19 dez, 2024 - 09:50 • Inês Braga Sampaio
Se Mónica Mendes tivesse de escolher uma palavra para descrever a sua carreira, enquanto jogadora, seria "resiliência". Agora que pendurou as botas, também quer levar essa palavra para a vida de treinadora.
A ex-central internacional portuguesa, de 31 anos, que se destacava pela polivalência e pela liderança em campo, sente que este foi "o momento certo" para terminar a carreira dentro das quatro linhas. Fora delas, revela em entrevista a Bola Branca, está cumprir o sonho para que já se preparava há muito.
Para trás, deixa uma carreira de sucessos, mas em que "não foi nada dado": "Sempre joguei em equipas consideradas 'underdog'. Porque nunca foi fácil, nunca foi dado, não era suposto ter corrido tão bem. Foi sempre à base do trabalho."
Também para trás fica o desgosto pela forma como foi afastada da seleção, "de um momento para o outro". "Até hoje não houve uma conversa", lamenta.
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Mónica Mendes ficou "muito feliz" com o apuramento de Portugal para o Euro 2025. Ainda assim, considera que é altura de "começar a ambicionar voos mais altos". Isto porque as jogadoras que surgem na formação nacional são cada vez melhores e têm cada vez mais condições para singrar. Nesse sentido, alerta, também, que cada geração deve trabalhar para que a próxima tenha um contexto melhor.
"É importante ser passado, especialmente às mais novas: apesar de terem tudo, não quer dizer que já sejam tudo. Quer dizer que ainda têm um caminho muito grande a percorrer, com melhores condições, logo, se forem responsáveis, podem ser muito melhores do que todas as outras que lá passaram", afirma.
Uma conversa com Mónica Mendes, sobre a carreira, o futuro, a seleção nacional, a importância de trabalhar sempre por mais e a evolução do futebol feminino.
Como está a ser a vida depois de, como se costuma dizer, pendurar as botas?
Pendurar as botas um bocadinho, que eu agora também preciso delas de outra maneira. Mas está a correr bem. Foram seis meses muito diferentes. Não tem nada a ver. Eu já tinha noção, porque nestes anos que estive a jogar sempre dei treinos ao lado. Agora passei a fazer isso a 100% e muda a perspetiva, porque são muitas horas passadas no computador, a preparar as coisas, a preparar os treinos, a agilizar tudo com as jogadoras, com o staff médico, essas coisas todas. Também tenho um assistente que trabalha comigo e que me ajuda imenso, ele é espetacular nisso. Tem sido diferente, muito trabalho de escritório. É uma nova vertente, estou feliz, obviamente. Estou bastante feliz, tenho muito trabalho mas estou a fazer o que mais gosto e isso é muito gratificante.
Eu estudei mesmo para isto. A minha formação é toda na área do treino, sempre com este objetivo. Eu sempre vivi dentro do mundo do desporto, os meus pais estão a vida toda deles ligados ao desporto, portanto acabou por ser uma transição que para mim é muito natural. Sempre soube que, a seguir a ser jogadora, ia ser treinadora. Era isso que queria fazer.
Como jogadora, passaste por alguns clubes e ligas de topo. Estiveste no Milan, no Vålerenga, etc. Que balanço fazes da tua carreira como jogadora?
Houve uma razão muito simples para eu decidir terminar agora a minha carreira. Eu tive propostas para continuar a jogar noutros sítios, mas, sinceramente, realmente sinto-me muito feliz e orgulhosa de tudo aquilo que foi o meu percurso. Não só pelo meu crescimento como atleta, mas acima de tudo como pessoa. Tive muitas experiências, cada país trouxe-me algo que foi muito importante para a minha vida pessoal e profissional e, para mim, isso foi super enriquecedor. Depois, quando cheguei à Suíça, joguei com o Servette, acabei por ser capitã, ganhámos tudo, fizemos história e eu senti mesmo que não havia outra equipa, deixou de fazer sentido querer ir para outro sítio para jogar futebol.
Eu sinto-me muito feliz pela carreira que tive, sinto-me muito orgulhosa pelo caminho que eu fiz, porque foi um caminho baseado no trabalho, no esforço. Não foi nada dado, foi tudo conquistado com a minha dedicação, muitas horas de treino sozinha e com a equipa, muita persistência, resiliência, porque este caminho é muito difícil, para se chegar ao alto nível e ter resultados. No fundo, sinto-me muito contente e muito orgulhosa. Nesta fase da minha vida, decidi que era o momento certo.
