Entrevista Bola Branca

José Couceiro: "A centralização dos direitos não é a solução dos problemas do futebol português"

23 mai, 2025 - 12:55 • Eduardo Soares da Silva

A quatro dias da Conferência Bola Branca, o antigo vice-presidente da FPF acredita que o país já "perdeu tempo" em relação às ligas concorrentes e defende que "é preciso quem não esteja preocupado com a sua imagem pessoal".

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José Couceiro, antigo vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol, acredita que a centralização dos direitos televisivos já devia estar em vigor há 30 anos, mas não será a solução para os problemas do futebol português "por si só".

O dirigente, que deixou a FPF após o fim de mandato de Fernando Gomes, defende que o debate está a ser feito ao contrário.

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"Primeiro, é preciso olhar para o produto. Como o posso melhorar, depois pensar nas infraestruturas, o que é que preciso melhorar, que exigências tenho que ter. Só depois é que vem a venda do produto", explica, à Renascença.

A poucos dias da Terceira Conferência Bola Branca, com o tema “Novos Ciclos no Desporto”, Couceiro apela ainda às novas lideranças nas instituições e clubes portugueses que cheguem a consenso amplos sobre o futuro para o desporto nacional.

"Ninguém sozinho vai conseguir resolver estes problemas, é preciso o todo. É preciso quem o consiga e não esteja preocupado com a sua imagem pessoal, se as coisas vão correr melhor ou pior para o A, B ou C, se fui eu que fiz e não o outro", afirmou.


Neste momento, que avaliação faz do futebol profissional em Portugal?
Já li que estão a ser feitos estudos, isso é muito importante, mas acima de tudo, o futebol profissional tem que ser um produto apetecível, tem de ter qualidade. É fundamental para que, depois, poder ter o resto. Ninguém consegue vender algo que tenha muitas deficiências. Parece-me claro que as infraestruturas são o maior problema, não só do futebol profissional, no geral e até em todo o desporto português. Têm sido descuradas ao longo dos anos, mesmo todo o processo de iniciação não é para jogar futebol, é para ganhar um conjunto de habilidades de desenvolvimento motor que, mais tarde, dão origem a jogadores de futebol.

Só depois disto é que se pode vender e transformar isto em mais-valias. Normalmente, coloca-se a questão ao contrário: primeiro quer-se vender os direitos televisivos, esquecem-se das outras duas componentes que são decisivas para que o valor seja potenciado.

Certo.
Aguardo com curiosidade pelos estudos. Preocupa-me mais a II Liga do que a I Liga, não em competitividade, porque sabemos que é competitiva, mas a nível de suporte, de sobrevivência e estabilidade. Até para os próprios jogadores, que são a peça fundamental desta atividade. Acho muito bem que se façam estes estudos e que se perceba se é necessário fazer alguma alteração, inclusivamente com a própria Liga 3, não sendo profissional, mas que prepara as equipas para uma competição profissional.

Temos novas presidências na FPF e na Liga Portugal. É preciso que seja uma oportunidade aproveitada para se resolver estes problemas?
O país é reflexo disto mesmo, não significa nada que, por haver uma mudança de liderança, ela seja pior ou melhor. São pessoas diferentes. As questões estruturais não têm que ver com a liderança, desportiva e política do país. Há questões muito mais amplas que não param nas federações, envolvem o poder político. Não vejo que seja isso a resolver os problemas estruturais.

Olhando para os investimentos externos nas SAD, há falta de controlo?
É uma matéria que faz todo o sentido ser tratada de comum acordo com o poder político e legislativo. É uma matéria que merece regulação muito mais rigorosa e eficaz. Acho que temos de ter atenção à mudança que a legislação tem de ser e que a nossa exigência tem de ter. Futebol profissional e não-profissional são coisas diferentes, não precisam do mesmo enquadramento na minha opinião.

Isso merece debate e não depende exclusivamente das federações. Acho que merece um debate muito amplo e que se perceba que o desporto não pode ser utilizado para outros fins e temos que salvaguardar isso, até para a primeira competição, a I Liga, é importante criar essa estabilidade e não dar origem a situações que algumas SAD têm passado.

