Fórmula 1

Flavio Briatore, “o padrinho” da F1: criminoso, arquiteto da Benetton, de Alonso e de um acidente

15 mai, 2025 - 10:10 • João Pedro Quesado

Autointitulado "ditador democrático" e autor da alcunha "Clube das Piranhas" para a F1, Flavio Briatore faz dela o seu recreio desde os anos 1990. A história do "tribula" italiano envolve ligações à máfia, fraudes, um esquema com um marquês falso e um conde verdadeiro, uma fuga à justiça, a abertura de discotecas e relações dignas de capa de revista.

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“Não é pessoal, Sonny. São simplesmente negócios”. A frase é de Michael Corleone, a personagem de Al Pacino na obra de arte “O Padrinho”, mas não é difícil imaginar Flavio Briatore a usá-la para explicar as mais recentes mudanças na equipa que gere novamente na Fórmula 1.

Aos 75 anos, Flavio Briatore é conselheiro executivo da Alpine, e está agora a cobrir as funções de diretor de equipa (cargo que ficou vago). Esta é a terceira vez que o empresário italiano gere a formação baseada em Enstone — da primeira vez, na década de 1990, chamava-se Benetton; da segunda, na década de 2000, chamava-se Renault.

A Alpine foi notícia nos dias seguintes ao Grande Prémio de Miami por imitar o traço de personalidade da Red Bull na gestão de pilotos: depois de apenas seis corridas, Jack Doohan foi trocado por Franco Colapinto. Mas o argentino tem apenas cinco corridas garantidas nessa altura será feita uma avaliação, o que tem levado muitos a assumir que os outros dois pilotos-reserva da equipa, Paul Aron e Kush Maini, também serão colegas de Pierre Gasly este ano.

Se esta substituição prematura já era algo esperada — desde que Colapinto foi ‘captado’ à Williams, tornando a posição de Doohan desconfortável —, torna-se um pouco estranha ao saber que Flavio Briatore é o agente de Jack Doohan. A saída de Oliver Oakes, até à semana passada diretor de equipa da Alpine, estaria, supostamente, relacionada com este episódio, mas notícias recentes sobre a prisão do irmão alteraram esse cenário.

O homem que atirou a Renault contra o muro

O regresso oficial de Briatore à F1, em agosto de 2024, não foi recebido com pompa e circunstância nem por adeptos, nem pelo paddock. Isto porque, da última vez que esteve na Fórmula 1, e na equipa de Enstone, acabou a ser banido indefinidamente da F1 em 2009 — na prática, banido o resto da vida, o que meses depois foi anulado em tribunal.

Nessa altura, Flavio Briatore era o diretor da equipa Renault na F1 desde 2000, ano em que a marca regressou ao campeonato através da compra da equipa de Enstone, a Benetton (cujo nome só desapareceu em 2002). A partir de 2003, essa equipa passou a contar com o talento de Fernando Alonso, descoberto e levado pelo próprio Briatore, que era (e é) agente do espanhol, para a F1.

Em 2005, foi a Renault (e a Michelin, numa altura em que ainda havia competição no fornecimento de pneus) que melhor reagiu às mudanças no regulamento, quebrando assim a série de cinco título da dupla Michael Schumacher-Ferrari. Em 2006, em luta acesa num dos últimos anos em que motores a explodir em fumo ainda decidiam títulos, Alonso e a Renault voltaram a ser campeões, já com divórcio anunciado para 2007.

Como a ida para a McLaren não correu particularmente bem a Fernando Alonso, o espanhol regressou à Renault em 2008. Contudo, dessa vez, encontrou a concretização do que o fez sair em primeiro lugar: como resultado do investimento baixo da casa-mãe, a equipa não conseguiu acompanhar nem Ferrari nem McLaren na exploração da aerodinâmica, ou a lidar com o fim de ajudas como o controlo de tração.

A equipa não tinha resultados desesperantes, e pontuava regularmente (numa altura em os pontos eram apenas para os oito primeiros), mas faltava uma vitória. Em Singapura, no circuito citadino onde a F1 fazia pela primeira vez uma corrida à noite, essa vitória era possível. Só que um problema de combustível a meio da qualificação tornou-a impossível.