Ajudaste o Servette a fazer história. Também foste campeã em Portugal, em Chipre, na Suíça. Qual foi a componente mais feliz da tua carreira e, por outro lado, qual foi a altura mais dura para ti?
É assim, eu sempre joguei em equipas que são consideradas “underdog”. Ninguém dá nada por elas e acabam por ganhar ou ter resultados. Sempre fui para equipas que são equipas, não pelo contexto individual, com superestrelas e não sei o quê. Não. Foi o criar um grupo, a ligação humana, a ligação profissional, as pessoas trabalharem todas na mesma direção. Os resultados que acabámos por ter e que eu acabei por ter ao longo da minha carreira acabaram por ser 30 vezes mais gratificantes precisamente por causa disso. Porque nunca foi fácil, nunca foi dado, não era suposto ter corrido tão bem. Foi sempre à base do trabalho.
Tive a possibilidade de viver muitas coisas e também fui muito resiliente. Acho que é a palavra da minha carreira. Houve muitas vezes em que também me apeteceu desistir, como muita gente, não é fácil. Ir para o estrangeiro – deixar toda a gente, entre aspas, para trás, a minha família – não é fácil, não é? Tenho um irmão muito mais novo, que para mim sempre foi como um irmão-filho, e é difícil. E no futebol feminino temos uma vertente que no futebol masculino não há: eles ganham dinheiro suficiente para poder levar a família com eles, se necessário, e nós não. É um caminho complicado.
Mas o momento mais alto eu diria que foi todo este caminho. Por exemplo, nós qualificámo-nos para o Europeu pela primeira vez, com a seleção portuguesa [sub-19, em 2012]. Isso para mim há de ser sempre uma coisa muito especial. Também ninguém dava nada por nós. Foi mesmo o grupo. Acho que a minha vida, em termos de futebolista, foi sempre isso, foi o grupo, trabalhar muito, ir à luta. Os momentos altos foram esses, que culminaram com o sucesso no Servette, que foi único também.
Dos momentos difíceis, houve muitos. Houve mesmo muitos, muitos, muitos. Tive treinadores a virar-me as costas, tive treinadores e pessoas do futebol a fechar-me portas, tive diretores desportivos a saber que eu tinha oferta de outros clubes e a prejudicar-me, a minha continuação onde estava, tive agentes que nem sempre me ajudaram da maneira como eu precisava. Portanto, tive muito de ir à luta. Na verdade, agora que olho para trás, não posso dizer que foi negativo – até foi bastante positivo, porque me tornou uma atleta muito melhor.
Estiveste nos Estados Unidos, em Itália, Chipre, Suíça, Noruega, Portugal. O que é que tiraste de cada experiência, de cada liga e de cada clube?
Nos Estados Unidos tinha a vertente universitária e também semiprofissional, porque eu fazia questão, no verão, de ficar lá para jogar. Uma experiência muito boa, porque eles são muito sérios. Em termos mentais, de levar o desporto a sério, é o sítio com que mais me identifico. Eles lá levam o desporto como um ingrediente para o sucesso, porque precisam de uma bolsa de estudo para entrarem nas universidades. E depois é os Estados Unidos e tudo o resto, basicamente, na cabeça deles. Então, para se manterem as melhores das melhores, foi a parte física, obviamente, tudo o que é o treino, e exigência, mas, acima de tudo, a componente psicológica foi fundamental.
Em Portugal, eu desenvolvi-me numa geração em que não tínhamos nada, praticamente. Aquilo era à base do amor ao futebol. Lá está: a resiliência, o sacrifício, o trabalho, não darem nada por nós e irmos atrás, esforçarmo-nos. Fazer as coisas pelo amor ao desporto, neste caso ao futebol, e ao nosso país, porque nós, como seleção, sempre conseguimos muito sem ter tanto como as outras. É uma aprendizagem muito grande.
