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"Tínhamos reuniões por vídeochamada para matar saudades". Foi há cinco anos que a Covid-19 fez o futebol parar

12 mar, 2025 - 11:20 • Inês Braga Sampaio com Redação

Da I Liga aos distritais, o futebol foi obrigado a parar durante a pandemia. A Renascença recolheu relatos de um jogador, um treinador e do presidente do Sindicato dos Jogadores sobre o tempo que "parece que foi noutra vida".

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Dia 12 de março de 2020. A Covid-19 acaba de ser considerada uma pandemia, há 78 casos confirmados em Portugal e o Governo fecha as escolas. Dois dias depois de terem anunciado jogos à porta fechada, a Liga e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) decretam a suspensão do futebol. Foi há cinco anos.

"Parece que foi noutra vida, não é?", desabafa José Vala, treinador, então e agora, do Caldas Sport Clube, que ainda se lembra do último jogo e do último treino antes de o futebol parar: "Parámos de treinar no dia 12 de março. O último jogo foi no [terreno do] Vitória de Sernache."

"Na semana antes, já se falava um bocadinho, já se falava que a China já tinha parado uma série de coisas. Havia alguns países também a adotar medidas de restrição e já se começava a perceber que poderia acontecer qualquer coisa. Mas duas ou três semanas antes, era como se fosse tudo muito longe, ainda. Não era assunto. E nunca ninguém estaria a pensar que ia bater na nossa porta, e da forma como aconteceu", recorda.

O Caldas competia, na altura, no Campeonato de Portugal, que era ainda a terceira divisão do futebol nacional, antes da criação da Liga 3.

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Mais acima na hierarquia, o Tondela lutava pela manutenção na I Liga.

Rúben Fonseca, reforço de verão para essa época, recorda, à Renascença, que foi "complicado" ter de alterar a rotina radicalmente.

"Na vida de um desportista, o facto de sair de casa e fazer exercício físico é uma coisa normal. Pessoalmente, e acho que no geral, os primeiros tempos foram complicados, ter de mudar o treino de campo para um treino diferente em casa. Foi complicado", assume o avançado.

Rúben tinha apenas 20 anos. Mais tarde, contrairia duas vezes o novo coronavírus, com poucos sintomas em ambas as ocasiões.

"Foi aquele choque normal. A liga já tinha voltado e eu tive de ficar uma semana ou dez dias em casa. Foram dias difíceis, claro que ninguém gosta de estar parado. Mas em termos de sintomas e assim, senti-me bem, por isso foi só a situação de estar em isolamento", conta o ponta de lança, que agora representa a Sanjoanense.

"Mais que presidente, era um amigo"

O presidente do Sindicato dos Jogadores (SJ) recorda que, com o agravar da situação no país, "começaram a haver vozes que ficaram cada vez mais com mais dúvidas, com mais medos, com mais fantasmas".

"Criou-se um clima de insegurança, de medo, de contágio. Acho que foi esse o risco maior, foi o medo de contágio", sustenta Joaquim Evangelista, em declarações a Bola Branca.

Na altura, o SJ criou três medidas para ajudar a combater as consequências negativas do confinamento.

O Fundo de Garantia Salarial, para ajudar a compensar o não pagamento do salário no tempo oportuno. Um protocolo com a Ordem dos Psicólogos, para garantir a oferta de mais de 400 profissionais em todo o país, com as primeiras quatro consultas pagas, um serviço a que "ainda hoje os jogadores continuam a recorrer".

"O futebol feminino também viveu este drama. Também acompanhei. Muitas jogadoras também recorreram ao apoio psicológico logo a seguir à Covid", destaca Evangelista.

E o Fundo de Solidariedade Reforçado, "para aqueles que tinham mais carências económicas e sociais, através de uma entrega monetária que pudesse responder no imediato".

"Os jogadores têm acesso direto a mim e eu, todos os dias, tinha situações novas, dramáticas. A Federação adotou medidas extraordinárias, nomeadamente financeiras, pacotes de ajuda, para que os clubes não colapsassem, para que fosse garantido o mínimo aos jogadores. O mesmo aconteceu com a liga, nós próprios também tivemos essas medidas. Senti que muitas das vezes que, mais do que ser presidente do Sindicato, era um amigo, era alguém que dava confiança, que acreditava que os problemas se iriam resolver", revela.

Trabalhar para não jogar

O Caldas não é profissional, o que significa que grande parte dos jogadores do seu plantel tem outras profissões, em que o trabalho continuou.

O treinador recorda um confinamento "complicado", sem treinos, ainda que cada um fosse "fazendo as suas coisas". De vez em quando, fazia reuniões por videoconferência, que "acabavam por ser mais para matar um bocadinho saudades uns dos outros".

"Tínhamos, e ainda temos, um jogador que vendia peixe e andava a vender peixe porta a porta. Fazia as encomendas no WhatsApp, por exemplo, e nós criámos um grupo para fazer as encomendas. Tínhamos outro que vendia fruta na praça e também ia em casa de todos nós deixar a fruta que nós encomendávamos", conta José Vala.

À medida que o tempo passava, começou a perceber-se que o Campeonato de Portugal da temporada 2019/20 não seria retomado.

"Sentimos que acabou ali uma época. Ao fim de um mês, dois meses, já estava a pensar em como é que isto ia passar, se isto ia aliviar um pouco. E depois entrámos no outro ciclo, que foi a época seguinte. Mas também não foi fácil", confessa.

A I Liga foi o único campeonato concluído em 2019/20.

Rúben Fonseca fala à Renascença do "misto de emoções" que os jogadores do Tondela sentiram quando voltaram aos treinos.