Alonso partiu de 15.º, e fez uma improvável paragem na 12.ª volta para reabastecer e trocar. A estratégia parecia estranha, já que o habitual para os pilotos mais atrás era parar apenas uma vez, mais a meio da corrida (que tinha 61 voltas). Contudo, funcionou: o espanhol acabou por vencer a corrida, à frente de Nico Rosberg (então na Williams) e Lewis Hamilton (na McLaren).

Fulcral para esse resultado foi o acidente de Nelson Piquet Jr. na volta 15. O piloto brasileiro (filho do campeão Nelson Piquet) bateu no muro da curva 17, de forma invulgar, já que pareceu perder o controlo ao acelerar e colidiu com o muro no lado oposto à trajetória de corrida normal. A necessidade de fazer entrar em pista um trator para retirar o carro forçou a neutralização com Safety Car, numa altura em que as regras impediam idas às boxes neste período até todos os carros estarem numa fila única. Quando todos puderam ir às boxes, isso beneficiou Fernando Alonso, que ficou em posição de assumir o primeiro lugar e nunca mais o largar. O erro no semáforo da Ferrari (pela segunda vez nesse ano), que fez Felipe Massa arrancar ainda com a mangueira de reabastecimento ligada ao carro, apenas ajudou à confusão e eliminou o concorrente mais forte à liderança de Alonso.


O facto de Nelson Piquet Jr. ser o outro piloto da Renault, e ter sido visto a “ensaiar” o acidente na volta de formação da grelha, fez com que alguns suspeitassem de o acidente acontecer numa altura tão benéfica para Alonso. Esses eram descritos por jornalistas como “cínicos”, já que “quer-se acreditar que nenhuma equipa estaria alguma vez tão desesperada para fazer um piloto atirar o carro contra um muro”.

Contudo, foi isso mesmo que aconteceu. O escândalo rebentou quase um ano depois, quando Nelson Piquet Jr. foi despedido numa altura em que não tinha somado nenhum ponto em 2009. Sentiu-se então à vontade de contar a história, fazendo os comentadores da Globo afirmar, durante a cobertura do GP da Bélgica, que Piquet Jr. tinha recebido ordens para ter o acidente.

Isso provocou uma reação imediata da Federação Internacional do Automóvel (FIA), que começou a investigar. Cinco dias depois, a Renault já era formalmente acusada de interferir no resultado do Grande Prémio de Singapura de 2008 em conspiração com Piquet Jr. — cujo agente era, claro, Flavio Briatore.

A transcrição do depoimento do piloto brasileiro surgiu então na internet. “A proposta para provocar deliberadamente um acidente foi-me feita pouco antes da corrida, quando fui chamado pelo sr. Briatore e pelo sr. Symonds [diretor de engenharia]”, altura em que Symonds lhe perguntou “se estaria disposto a sacrificar a minha corrida pela equipa ao ‘causar um safety car’”.

Piquet Jr. declarou ainda que estava, na altura, num “estado mental muito frágil e emotivo” por não ter a certeza da renovação do contrato para 2009. E disse que, depois da reunião, Pat Symonds o levou “para um sítio calmo e, utilizando um mapa, apontou-me a exata curva onde deveria um acidente”, e “também me disse em que volta exata causar o incidente”.

Dois anos depois do escândalo de espionagem da McLaren à Ferrari, e no mesmo ano de uma mentira (a mando da McLaren) de Lewis Hamilton aos comissários, a F1 tinha um novo “gate”, o “crashgate”. A meio de setembro, a Renault disse que não iria disputar as acusações, e que Flavio Briatore e Pat Symonds tinham abandonado. A equipa foi condenada a uma desqualificação suspensa por dois anos e, na semana antes de a F1 voltar a Singapura, perdeu patrocinadores em barda. No fim do ano, a Renault vendeu 75% da equipa, antes de vender o restante à Lotus no fim de 2010 — a marca francesa ficou apenas como fornecedora de motores até recomprar a (então depauperada) equipa em 2016.