Estive muito pouco tempo na Noruega, mas foi bom, porque o campeonato é mais físico, mas também já tem outras competentes técnicas e táticas que se calhar não eram tão treinadas nos Estados Unidos. Da Suíça, na primeira vez que lá estive, em que também ganhámos o campeonato e a Taça, foi à base do trabalho. Tínhamos treinadores para tudo. Levo muito a exigência do trabalho na Suíça. No Servette igualmente. Foi uma das razões que me levaram a aceitar, porque já tinha um bocado a experiência do que tinha sido antes. Em Itália, é a parte tática, eles são os “masterminds” da tática. Tive treinadores mesmo muito bons taticamente e isso é uma coisa que me enriqueceu e que também levo, agora, como treinadora. Ajudou-me bastante e ajuda-me.
Também foste campeã nacional cá em Portugal. É um sentimento diferente ser campeã nacional no teu país de ser campeã nacional lá fora? Ou nem por isso?
Depende muito, individualmente. Eu sempre senti a responsabilidade de passar a imagem do que é a jogadora portuguesa, porque a jogadora portuguesa não é valorizada no estrangeiro, em comparação com a outras nacionalidades. Dar o meu máximo e ganhar títulos é uma coisa que vem dentro de mim, mas também por esse sentido de responsabilidade que sempre senti, e continuo a sentir, mesmo agora, como treinadora, porque em Portugal há muito talento.
Eu sempre usei a bandeira portuguesa, sempre. Fui campeã da Suíça, da Taça e do campeonato, e como deves imaginar, não foi de bom agrado para muita gente, sendo capitã, ir levantar a taça, na Suíça, com a bandeira portuguesa. E levei sempre a bandeira portuguesa, porque me orgulho profundamente das minhas raízes, de todo o meu processo de formação. Ganhar no estrangeiro é isso que nos dá de diferente. É poder dizer: “Nós, portuguesas, também temos qualidade, também podemos estar aqui.” É um sentido de responsabilidade não só no desporto, mas acima de tudo também social. Os portugueses têm qualidade, podemos chegar a qualquer parte do mundo e vencer.
Falaste do ponto alto do apuramento para o Europeu, o primeiro da história da seleção nacional. Olhando para trás, que balanço fazes da tua experiência pela seleção?
Para mim, jogar pela seleção sempre foi... Não há palavras. É uma coisa muito forte, sempre foi. Eu dou a vida, é mesmo jogar e dar tudo, morrer em campo pela seleção. A sério, tenho mesmo muito amor a Portugal. Tenho uma certa pena de como terminou o meu percurso na seleção, até por tudo aquilo que dei a Portugal. Poderia ter terminado de maneira diferente. Mas aquilo que vivi foi muito especial.
Na altura em que nos qualificámos pela primeira vez para o Europeu, no meu último ano de sub-19, fui eu que marquei o golo, mas tudo o que vivemos nesse estágio… Hoje ainda vejo o vídeo e ainda me emociono, porque aquilo arrepia-me, ver aquele grupo de pessoas, que ninguém dava nada por nós, não tínhamos quase condições nenhumas de treino, jogávamos em pelados com árvores no fim do campo e coisas assim, e conseguimos chegar pela primeira vez na história de Portugal, que é uma coisa imensa, a uma fase final do Campeonato da Europa. E chegámos até às meias-finais.
Foi muito especial. Ainda me lembro, depois de nos apurarmos, ouvir as jogadoras mais velhas na altura dizer: “Ah, nós nunca mais vamos lá voltar.” E nós, dessa geração, dizíamos: “Não, nós vamos conseguir”. E a verdade é que, ao fim de 12 anos, já fomos muitas vezes ao Campeonato da Europa, já chegámos a um Campeonato do Mundo e, se olhamos bem, uma grande base da seleção é esse grupo de 2012. Isso quer dizer muito. Não só conseguimos em 2012, como também conseguimos passar a mensagem às outras gerações de que era possível. Eu acho que isso mudou o rumo da nossa história no futebol feminino em Portugal. Esse momento é marcante e, a partir daí é tudo história. E fico muito feliz em olhar para trás e ver o caminho que temos feito.
Já disseste que a forma como terminou a tua etapa na seleção não foi a melhor. Também já expressaste em público, algumas vezes, insatisfação com algumas questões. O que é que podes contar sobre isso? O que é que te deixa insatisfeita com a forma como terminou e, também, depois, como lidaram contigo?
Eu fui convocada pela primeira vez para a seleção em 2008. E deixei de ser convocada em 2021. Fiz o apuramento para o Euro 2022. Tive um jogo contra a Finlândia [na penúltima jornada da fase de qualificação] a titular e estive bem, fiz o meu trabalho. E estava sempre nesse grupo de jogadoras convocadas. E depois, a Finlândia marca-nos um golo a terminar o jogo e temos de ir a play-off, que era um mês depois. E um mês depois, eu sou a única jogadora que está fora da convocatória.
