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Cristiano Ronaldo 40 anos

Cristiano, o meu pai e o perfume de uma boleia eterna

05 fev, 2025 - 08:00 • Rui Pedro Silva*

Rui Pedro Silva, ex-jornalista e autor do podcast “Matraquilhos”, recorda os momentos virgulados e mágicos que não passou e que passou com Cristiano Ronaldo na infância.

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Ronaldo começou por ser a namorada do amigo que é demasiado boa para ser verdade. Estávamos no verão de 1997, tínhamos todos 12 anos, e comecei a ouvir falar sem parar do que um tal Ronaldo fazia nos infantis do Sporting. Estávamos órfãos ainda do que o outro Ronaldo, o Fenómeno, tinha feito em Barcelona e parecia ser demasiado surreal que, de repente, aparecesse outro extraterrestre com um leque de truques capaz de entusiasmar até o velho do Restelo mais pragmático.

Quem me falava de Ronaldo era um colega de equipa. Ronaldo para aqui, Ronaldo para ali. “É da Madeira”, acrescentava. Na altura Ronaldo só havia um, pelo que deduzi que só podia ser alcunha. Há menos de um ano tínhamos sido todos Ronaldo a bailar por entre florestas de pernas de jogadores do Compostela, do Valência, do Atlético Madrid. Agora, no verão, talvez um de nós tivesse agarrado a alcunha graças ao talento.

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Mas não, Ronaldo era mesmo Ronaldo. Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Ouvi falar de Ronaldo entre setembro de 1997 e março de 1998 sem nunca o ter visto uma única vez. Pensei que talvez fosse bom, mas não assim tão bom.

Até que um dia, em vésperas das férias da Páscoa, houve um Benfica-Sporting em infantis que terminou empatado a dois golos. Não me lembro de Ronaldo ter marcado, mas foi a primeira vez que o vi. Era, na altura, mais baixo do que eu, mas já tinha um nível de qualidade que eu nunca poderia sequer ambicionar alcançar.

Ronaldo foi o terror do lateral do Benfica. Fazia vírgulas, elásticos e pedaladas como se fosse um adulto a viajar no tempo para jogar entre crianças. Ronaldo era real, ainda antes de Madrid. Ronaldo era tudo aquilo que me tinham falado dele, e ainda melhor.

O mito continuou a crescer e um ano depois voltei a cruzar-me com ele, na seleção de Lisboa. Éramos quatro equipas, divididas por zonas, a disputar um torneio na Pontinha. Havia a equipa onde eu estava, a de Ruben Amorim, a que era treinada por Rui Vitória e a de Ronaldo. Quis o sorteio que houvesse um frente-a-frente logo na meia-final.

Ao intervalo estava seis-zero. Para ele, claro está. Tinha a potência de remate de um homem feito, a capacidade de se desenvencilhar de adversários de um MacGyver e o faro pela baliza tão apurado como o de Rex, o Cão Polícia. Marcou dois golos, mas ainda deixou mais um ou dois autógrafos na barra da baliza.

Eu só entrei na segunda parte. Marquei dois golos, de encostar, mas Ronaldo já não estava em campo. Perdemos 7-2 e à tarde íamos estar em jogos diferentes. Foi aí que o meu pai entrou em ação.

Enquanto eu tentava enganar quem via os jogos que os dois golos tinham sido mais do que uma coincidência, Ronaldo era iludido pelo meu pai. O meu pai fez mais amigos durante os onze anos que joguei futebol do que eu. Tinha sempre truques na manga, moedas escondidas entre os dedos, vidros do carro que fechavam e abriam por obra do acaso e uma característica nata para chamar a atenção de crianças.

Para o meu papel, o de filho do mágico, era aborrecido. Eram sempre os mesmos truques, sempre as mesmas frases, sempre as mesmas reações. Para quem o conhecia, era um Houdini em carne e osso. Ronaldo ficou encantado com ele. Se hoje transforma em dinheiro tudo o que toca – e às vezes basta apenas respirar –, na altura não estava habituado a que as moedas crescessem no seu capuz, incapaz de perceber que havia sempre um infiltrado a colocar lá moedas de igual valor sem que reparasse.

O espanto que nos provocava dentro de campo era proporcional ao que sentia com o meu pai. Caiu-lhe no goto. O meu pai no dele e ele no do meu pai. Por isso, na época seguinte, em maio de 2000, quando o Estoril e o Sporting se defrontaram na última jornada do Nacional de Iniciados, ele foi convidado a ficar connosco para o almoço de final da época.

O responsável pelo Sporting autorizou perante a promessa de que o meu pai o entregaria em Lisboa, juntamente com o seu amigo inseparável Fábio, umas horas mais tarde. O almoço foi tímido, mas a viagem de carro trouxe mais conversas e coisas de miúdos de 15 anos a descobrir o mundo.

Ronaldo pediu para ficar em Belém. Ia ter com uma rapariga. “Se vais ter um encontro, então tens de levar perfume”, disse-lhe o meu pai, abrindo o porta-luvas e dando-lhe a escolher entre dois ou três. O meu pai era assim, preparado para as ocasiões. E o Ronaldo lá saiu do carro, perfumado a rigor e com um sorriso rasgado. Foi a última vez que estive com ele.

Mas o meu pai ainda voltou a deixar a sua marca, num jogo da Taça de Portugal em Alvalade. Ronaldo era um dos apanha-bolas e o meu pai chamou-o, com a sua voz de tenor ostracizado pela música. Ronaldo levantou a cabeça, olhou para a bancada, reconheceu-o e acenou, feliz, com a simplicidade de uma criança que ainda não sabe que vai conquistar o mundo.

Hoje, em 2025, não tenho dúvidas de que Messi será melhor que Ronaldo, mas hoje – e durante estes 25 anos – sempre olhei para Ronaldo de maneira diferente. O argentino é distante, inalcançável, pode até ser um extraterrestre, enquanto Ronaldo esteve ali à minha frente no início, de carne e osso, humano ainda antes de ganhar superpoderes.

*ex-jornalista e autor do podcast “Matraquilhos"

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