“Só queremos que a Espanha perca”. Em Gibraltar, sonha-se mais com a derrota do vizinho do que com a vitória inglesa

Espanha não reconhece a autonomia de Gibraltar e considera que o território está sob ocupação ilegal. Durante quase 15 anos, impediu a sua entrada na UEFA e, por isso, a maioria dos gibraltinos estará a apoiar a Inglaterra no jogo que decide o Euro 2024.

13 jul, 2024 - 07:20 • Eduardo Soares da Silva



O Victoria Stadium está localizado junto ao aeroporto, perto da fronteira com a Espanha. Foto: Reuters
O Victoria Stadium está localizado junto ao aeroporto, perto da fronteira com a Espanha. Foto: Reuters

Não são precisos sequer 20 minutos de carro para ir da ponta sul de Gibraltar até à fronteira com a Espanha, mas a proximidade geográfica não é sinónimo de boas relações entre os dois países. Quando as seleções de Espanha e Inglaterra entrarem em campo, este domingo, para disputarem o troféu do Euro 2024, os gibraltinos já sabem quem apoiar.

“Um por cento dos gibraltinos querem que a Espanha vença, o resto está pela Inglaterra. Aliás, estão por quem jogar contra a Espanha. Eu só quero que percam, não gostamos da Espanha”, declara Lee Casciaro, avançado da seleção, em entrevista a Bola Branca.

O avançado, de 42 anos, é uma das maiores referência desportivas do país localizado numa pequena península de onde se vê Marrocos do outro lado do Mediterrâneo e se destaca um gigante rochedo que ocupa grande parte do território.

Gibraltar é um dos vários territórios ultramarinos do Reino Unido desde a assinatura do Tratado de Utrecht, em 1711. É, no entanto, disputado por Espanha desde a ditadura de Franco.

No site oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol pode ler-se que “a ocupação dos britânicos não corresponde aos requerimentos da lei internacional. E é por isso que a Espanha sempre destacou que a ocupação do istmo é ilegal e sempre exigiu o seu retorno incondicional. A Espanha não reconhece a ocupação do istmo ou da cerca como fronteira”.


Os macacos-de-gibraltar são uma das principais atrações turísticas do país. Foto: Reuters
Os macacos-de-gibraltar são uma das principais atrações turísticas do país. Foto: Reuters

Lee viveu a vida toda em Gibraltar, tal como os seus pais. Não conhece sequer qualquer outra ascendência da família, ainda que reconheça que “poderá ser italiana”. Explica que há boas relações com os vizinhos espanhóis das cidades mais próximas. O problema é político.

“Damo-nos bem quando vamos a Espanha, aqui ao lado. É um tema mais político. As pessoas de Madrid não entendem a nossa cultura e como funcionam as coisas. Quando Franco era o ditador, a fronteira estava fechada. Os meus pais não sabiam o que era ir a Espanha ou à Europa”, assume o jogador.

As relações políticas tensas não impedem que exista um grande contacto entre as duas nações. Os censos reportam que apenas dois por cento dos residentes em Gibraltar são espanhóis, mas muitos trabalham no país e vivem do outro lado da fronteira. Incluindo vários jogadores de futebol.

O contacto constante levou à criação de uma cultura própria. Uma mistura da britânica com a espanhola: “Somos um sítio especial. Falamos as duas línguas, somos ingleses, mas vivemos em Espanha”, considera o jogador. O dialeto tem até um nome: Llanito.

Lee Casciaro explica que teve uma infância mais próxima da cultura espanhola. O avançado fala um inglês gramaticalmente perfeito, mas carregado de sotaque espanhol.

“No meu tempo, só tínhamos os canais espanhóis na televisão, tudo o que consumíamos vinha de lá, não havia ‘Sky Sports’. A minha filha entende espanhol, mas não sabe falar. Hoje temos os canais, temos o YouTube e na escola aprendem tudo em inglês”, reflete.

Gibraltar na UEFA só após decisão do tribunal

Lee vai torcer pela Inglaterra na final do Euro 2024, mas não apenas por motivos históricos e políticos. Tudo isso transbordou para o futebol quando a Espanha tentou impedir que Gibraltar se juntasse à UEFA.

“Votaram contra nós e fizeram lobby para que não fossemos aceites”, recorda.

O país candidatou-se pela primeira vez em 1997, depois da entrada das Ilhas Faroé, que pertencem ao reino da Dinamarca. O país nórdico não contestou a candidatura, mas o mesmo não aconteceu com Gibraltar, que recebeu forte resistência espanhola.

A federação argumentava que as instalações desportivas de Gibraltar estavam localizadas em território disputado e mostrava preocupação que um reconhecimento da seleção de Gibraltar poderia inspirar intenções semelhantes na Catalunha e País Basco, regiões com fortes movimentos independentistas e também seleções de futebol próprias.

A UEFA rejeitou a entrada de Gibraltar e, numa nova votação em 2007, apenas Inglaterra, País de Gales e Escócia votaram favoravelmente. Quarenta e nove países votaram “não", seguindo o apelo espanhol.

Gibraltar acabaria por vencer a luta e tornou-se finalmente membro da UEFA em maio de 2013, mais de 15 anos depois da candidatura inicial e apenas como consequência de uma decisão do Tribunal Arbitral do Desporto.


A decisão permitiu a Lee realizar, até à data, 14 jogos de apuramento para o Mundial, 23 para o Europeu e 16 partidas da Liga das Nações. Tornou-se, no ano passado, o mais velho de sempre a disputar um jogo de qualificação para um Europeu aos 41 anos.