O que realmente me chateou, falando muito abertamente, é que nunca houve uma conversa, nunca houve um “obrigado, mas olha, não contamos mais contigo porque temos jogadoras que achamos que estão em melhores qualidades do que tu ou que estão mais disponíveis para dar a Portugal”. E está tudo certo, eu sou profissional de futebol, tenho de aceitar, não é? Mas nunca houve uma conversa. Foi assim que acabou o meu percurso na seleção.
De 2008 a 2021 são muitos anos. E estamos a falar de pessoas. E mais, sendo eu uma jogadora que sempre contribuiu para a história do futebol feminino e que esteve sempre a dar tudo por Portugal. Eu não tenho qualquer problema com a federação, estou muito agradecida e acho que a federação, realmente, dá todas as melhores condições e que, no contexto de seleção, não nos falta nada. Mas o que realmente sempre me chateou foi isso, foi que de um momento para o outro, “olha, xau, foste embora, acabou”. E até hoje não houve uma conversa.
Mas pronto, já passei essa fase, está tudo bem. O que vai lá para trás só me tornou mais forte, portanto, não há nenhum mau sentimento em relação a isso. Foi uma aprendizagem. Continuei no meu caminho e, pelos vistos, não me dei mal. Até bem pelo contrário.
Também tiveste uma passagem complicada pelo Sporting, em que jogaste pouco…
Eu só jogava contra uma equipa, praticamente. Não me deixavam jogar contra outra equipa. Quem vir o meu caminho no Sporting foi isso, só joguei contra uma equipa [Torreense], basicamente, o ano inteiro. É incrível, não é? [risos].
O ano em que eu saí da seleção – num mês tudo mudou – coincidiu também com o ano em que eu vim para Portugal com o objetivo de jogar muito no clube que eu ia representar [Sporting]. E a treinadora na altura [Susana Cova], sem querer entrar muito por aí, desde o início fez questão de me meter de lado, sem alguma justificação, vindo eu de um percurso de estrangeiro, sempre a jogar, sempre rotinada… O que é que eu posso dizer? Não posso ficar contente, sendo eu uma pessoa que se destacou em todo o lado onde estive pelo meu profissionalismo, pela minha dedicação, pelo meu trabalho árduo, pelo empenho, tudo, porque eu meto a vida toda no futebol.
Deixou-te também um amargo de boca, essa passagem pelo Sporting?
Claro, até pelo motivo de voltar a Portugal… Eu estava sempre um bocado cética em voltar, porque a dinâmica dos treinos em Portugal é diferente do estrangeiro. Já estava há muitos anos fora e, na altura, a insistência que fizeram – e tinha outras propostas para continuar no estrangeiro – foi precisamente que vinha para Portugal para ter um papel importante na equipa. Depois, se ia jogar ou não, isso tem sempre a ver com o treino, com o trabalho, com aquilo que se faz.
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Mas de um momento para o outro, assim que eu chego – não foi muito tempo depois –, a pessoa em questão começou a meter-me de lado automaticamente, não era capaz de verbalizar um bom “feedback” sobre mim nos treinos ou nos jogos. Começou logo a haver uma tendência de escolhas. Não foi para aquilo que eu fui contratada. E depois, obviamente, que acabou por influenciar tudo o resto.
Sou sportinguista, sempre tive o sonho de jogar no clube. Quando eu comecei a jogar futebol, nem sequer havia o Sporting [feminino], portanto, sempre foi uma coisa que se acontecesse, eu faria o possível para poder jogar. A intenção não foi vir e ir-me embora, a intenção foi vir e ficar por muitos anos, quantos fizesse sentido. Mas só fez sentido um ano. Não deu para viver muito, mas, em termos da estrutura de Sporting, gostei. Gostei dos diretores. O Sporting tem muitas infraestruturas e pode fazer muito mais do que faz. Quem está lá dentro sente isso e há toda uma magia no Sporting que é muito especial.
Foi um ano atípico, foi um ano de resiliência. O bom disso foi que estava perto da minha família, depois também tive a possibilidade de estar perto de um familiar meu que estava em fase terminal, portanto, pronto, digamos que num momento mau houve sempre alguma coisa boa. A família, nisso, foi fundamental.