O incidente, na antepenúltima corrida do ano, teve um impacto óbvio na luta pelo título entre Felipe Massa e Lewis Hamilton. Quando comentários de Bernie Ecclestone, o dono e diretor da F1 na altura do caso, apontaram que a FIA soube do esquema na última corrida de 2008, mas decidiu não investigar, Felipe Massa decidiu processar a FIA, a F1 e Bernie Ecclestone em cerca de 80 milhões de euros.

Era Benetton, o início do "Clube das Piranhas"

Em 2009, Briatore era uma figura estabelecida na F1, mas a controvérsia não era propriamente novidade.

Flavio chegou à equipa Benetton em 1989, depois de passar a década anterior a trabalhar para a marca de roupa em Nova Iorque nos anos de expansão nos Estados Unidos. Em 1990, Briatore passou a diretor da equipa.

A primeira controvérsia aconteceu logo em 1991, quando Michael Schumacher irrompeu na F1, no GP da Bélgica, pela Jordan. Percebendo que o alemão podia ser o próximo piloto definidor de uma era, Briatore roubou Schumacher à Jordan logo na corrida seguinte, dizendo que o acordo do piloto com a equipa que lhe deu a estreia podia ser satisfeito com contratos sem ser de piloto — Briatore disse então a Eddie Jordan "bem-vindo ao clube das piranhas", batizando assim a política da F1. O espaço na Benetton foi conseguido ao argumentar que o contrato com o piloto Roberto Moreno apenas obrigava a equipa a dar ao piloto um chassis, e não um motor, ou sequer rodas.

A decisão causou bastante polémica, com Nelson Piquet (pai do piloto que em 2008 recebeu as ordens para provocar um acidente) a recusar-se a competir na corrida seguinte, e até Ayrton Senna criticou, “porque começa um precedente”. A discórdia de Piquet foi resolvida com uma tática típica de Briatore: a ordem foi dada ao jovem piloto Alessandro Zanardi para vestir o equipamento e passar assim frente à garagem da equipa, simulando uma substituição. A ameaça foi o suficiente para fazer Piquet voltar atrás no protesto.

Briatore seguiu caminho a construir uma equipa à volta de Michael Schumacher, e essa equipa produziu um carro competitivo (ainda que apenas nas mãos do alemão) em 1994 — ano em que a FIA proibiu ajudas electrónicas como o controlo de tração, os travões ABS e as suspensões activas que tinham dominado as épocas anteriores, e atormentado Senna.

Mas Senna continuou atormentado em 1994, suspeitando não só que as mudanças sem reduzir a velocidade potencial dos carros iam provocar mais acidentes — o que se provou, infelizmente, correto —, mas também que nem todos estavam a cumprir as proibições.

Senna tinha razão. Depois da morte do mítico piloto brasileiro, a FIA pediu à Benetton, McLaren e Ferrari acesso ao código fonte dos sistemas de gestão do motor destas equipas. Ao investigar o código da Benetton, a FIA encontrou um sistema de controlo de tração, escondido por detrás de um gatilho que ficou conhecido como “Opção 13”. A equipa eventualmente admitiu a existência do sistema. A FIA, sem provas deste ter sido utilizado em corrida, não pôde fazer mais nada.

Essa não foi a única batota da Benetton em 1994. A outra produziu uma das imagens mais conhecidas da F1 — o carro de Jos Verstappen (pai de Max) envolto numa bola de fogo durante uma paragem nas boxes, de onde apenas saíram queimaduras leves para o piloto e cinco mecânicos.

Essa bola de fogo foi provocada pela decisão da equipa em remover um filtro da mangueira de reabastecimento, permitindo encher o depósito do carro 12,5% mais rápido do que uma mangueira com filtro — ou seja, legal. A remoção desse filtro provocou um derrame de combustível, levando ao incêndio. Mas a equipa não foi punida, depois de surgir um documento da fabricante do equipamento a permitir a remoção do tal filtro.

