-lo na sua encíclica Fratelli tutti (n. 268) e noutras ocasiões (por exemplo, no discurso que proferiu a 14 de setembro de 2019, aos funcionários dos serviços prisionais, acessível em www.vatican.va). Nessas ocasiões, afirmou que a prisão perpétua (o “ergastolo”) «mata a esperança», «priva do direito à esperança» e «priva do direito a recomeçar». E afirmou que «a condenação deve ser sempre para a reinserção; uma condenação sem “janelas” de horizonte não é humana».

Honrar a memória do Papa Francisco (como a dos seus antecessores) é, sobretudo, atender ao que nos disseram.

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