Portugal apurou-se agora para o Europeu, mais um. Ajudaste a construir a base e agora estão a construir sobre ela. Como é que viste os quatro jogos do play-off?
Há uma coisa que eu gostava que ficasse claro: independentemente daquilo que foi a minha realidade na seleção, eu fico super feliz de cada vez que se apuram. Fico mesmo contente e tenho sempre a oportunidade de mandar mensagens a desejar boa sorte, porque, genuinamente, eu quero o sucesso de Portugal, sempre quis.
Em relação aos jogos, quando saiu este grupo de qualificação, eu na altura jogava no Servette e estava com a Joana [Marchão] e com a Inês [Pereira] e disse, “vocês têm mais do que grupo para se apurarem, portanto é dar tudo, não é facilitar, é darem tudo e boa sorte”. Obviamente que nunca é um caminho fácil e há jogos em que as coisas não correm tão bem e acaba por dificultar. O que eu vi foi uma seleção com muito talento e sim, apurou-se para o Europeu e sempre foi o primeiro objetivo, tenho a certeza absoluta, de todos, mas também acho que é uma seleção que pode começar a ambicionar voos mais altos.
Nós temos cada vez mais jogadoras mais bem formadas, em termos futebolísticos, com as jogadoras a começarem mais novas – as novas gerações, depois de 2012, são melhores, mais completas. E dá para ver. E agora, com as formações dos grandes clubes a apostarem na formação das jogadoras de idades mais jovens, elas vão ser cada vez melhores.
Certo.
Só que é preciso acreditar mais e essa constância de exigência, de estar sempre a 100%, é difícil de ser feita, porque isso trabalha-se no detalhe, todos os dias. Quem está à frente tem feito um bom trabalho, isso é indiscutível, porque os resultados aparecem, mas é importante querer-se mais.
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Porque ao querer-se mais está-se também a elevar a exigência e ao elevar-se a exigência, como fizemos até hoje, faz com que os clubes a que as jogadoras pertencem também queiram mais. Depois, isto é uma bola de neve, não é? Se nós queremos mais, exigimos mais, investimos mais, e as pessoas estão mais envolvidas e há mais pessoas. É isso, fico muito contente, mas acho que Portugal pode começar a pensar também em outras coisa, em outros objetivos um bocado mais altos, sem ter medo de assumir.
Estando a residir ainda na Suíça, vais ver algum jogo da seleção no Europeu?
Sim, tenho de ver o calendário, até porque vai calhar numa altura de trabalho. Vamos ver. Eu vivo neste momento em Sion, sou treinadora das sub-18 do Sion. Portanto, se forem lá, terei todo o gosto. E se estiverem lá perto, também terei todo o gosto, como já falei com algumas pessoas, em ver e assistir, porque, de facto, é muito especial. Eu quero o sucesso de Portugal e quero mesmo que cheguem mais longe.
Jogaste com algumas grandes jogadoras, do Brescia ao Milan, no 1.º de Dezembro, na seleção portuguesa. Quem foi que mais te surpreendeu ou aquela com que foi mais especial jogar? Uma ou duas…
Eu sempre olhei para os dois lados. Por exemplo, era muito amiga da guarda-redes da seleção do México [Cecilia Santiago] e ela, como guarda-redes, é inacreditável. Foi a melhor guarda-redes que alguma vez vi. É inacreditável. E como pessoa é espetacular e depois, conhecendo, o caminho da pessoa, faz-me criar uma admiração pela jogadora. Porque eu percebo, realmente, o que batalhou para lá chegar. As pessoas que me inspiraram sempre foram essas, que vieram de meios muito difíceis, muito complicados e foram sempre atrás do sonho. E são jogadoras espetaculares e , acima de tudo, humildes. A humildade não falta. Não lhes sobe nada à cabeça e isso é uma coisa que eu valorizo imenso, porque também me consigo identificar com isso. São pessoas muito de pés na terra, muito trabalhadoras e são pessoas muito boas, seres humanos espetaculares.
Em Portugal, tive a possibilidade, ainda, de jogar com a Carla Couto, a Edite [Fernandes], a Carla Cristina, que para mim sempre foram referências. Aliás, um dos meus sonhos, que nunca foi cumprido, por uma questão de idades, era poder um dia estar na seleção quando a Carla Couto e a Carla Cristina ainda lá estivessem. Sempre nutri uma admiração muito grande por elas as duas e tive a possibilidade de aprender muito com elas no 1.º de Dezembro. Foram duas pessoas que me marcaram muito e o futebol português muito deve a estas pessoas. Se nós não tínhamos nada, elas então nada tinham.