Das montanhas do Piemonte para as fraudes

De onde veio todo este engenho para a artimanha? Filho de professores da escola primária, Briatore nasceu em Verzuolo, uma pequena comuna no sopé dos Alpes Marítimos, a 60 km de Turim. Em 2005, numa entrevista ao "La Repubblica", comparou isso a nascer “no meio do Congo”.

“Sentia que era alguém sem raízes. Quando me perguntavam o que queria fazer quando crescesse, se era bombeiro, advogado ou notário, respondia que antes de mais queria sair dali, daquelas dificuldades, daqueles esforços, daqueles sacrifícios”, continuou.

E dali saiu. Com a alcunha de “tribula”, como pessoa agitada e pronta a fazer o que for preciso, Briatore abriu um restaurante perto da cidade natal. Quando o restaurante faliu, passou a assistente do dono de uma empresa de tintas.

Esse empresário morreu num ataque de carro-bomba em 1979, num cenário tipicamente italiano: o antigo dono da empresa era um banqueiro da máfia siciliana que branqueava lucros da venda de heroína pelo gangue da família Gambino, e que morreu envenenado na prisão. O contacto de uma empresa nova iorquina dessa família foi eventualmente encontrado na agenda de Briatore, numa investigação a outros crimes.

É difícil acertar nos detalhes do período entre os meados da década de 1970 e o final da década seguinte, até porque Briatore fez sempre questão de não os esclarecer.

Sabe-se que Flavio Briatore se mudou para Milão, onde entrou na indústria financeira, conheceu Luciano Benetton e se chegou a apresentar como produtor discográfico. Foi condenado, na soma de dois julgamentos diferentes, a quatro anos e meio de prisão por fraude na falência de uma empresa, e escapou à prisão ao fugir para as ilhas Virgens — até receber uma amnistia sobre a condenação em 1990.

Em 1986, altura em que Briatore era foragido, o “La Reppublica” relatou outra condenação, a três anos de prisão. Desta vez, o esquema consistia em manipular jogos de cartas para extrair grandes quantias de liras italianas aos jogadores ricos, num cenário com um marquês falso e um conde verdadeiro (Achille Caproni, cuja mulher teria Briatore como amante) que rendeu centenas de milhares de euros.

Entretanto, o “tribula” já geria as operações norte-americanas da Benetton desde 1979, liderando a expansão (através de um modelo de franchising) para 800 lojas nos EUA. Briatore recebia uma percentagem de cada acordo para abrir uma nova loja, permitindo que viajasse constantemente entre Nova Iorque e as Ilhas Virgens e se tornasse proprietário de uma discoteca ao mesmo tempo que acumulava bastante riqueza. Depois de ser levado pelo chefe da Benetton ao Grande Prémio em Adelaide (Austrália), em 1989, ficou ligado à equipa na F1.

Briatore deixou a equipa pela primeira vez em 1997, não largando propriamente a F1 (geria uma fornecedora de motores, a Supertec). Mas, no período entre a Benetton e a Renault, abriu outras duas discotecas, na Sicília e Toscânia, sob a marca “Billionaire” — que entretanto já é também uma marca de roupa.

Foi nesses espaços que conheceu pessoas como Naomi Campbell, com quem namorou intermitentemente entre 1998 e 2003, e Heidi Klum. Briatore é, aliás, o pai biológico da filha de Heidi Klum, mas não faz parte da vida de Leni, que entretanto foi adotada pelo cantor Seal (marido de Heidi entre 2005 e 2014).

Em 2008, altura em que era um dos donos do clube Queens Park Rangers (que abandonou em 2010), Briatore casou. Em 2012, apresentou a versão italiana do "The Apprentice".

No regresso à F1, em 2024, disse que a sua cadeia de restaurantes “está no segmento de luxo de um dos maiores grupos do mundo”. Na mesma entrevista, descreveu-se como um “ditador democrático”.

“Confio nas pessoas desde que elas devolvam a confiança”, acrescentou. Confiança é, claramente, uma palavra-chave na carreira de Briatore, em qualquer uma das vertentes. Apesar de Briatore não se importar de a quebrar para conseguir o que acha melhor a dada altura.

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