05 fev, 2025 - 08:00 • Luís Aresta , Inês Braga Sampaio (vídeo), Eduardo Soares da Silva (vídeo)
Antes de começarmos, gostava de te mostrar aqui uma fotografia (em baixo). O que é que esta fotografia te diz?
Uma nostalgia incrível, não é? É engraçado, eu conheci primeiro a família dele na Madeira. Eu só conheci o Cris no começo do ano 2000. Eu já levava aqui um ano em Portugal, e conheci a família dele praticamente toda.
E porquê? Conheceste o pai, por exemplo? A mãe também?
Sim, sim, conheci. A Madeira é um meio pequeno e, como eu jogava no Marítimo, treinava muito no Santo António. Era onde o pai dele trabalhava, havia um campo em cima do campo do Marítimo, que era do Andorinha. Muitas vezes, fui lá treinar também, como eu era júnior no Marítimo. E depois, pronto, andando e caminhando pela ilha, conheci as irmãs e também conheci a mãe dele.
Alguma vez imaginaram, vocês ali a treinar juntos neste momento, creio que em Alcochete, que viriam os dois a dar tanto ao futebol e a marcar uma geração na Europa e na seleção nacional?
É assim, nós estávamos em busca dos nossos sonhos, não é? É engraçado, nós estávamos na pré-temporada, fazíamos treinos bidiários e quem já esteve na academia do Sporting sabe como são os quartos. Tem uma entrada e divide-se para dois quartos. E eu, inclusivamente, fiquei ao lado do Cris na academia.
No primeiro dia, nós treinávamos de manhã, almoçávamos e tínhamos aquela hora de descanso para o treino da tarde. Era às quatro ou cinco horas, e às duas e meia ouvia a porta sempre a bater. Ele saiu do quarto um dia, dois dias, no terceiro dia fui ver e estava ele a sair do quarto, a comer uma pêra e a dizer assim: “Vou ao ginásio, queres vir?” [risos]. E eu assim: “Como...?” [risos]. E, claro, isso já demonstra o que ele queria. Muita gente pode dizer que é sorte, mas não, é por muito trabalho, muita dedicação. E pronto, a partir daí começou a nossa relação.
A primeira vez que vocês se defrontaram foi em 2002/2003, duas vitórias do Sporting sobre o Marítimo, tu estavas em campo, ele não marcou nesses jogos. Mas lembras-te do trabalho que te deu nessa altura?
Sim, ele estava a começar, eu já tinha alguns jogos pelo Marítimo. Ele estava a começar, era aquela sensação do campeonato, todos nós queríamos vê-lo a jogar, até pela irreverência que tinha, a maneira como encarava os adversários e o forte que era para a idade que tinha.
Era um jogador forte, já com muita técnica também e que estava saindo daquele paradigma dos jogadores, ou tinham muita qualidade ou eram muito fortes. Ele conciliava as duas coisas. Era muito rápido também. Tanto é, que aquele golo contra o Moreirense, que eu acho que foi o primeiro golo dele, demonstra muito isso, a força e também a qualidade que ele já tinha.
Tu ficaste, ele acabou por sair para o Manchester United e depois encontraram-se no Real Madrid. Já lá estavas quando ele chegou. O que é que reténs desse momento da chegada do Cristiano Ronaldo?
Sim, a gente já se falava... Eu já tinha estado com o Cristiano na seleção, antes de ele chegar ao Real Madrid, e trocávamos aquelas perguntas “como é o clube?”, se “é mesmo tudo isso o Real Madrid?”. E eu também perguntava sobre o Manchester United, porque também gostava bastante do United, até pelo Ferdinand, que estava lá e eu gostava da maneira dele jogar.
…
Então, quando ele foi para o Real Madrid foi fácil, porque eu já estava lá há dois anos, se não me engano. Já estava adaptado ao que era a cidade e ao que era o clube também e, de certa maneira, pude ajudá-lo, dizendo como é que era, como é que o clube pensava e trabalhava.
Foram oito épocas em comum em Madrid. Há seguramente histórias boas para recordar e algumas menos boas também. Oito temporadas é muito...
Olha, eu tenho um momento com o Cris que nunca me vai sair da memória. Apesar de ter perdido a memória, perdi um pedaço desse jogo. Foi no primeiro jogo do campeonato contra o Valência. Eu recebi uma pancada do Iker [Casillas], abri a cabeça e fui para o hospital. Ainda entrei no jogo [antes disso]. Faltavam cinco minutos, entrei depois do intervalo e, pronto, a partir daí já não me lembro de mais nada.
Lembro-me que, quando acordei no dia seguinte no hospital, estava ainda com o equipamento do Real Madrid amarrado na cama. Depois, ia perguntar à minha família o que tinha acontecido, à minha mulher, que estava a cinco dias de ter a minha filha mais velha, que é a Angeli, e na notícia vejo que o Cris tinha estado lá no hospital!
E tu nem deste por ele?