Como jogadora, eras uma central polivalente. E como treinadora, como és?
O que é que eu posso dizer? [risos] Olha, sou muito exigente, não era de esperar outra coisa. Gosto muito de trabalhar os detalhes, também sou uma treinadora muito humana, aprendi muito com aquilo que vivi. Para mim, o interesse primário é a jogadora como pessoa e atleta, portanto, a saúde das jogadoras está em primeiro lugar, não o resultado. Também porque estou num processo de formação, onde o resultado não é prioridade, senão o desenvolvimento delas, como é óbvio.
Observo bastante, tento melhorar todos os dias, aproveitar as oportunidades que tenho para crescer, também, como treinadora. Amo mesmo o que faço, passo horas e horas diárias e semanais a ajudar as jogadoras a desenvolver-se. Através do vídeo, através de preparação de exercícios específicos para elas, através do feedback, da parte da comunicação, quer seja mesmo – que eu trabalho com uma faixa etária entre os 15 e os 18, na adolescência – na parte mental. Tento, em todos os patamares, ajudá-las no crescimento delas.
Disseste que uma palavra que descreve a tua carreira como jogadora é “resiliência”. Tendo em conta o crescimento do futebol feminino, é uma palavra que gostarias que estivesse cada vez menos associada, no sentido de não serem obrigadas a lutar por tanto para o futuro, à medida que a modalidade evolui?
Claro que eu gostava que as condições fossem outras, todas nós gostaríamos, mas eu até vejo a resiliência como uma coisa muito positiva, porque aquilo que é fácil não nos leva a lado nenhum. Aquilo que é difícil, normalmente, dá-nos finais muito felizes.
Nós podemos querer igualdade, podemos querer melhores condições, mas o que vende é a qualidade do jogo. É a qualidade das jogadoras. O que traz dinheiro, como no futebol masculino, não são as caras bonitas das jogadoras nas redes sociais, nem dos homens. É a qualidade do produto. Portanto, se a qualidade for muito boa, vai vender-se facilmente. E para a qualidade ser muito boa, tem de se trabalhar muito. E para se trabalhar muito, tem de se ser muito resiliente, e para ser muito resiliente, tem de se ser muito persistente. E para ser muito persistente, tem de se chorar muitas vezes, sorrir muitas vezes, cair muitas vezes, levantar-se muitas vezes, ser contrariado muitas vezes, ir na mesma direção muitas vezes. Lá está, eu associo a resiliência numa conotação bastante positiva.
Certo.
Agora, uma coisa também é certa: as novas gerações têm as coisas muito mais facilitadas. Elas já não sabem o que é um pelado, porque já começam a treinar num sintético ou em relva natural. Já não sabem o que é treinar com botas quase rasgadas, porque se calhar não havia dinheiro para comprar umas botas oficiais, porque já têm os sponsors a dar-lhe 500 mil botas. Eu terminei a minha carreira sem o apoio de um sponsor, foi tudo tirado do meu bolso. Nós lutámos para que elas tivessem mais – e, agora, elas têm de perceber que, se têm mais coisas, têm também mais responsabilidades.
Hmm, hmm.
Noutros países, as jogadoras são responsabilizadas e percebem a importância. Nós também temos de perceber que isto foi um caminho da luta. Temos de lutar pelos nossos direitos. E em Portugal, às vezes, eu sinto que há uma estagnação, porque as jogadoras portuguesas não gostam muito de falar, não gostam muito de lutar pelas condições. Gostam de se acomodar.
O caminho foi difícil até aqui, mas tem de ser ainda melhor para quem vem depois, porque senão não crescemos. As coisas não são fáceis. Qualquer pessoa que faça desporto, em Portugal, sem ser o futebol masculino profissional, percebe que é difícil chegar-se longe. É essa resiliência que nos leva mais longe. É isso que é importante ser passado, especialmente às mais novas: apesar de terem tudo, não quer dizer que já sejam tudo. Quer dizer que ainda têm um caminho muito grande a percorrer, com melhores condições, logo, se forem responsáveis, podem ser muito melhores do que todas as outras que lá passaram.