Sobraram, ainda assim, resquícios da luta institucional entre as duas federações: a UEFA não permite que as seleções se defrontem, como acontece com Kosovo, Sérvia, Rússia e Ucrânia.

“Logo na primeira qualificação, para o Euro 2016, ficámos no grupo da Espanha, mas mudaram-nos para o da Alemanha por motivos políticos”, recorda.

Algarve é o quartel-general da seleção gibraltina

É também assim que se explica que Gibraltar utilize o Estádio Algarve como a sua casa no apuramento para as grandes competições.

Sem nenhum recinto que cumpra os requisitos da UEFA e da FIFA, Gibraltar desloca-se quase 400 quilómetros para poder receber as maiores seleções da Europa, ainda que existissem vários estádios espanhóis mais próximos. É uma solução provisória, uma vez que há planos para aumentar o estádio nacional.

“Portugal é a nossa segunda casa. Vamos ver quanto tempo demoramos a construir aqui o nosso”, assume Lee.

Em junho de 2023, o gestor do estádio explicou à Renascença que foi aquele país a abordar Portugal à procura de uma solução: "Foi Gibraltar a procurar-nos, não fomos nós que fomos ter com eles. Está a jogar cá e vai continuar a jogar cá. Para todos os jogos de qualificação, Gibraltar vem cá estagiar. Estamos a falar de 10 dias, no mínimo, no Algarve. Em termos de encaixe financeiro para a região, é muito grande", explicou Nuno Guerreiro.

Jogar em Faro agrada o português da seleção de Gibraltar: o defesa Bernardo Lopes, de 30 anos. O que era para ser uma passagem rápida pelo país em 2014 tornou-se definitiva. Está a arrancar a sua décima época no Lincoln Red Imps e tornou-se internacional há dois anos.

“É basicamente jogar em casa. Este ano vamos poder jogar a Liga das Nações aqui em Gibraltar, estão a reformular o estádio e a UEFA abriu uma exceção para esta prova, mas é quase sempre no Algarve”, assume.

Bernardo não está muito por dentro do tema político, mas reconhece “que há muita rivalidade entre o lado espanhol e o inglês”.

“É saudável, mas há sempre aquelas bocas, mais até agora no Europeu, então com a final… As comparações são hilariantes de ouvir, mais para mim vindo de Portugal. Eu fico-me pelo meio", diz.

O plantel do Lincoln Red Imps, crónico campeão gibraltino, conta com nove espanhóis e um deles é Nano, de 39 anos. Fez carreira em grandes palcos e passou por clubes como o Oviedo, Ponferradina, Panathinaikos e Almería. Está há cinco anos em Gibraltar e, até hoje, não compreende o porquê das más relações.

“Há coisas que não entendia, é tudo muito político. Gibraltar não pode jogar aqui em Espanha. Continuo sem saber o porquê. Vão para Portugal, o que me parece estranho pela proximidade e pelos bons campos que há aqui perto”, reconhece.


Lee Casciaro, de 42 anos, fez 63 jogos pela seleção gibraltina. Foto: Reuters
Lee Casciaro, de 42 anos, fez 63 jogos pela seleção gibraltina. Foto: Reuters
O Estádio do Algarve é a casa de Gibraltar nos apuramentos para as grandes competições. Foto: Reuters
O Estádio do Algarve é a casa de Gibraltar nos apuramentos para as grandes competições. Foto: Reuters


A final do Euro tem sido tema natural nos treinos do Red Imps: “A Inglaterra não vence há muito tempo e picamo-los um pouco, claro. A Espanha está muito bem, acho que é a melhor equipa do Euro e espero que vença”, revela Nano.

“Eu sou lateral esquerdo e não queria jogar contra o Yamal. É um animal. Que posso dizer sobre o Nico [Williams]? É igual. São muito novos, com muita pressão sobre eles, mas estão muito bem. Adoro a personalidade dos dois”, prossegue.

O defesa espanhol arrisca num prognóstico: 3-1 para o seu país. E espera que o jovem Yamal, que entrará em campo na final já com 17 anos, marque uma nova era dourada no futebol do outro lado da fronteira.

“O Barcelona tem mostrado vários jogadores com muito potencial. Recordo-me do Ansu Fati, que também se apontava como a nova pérola e olhem para ele agora. É preciso ir com muita calma. Tem 16 anos, com essa idade eu estava na praia, andava de bicicleta e jogava no parque. Ele é titular indiscutível numa final de um Europeu. Surpreende-me muito a veterania e a naturalidade que se vê no miúdo. É a estrela da seleção, espero que marque uma geração”, conclui.

Apesar da preferência por Inglaterra, o sonho de Lee Casciaro é outro: ver o seu país, Gibraltar, a disputar um Europeu. E há indícios que lhe dão esperança.

“Seria o pináculo do nosso futebol, mas estamos ainda a um longo caminho disso. Se me dissesses que uma equipa de Gibraltar iria chegar à fase de grupos de uma prova europeia, ter-me-ia rido, não achei que fosse uma possibilidade”, diz.

Pode acontecer já este ano, uma vez que o Lincoln Red Imps está perto de chegar à segunda pré-eliminatória da Liga dos Campeões, o que garantirá, no pior dos cenários, disputar o “play-off” da Liga Conferência.

O plantel, repleto de gibraltinos e espanhóis, treina pela manhã e não deverá assistir junto ao jogo. Mas Nano prevê que se vá comentar, quase ao minuto, no WhatsApp da equipa. Espanha-Inglaterra defrontam-se, este domingo, às 20h00, em Berlim.


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