Nunca houve abertura ou interesse do poder político em debater estes temas?
Houve e há interesse, independentemente de ser o Governo A ou B. Há responsabilidade também da vertente desportiva em não sermos muito concretos e não demonstrarmos, de forma explicativa, o porquê de ter de ser alterado. O poder político não tem tido muito tempo, o último Governo durou 11 meses, a maioria caiu ao fim de dois anos quando estava prevista a revisão da lei de bases e o regime jurídico das federações.

É preciso um pacto muito mais alargado entre os diversos grupos parlamentares para que a legislação possa ser eficaz. Não é por ser um Governo mais à direita ou esquerda que isto deixa de ser estrutural e importante para Portugal. Não se trata de uma federação, de um partido. Trata-se de Portugal e estamos muito atrasados, devíamos estar muito mais evoluídos.

Imagina um futuro a médio ou longo prazo em que, tal como nas principais ligas, todos os clubes tenham investimento externo, seja de forma maioritária ou minoritária? Os grandes conseguirão manter competitividade sem esse investimento?
Temos de perceber o mercado em que estamos envolvidos. O mercado interno é "sui generis" na Europa, não há nenhum mercado interno em que três dos concorrentes dominem 93% do mercado. Nem na Europa e, que eu conheça, no mundo. Temos de ter uma regulamentação própria, o maior interesse da competição é termos vários concorrentes equilibrados, a incerteza no resultado é que é interessante. O capital exterior não vejo como a principal questão se a regulamentação e regulador forem ativos. Em Inglaterra, são SAD desde sempre, sempre foram "companies", não têm a mesma figura do nosso clube desportivo.

O desporto profissional caminhou por esta via, não vejo esse como o maior dos problemas. A regulamentação eficaz, sim. O regulador não permitir que se ultrapassem limites, níveis de fiscalização apertados e nível de exigência muito alto. E acho que aí está uma das nossas questões. Temos um modelo em que o órgão da gestão da competição é, ao mesmo tempo, a associação patornal. Temos que evoluir e aprender.

Que fiscalização é que existe em Portugal?
O que a lei permite. Se a lei permite que se possa fazer uma SAD na quarta divisão, faz-se. Mas se a lei não permitir, não se pode fazer. É uma questão simples. É isso que tem de ser pensado de forma muito séria, não pode qualquer pessoa ter acesso ao capital social de uma SAD e, depois, acontecerem as situações que têm acontecido.

É tudo muito opaco também?
A questão não é ser opaco, é sermos muito mais rigorosos e defendermos um modelo: o futebol profissional é uma coisa, o não profissional é outra. Sei que os modelos são diferentes, mas nos Estados Unidos baseiam o modelo nas escolas e universidades. Os treinadores são pagos, muito bem pagos, os jogadores não são. Têm este modelo. Nós temos de perceber qual queremos, o que pretendemos. Fala-se muito da redução do número de clubes, mas isto é dito de uma forma empírica. É preciso que haja uma base, se reduzirmos número de clubes, reduzimos o número de jogos. Não sei como o mercado reage a isso, embora eu prefira também uma solução diferente. Não há uma única via.

Na lei, é igual. Nos anos 90, quando todo o processo das SAD começou, a primeira regulamentação era no sentido de haver SAD sem fins lucrativos, o que não faz sentido no desporto profissional. Já evoluímos, mas temos de evoluir muito mais.

E vê as instituições e os clubes abertos a este debate?
Eu acho que sim, as pessoas estão abertas a, mas não se pode é pensar que se consegue, numa estrutura que é associação patornal e, ao mesmo tempo, órgão de gestão da competição, que tudo seja feito de forma simples. As mudanças têm um caráter político e é preciso o parlamento e o Governo também. Ninguém sozinho vai conseguir resolver estes problemas, é preciso o todo. É preciso quem o consiga e não esteja preocupado com a sua imagem pessoal, se as coisas vão correr melhor ou pior para o A, B ou C, se fui eu que fiz e não o outro.