E eu nem dei por ele! E depois, claro, a minha mãe estava lá, também preocupada porque tinha vindo para ver o nascimento da minha filha, a minha mãe e o meu pai. O Cris esteve lá a noite praticamente toda comigo, com os meus familiares. Comigo não, com os meus familiares, porque eu estava no quarto. Mas ele esteve lá, dando força e alguns comentários que ele fez só demonstram o carinho que temos um pelo outro.
Vocês tinham uma vida social comum em Madrid? Alguma vez cozinhaste para ele ou ele cozinhou?
[risos] Isso não! Era mais fácil eu ir a casa dele, porque ele me convidava muito. Ia a casa dele, nós jantávamos em casa dele, ou algumas vezes íamos jantar fora e depois vínhamos para casa [risos].
Custou a saída para o Besiktas? Ao fim de oito anos, ele ficou em Madrid, tu partes.
É assim, eu falava muito com ele e ele dizia para eu ficar no Real Madrid. Só que eu acho que já tinha chegado o meu tempo no clube, porque foram 10 anos de muita exigência, onde eu abdiquei de muito tempo. Eu tentava explicar-lhe que já não conseguia estar ali pelas dificuldades que estava tendo nessa altura e ele dizia assim: “Se é pelo dinheiro pá, eu abdico do meu dinheiro para te dar!”. E eu disse que não: “Graças a Deus não é por isso, é por outras questões”. Eu também queria voltar a sentir o futebol, e pronto, optei por ir para a Turquia.
Chegas à seleção em 2007, Ronaldo assume a braçadeira de capitão no ano seguinte. Ele, enquanto capitão, nem sempre foi uma figura vista de forma consensual. Teve momentos em que saía mais cedo do relvado, deixava colegas para trás, gostava (e gosta pouco) de perder. Ninguém gosta, mas o Ronaldo tem em particular essa imagem. Como é que lidamos com esse espírito mais irascível, menos tranquilo do Cristiano Ronaldo?
Eu acho que as pessoas têm de perceber que o Cris é uma pessoa que trabalha muito, que abdica muito daquilo que é o seu tempo, daquilo que gosta realmente, por exemplo, de estar com seus filhos, de estar com a sua mulher, de estar com a sua família, para estar com o futebol. Quando um resultado não sai como esperado, nós que trabalhamos sempre… quando se dá o máximo de si, espera-se sempre o retorno, que é uma vitória.
Certo.
Quando isso não acontece, obviamente que nós ficamos muito frustrados e temos reações. É espontâneo, não é nada pensado. Então acho que faz parte, até pela exigência que ele coloca, nele e no grupo onde ele está.
Aquela final de 2016, em Paris, foi o momento mais alto para os dois, em simultâneo?
Sim, foi. Ele já jogou muitas finais. Numa das finais, se não me engano no ano 2016, em Milão, nós estávamos a almoçar – eu acho que ele até já tornou isso público – e ele falou assim: “Não me está a descer a comida” [risos]. Estávamos ali eu, o Marcelo, outros jogadores, e começámos a olhar uns para os outros: “Se ele está assim, imagina como estamos nós” [risos]. Por isso começámos a dizer-lhe: “Cris, se tu estás assim, imagina nós! Jesus, como é que vai ser o jogo?”. Ele assim: “Eh pá, mas é só os primeiros minutos”.
…
A comida não descia antes de uma final. O Cris estava assim, imagina como é que ele estava, o nível de stress. Acho que as pessoas nem imaginam a responsabilidade. Ele tinha muita responsabilidade, porque ele era a bandeira do Real Madrid, jogou uma segunda final com o Atlético de Madrid. Nós tínhamos aquele bichinho de termos de ganhar um título por Portugal. Acho que nós merecíamos ganhar um título e ele particularmente.
Hmm, hmm.
Ele era a bandeira do Real Madrid e a bandeira de Portugal. As pessoas, naquela altura, depositavam muita esperança em nós e, principalmente, nele. Ganhámos a Champions, depois fomos campeões da Europa. Quando ganhámos foi um alívio. Nós falámos depois do Campeonato da Europa. Ele teve a lesão e até parecia que lhe custava recuperar, porque estava tão relaxado... Nós relaxámos tanto depois dessa final. Chegámos ao nosso objetivo, conseguimos o nosso objetivo.
As expectativas em torno da seleção cresceram muito. Veio a Liga das Nações e Portugal venceu. Depois, no Mundial 2022, no Qatar, dá-se aquele episódio do Cristiano com o Fernando Santos, por ter sido substituído no jogo com a Coreia. A seguir não foi titular frente a Marrocos. Tu estavas em campo nos dois jogos. Como é que lidaste com essa situação e como é que ele lidou ?
Internamente, o Cristiano foi sempre muito profissional, não beliscou em nada o que é o grupo. Falava-se muito daquilo na imprensa e nós não somos imunes, aquilo chegava a todos os jogadores. Obviamente, nenhum jogador gosta de ficar fora. Até há seis meses eu treinava para jogar, eu fazia as coisas para jogar. Se eu ficasse de fora, obviamente, que não ia ficar contente, e acredito que também o Cristiano não ficou contente ao ficar fora.