"Sabíamos que íamos voltar a fazer mais o que mais gostávamos, e sair daquela tristeza de estar em casa fechada, mas também sabíamos que ainda andava aí o vírus. A qualquer momento, tanto eu, como os meus familiares, como os colegas de equipa, podia passar, e lá está, quando acontecia, como aconteceu com a minha família e com os meus colegas de equipa, não passava despercebido", lamenta.

O som do silêncio

O regresso à competição foi toda uma nova vida dentro da vida curta, mas que nunca mais acabava, da pandemia. Regulamentos, protocolos, testes e mais testes, jogos que eram adiados devido a surtos de Covid-19.

Joaquim Evangelista destaca a "articulação Federação-Liga-Sindicato, um dos melhores exemplos em todo o mundo" de colaboração.

"Uma cooperação que ajudou muito também à estabilidade profissional dos jogadores, apesar dos episódios que houve. Do lay-off, enfim, de tentativas de rescindir contratos, etc. Mas eu acho que os jogadores, depois de estarem tanto tempo em casa, tinham necessidade de regressar à competição. Recordo-me também dos jogadores que estavam no estrangeiro. Conseguimos também estar próximos a esses jogadores e dar uma resposta adequada", vinca o presidente do SJ.

Mas faltava cor às bancadas, faltavam os cânticos e os gritos de golo. Faltava o público.

"Era estranho, parecia que estávamos sempre a treinar. Eu brincava com um colega na equipa que os treinos eram à porta fechada e o jogo passou a ser à porta fechada também", relata Rúben Fonseca.

"Os primeiros jogos eram em silêncio e nós não estávamos habituados a isso. Dentro de campo falávamos, e os adversários também, e ouvia-se tudo. O primeiro impacto, quando os jogos recomeçaram, foi... Não sei se constrangedor, mas uma coisa diferente. Depois com os minutos e com os jogos passou a ser uma coisa normal. Era melhor estar nesta situação do que não estar, não é?", acrescenta.

Para o treinador do Caldas, "o futebol sem adeptos faz muito pouco sentido".

Testes, testes e mais testes

Não era apenas nos jogos que a estranheza do futebol em tempo de pandemia se fazia sentir.

José Vala recorda os testes físicos individuais e que teve de dividir o plantel em grupos mais pequenos, em muitas sessões de treino, "para não haver o contato de todos com todos": "Tínhamos de vir equipados de casa, não utilizávamos o mesmo balneário, ou bastava um espirrar e olha, 'vais treinar à parte, não podes estar aqui'. Chegava lá com qualquer sintoma, mesmo com teste negativo, e tinha de aguentar um bocadinho, tinha de se fazer um telefonema para ver se podia treinar, se não podia."

"Levávamos as coisas à risca. Não havia nenhum espaço que não tivesse um plano de contingência, uma sala de isolamento. Lembro-me de haver um que deu teste [positivo] e espetámos com o rapaz numa sala de isolamento, que era uma casa de banho que nós tínhamos lá, até termos as informações do delegado de saúde sobre o que podíamos fazer", conta.

O pré-jogo também era enervante: "Sempre com aqueles testes. Eu já estava tão farto, já dizia, 'não faço teste a ninguém'. Essa parte foi muito difícil de gerir."

"Nós fazíamos os testes regularmente, mas sabíamos que havia clubes que não os faziam, e não fazendo não apareciam [casos]. Fomos penalizados uma série de vezes, porque vinha um caso, depois vinham dois, depois estávamos parados aqueles dias, depois não podíamos treinar, depois, quando voltávamos, já tínhamos de começar tudo de novo. Foi muito difícil, foi mais complicado do que provavelmente estar parado em casa", desabafa.

"Um sentimento de alívio"

O público regressou aos estádios às "pinguinhas". Os adeptos tinham de ter certificado de teste negativo ou de infeção recente e a lotação era reduzida, de forma a haver distância entre todos.

"Numa fase inicial, os estádios ainda não podiam ter a lotação máxima, sem qualquer restrição, e lembro-me que foi também uma coisa estranha. Os adeptos distantes nas cadeiras. Depois, aos poucos, foram alargando isso, e voltou tudo à normalidade. Foi bom para todos, tanto para nós como para os adeptos, para qualquer pessoa que gosta de futebol", afirma Rúben Fonseca.

Foi apenas em setembro de 2021 que a Direção-Geral de Saúde levantou as restrições de acesso aos estádios.

Para Rúben, que estava emprestado ao Salgueiros, foi "um alívio" voltar a ver estádios cheios: "Falo por mim, e acho que é o pensamento de muita gente, é um alívio. Um sentimento de alívio saber que as coisas vão voltar ao normal e que não passam de uma fase menos boa."

"Como sociedade, aprendemos pouco"

A Organização Mundial da Saúde decretou o fim da pandemia a 5 de maio de 2023, mais de três anos depois do início. Em Portugal, registaram-se mais de cinco milhões de casos de infeção. Mais de 26 mil pessoas morreram.

Cinco anos se passaram desde que o futebol parou, durante duas épocas que, agora, olhando para trás, parecem uma vida à parte.

Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores, gosta de olhar para "o copo meio cheio" e, por isso, retira alguns positivos do período de pandemia: "Após a Covid, no desporto, reabriu-se a discussão sobre a sobrecarga competitiva, o bem-estar dos atletas, a saúde mental, os calendários."

Ainda assim, considera que, "como sociedade, aprendemos pouco".

"Tenho pena, que eu acho que estes momentos deviam servir para tirar ilações para o futuro. O populismo ganhou, instalou-se, e as teorias da conspiração multiplicaram-se a variadíssimos níveis. O público [de futebol] também não aprendeu muito, porque regressou e regressou com os mesmos vícios", conclui.

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