O mais importante é perceber que, no futebol profissional, não temos a mesma posição que tínhamos há dez anos, é inferior em "ranking". O segundo classificado corre o risco de não jogar a Champions e isso é negativo para todos. Pode calhar a um num ano e depois a outro. Temos de ser solidários uns com os outros, porque o mercado é muito concentrado em três concorrentes. E não temos um mercado externo como a Premier League, nomeadamente no oriente. Não há uma única via, mas todos estaremos de acordo que é necessário recuperar tempo.

E sendo do interesse de todos, não acontece por medo de incomodar A ou B?
Conhece algum processo de mudança em que não haja resistência? Eu não conheço nenhum. Há sempre resistência, tem de haver um suporte sólido para se fazerem as mudanças. Temos de ser capazes que, obviamente, não será por unanimidades. Não acredito na unanimidade, temos direito a pensar de forma diferente.

A centralização dos direitos televisivos também traz a solução? E daí se pode ver a capacidade dos maiores clubes abdicarem da sua maioria pelo bem comum?
Mas eu não acho que essa seja a primeira questão. Fala da venda de um produto, mas primeiro é preciso olhar para o produto. Como o posso melhorar, depois as infraestruturas, o que é que preciso melhorar, que exigências tenho que ter. Só depois é que vem a venda do produto.

Portugal não está preparado para a centralização?
Pelo contrário, já devia existir há 30 anos, mas se olharmos exclusivamente para a centralização e não para o resto, não vejo que seja por aí que se vai resolver o problema. Só por si, não é solução do problema. Basta dizer que, na época passada, a maior receita veio da UEFA, cerca de 32%, os direitos 29%. Acho que isto é significativo para se poder pensar.

Como aponta o caminho, as soluções para se melhorar o futebol português estruturalmente?
Temos qualidade, é indiscutível. Não se pode dissociar o trabalho que os clubes e a FPF têm feito nos escalões mais jovens também, evidentemente. Fico muito satisfeito por ver as seleções jogarem sempre para chegar o mais longe possível. É necessário fazer o resto. Há novas lideranças, é preciso dar algum tempo para que os estudos pedidos pela Liga possam ver o sol do dia, para que se possa ler e depois tomarem-se decisões.

Hmm.
É fácil comentar as decisões dos outros, difícil é estar lá a tomá-las. Para as tomarmos, precisamos desse suporte. Não é ser cauteloso, mas acho que temos de ter o bom-senso de dar tempo ao tempo. Mas sabemos que estamos atrasados, todas as ligas que são concorrentes já deram esses passos, já têm os direitos centralizados, infraestruturas muito mais avançadas.

Onde é que os estamos a superar? Todos os anos criamos valor para as competições superiores. Acho piada que hoje se fala do Rodrigo Mora, que estava no Europeu sub-17 no ano passado, como o Quenda, o João Simões, o Patrão, etc. É suficiente? Digo que não. Não é garantia que vamos ter uma competição melhor, não é uma questão simples, mas é preciso haver decisores fortes porque o nosso mercado interno é muito difícil.

Conhece as pessoas todas envolvidas e o que está a ser feito, está otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Eu sou sempre otimista, mas também sou realista. Na década passada chegámos a estar em quinto lugar do "ranking", tivemos equipas a chegar à final da Liga Europa, Porto e Braga em 2011, depois o Benfica a outras duas. Esta década, temos mais uma ameaça que é a Bélgica e estamos sem contar com a Rússia, que era mais um país que queria os lugares na Champions. Temos de olhar para nós e perceber como nos podemos ajudar todos uns aos outros, não bastam os clubes grandes. Precisamos de soluções diferenciadas e não copiadas.

Os Países Baixos arranjaram soluções há mais tempo do que nós e já nos passaram. A reflexão tem de ser muito rápida porque a centralização tem de ser apresentada até ao próximo ano, não há assim tanto tempo e já se perdeu algum tempo.

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