…
Até porque, quando nós falamos em representar a seleção, nós queremos dar o nosso melhor. Não é apenas para meia dúzia de torcedores, nós estamos a representar o nosso país, queremos dar alegria ao nosso povo. Eu acho que foi mais a tristeza disso não acontecer, para o Cris, do que propriamente a outra situação. Depois, logo se especula muita coisa, do que é a relação [entre Cristiano e Fernando Santos], se está certo, se está errado. Acho que ficou para o treinador e para o Cris…
Eu estava em Hamburgo quando, após aquela derrota nos penáltis com a França, te abraçaste ao Cristiano no final do jogo, após Portugal ter sido eliminado. Sentiste que era ali o teu último abraço em campo ao Cristiano Ronaldo?
Eu senti, senti porque… [suspiro, voz parece embargada]
Até te custa falar.
Custa um bocado falar porque a nossa trajetória foi muito paralela, nós os dois, muita troca de sentimentos, muita partilha entre mim e ele.
Portugal vai receber o Mundial 2030 com a Espanha (...)
Cumplicidade, podemos falar assim.
Cumplicidade, exatamente, do que eu sentia em vários momentos de jogo, em vários momentos de treino, em vários momentos da nossa vida, do que era o nosso dia a dia.
Ele tentou impedir que tu parasses já ali a carreira? Falou contigo? Tentou dissuadir-te?
Não, acho que ele sabe que é uma decisão muito pessoal. Acho ele também me conhece perfeitamente, como eu o conheço a ele. Obviamente que dizemos “ainda dá para ir mais um bocadinho, dá para ir mais um bocadinho”, principalmente quando pensamos que um dia esse momento vai chegar para ele. É triste para nós, porque estamos habituados a ligar a televisão e vê-lo dentro de campo, vê-lo a jogar, vê-lo a marcar o jogo.
Achas que ele fez bem em continuar a carreira na Arábia Saudita?
Eu acho que sim, acho que sim. No nosso ciclo do futebol, temos de gostar de quem gosta de nós. É isso que nós falamos dentro do balneário muitas das vezes, e nota-se que o Cris está muito feliz.
Estás a imaginá-lo no Mundial de 2026, a caminho dos 42 anos?
Estou, estou! [risos] Eu imagino! Eu gostaria muito que ele estivesse.
E com que tipo de rendimento o imaginas em campo?
Desde que ele marque golo, o rendimento é o que é [risos]. O Cristiano é uma máquina de marcar golos. Eu acho que qualquer treinador hoje, tendo um jogador como o Cristiano, tem de saber, esse é o meu ponto de vista, que em algum momento ele pode decidir o jogo. Ele, estando bem, estando compenetrado no que é o sistema, no que é o grupo, feliz e sentindo o carinho – e acho que em Portugal sente esse carinho das pessoas –, ele é uma mais-valia sempre para nós.
Há algum detalhe, alguma história do Cristiano Ronaldo que as pessoas não conheçam e que tu queiras aqui partilhar connosco?
Tenho muitas [risos]. Deixa-me ver uma...
…
Eu acho que isso também é óbvio para todos. Nós, no Real, e mesmo na seleção, chegávamos às duas, três da manhã de algum jogo, de alguma viagem. O Cris, enquanto alguns jogadores vão para o quarto descansar, vai fazer a sua água fria. Se estiver ali o massagista ou o fisioterapeuta, ele pede para que estejam ali um bocadinho com ele para poder trabalhar na recuperação, para poder, no dia seguinte, estar bem. Ele perde ali 20, 25 minutos do seu sono, mas também está a recuperar.
É isso que o conserva?
Isso faz com que ele continue dedicado, continue focado. Consoante passa a idade, nós não podemos lutar contra o tempo. Nós, jogadores, não podemos, nem nenhum ser humano, lutar contra o tempo. Mas podemos encurtar um bocadinho mais essa perda.
Ele cultiva aquela imagem do jogador perfeito, o melhor de todos em tudo, mas eu tenho a certeza de que sabes de qualquer coisa em que ele é mau.
[risos] No futebol?
No futebol ou fora do futebol. Mas no futebol, vamos lá ao futebol, em que é que ele podia ser melhor?
Em que é que ele podia ser melhor? Olha, quando ele perde, ele podia ser muito melhor [risos]. Muita gente fala “quando perde...”, mas isso é dele. Se ele perde, perde a essência dele. Quando ele perde e sai primeiro do campo, levanta os braços chateado, a mandar vir e tal, isso faz parte dele. Se ele perde isso, ele vai perder o que é o prazer de estar dentro do campo, de poder competir, de poder olhar para o adversário e dizer “eu sou melhor que ele, eu vou ter argumentos para poder ultrapassá-los”.
Pepe, só falta aqui, para fecharmos, a tua mensagem para o quarentão Cristiano Ronaldo.
[risos] Vou olhar ali para a câmara! Cris, quero desejar um feliz aniversário para ti. Que esses 40 anos sejam repletos de muita felicidade, de muita sabedoria e que, acima de tudo, sejas esse ser humano que tu és, ajudando sempre o próximo. Nós, e eu particularmente, sei que tu és dessas pessoas que ajuda muito o próximo. Que sejas esse pai, esse marido e esse amigo que tu és para os teus, está bem? Um grande abraço, amigo [risos].