Moneyball e nostalgia. Nos bastidores da revolução do Leça

Em Leça da Palmeira ainda "cheira aos dourados anos 90". O clube quer voltar à II Liga até 2028 com um projeto renovado, profissional e com base no recrutamento à escala global.

13 fev, 2025 - 07:00 • Eduardo Soares da Silva



Estádio do Leça Futebol Clube, um clube a disputar o quarto escalão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Estádio do Leça Futebol Clube, um clube a disputar o quarto escalão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Em 2023, o Leça caiu para os distritais da Associação de Futebol do Porto. Um ano e meio depois, é líder isolado do Campeonato de Portugal e caminha para uma séria candidatura à subida à Liga 3. O segredo do sucesso é uma fórmula simples: descobrir talento escondido ou desaproveitado.

Os colombianos Garro López e Santi Hernández são duas figuras do plantel e exemplos da nova filosofia do clube, que aposta na observação à escala mundial e em dados estatísticos para contratar jogadores.

O Leça descobriu-os nas camadas regionais do futebol colombiano. Hoje, Santi tem sete golos e duas assistências, Garro marcou três vezes.

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André da Silva é o diretor geral de futebol da SAD. Explica à Renascença que "há talento em todo o lado", pode ser encontrado "numa divisão inferior, numa estagnação em divisões acima, ou em campeonatos periféricos".

Para levar a ideia à prática, o clube tem um departamento de observação com seis elementos, um cenário considerado pouco comum até para os escalões profissionais: "Acho que o que fazemos é diferente do que se faz, genericamente, em Portugal".

A diferente abordagem no mercado de transferências faz parte de uma revolução profunda no clube que passou pela I Liga na década de 90. A SAD do Leça foi comprada no verão de 2023, já depois da descida ao patamar regional, por José Luís Santos, um empresário português da área do digital e da publicidade.


Estádio Leça Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Estádio Leça Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Quando tomou passe como presidente da SAD, pediu aos sócios que "não desistissem do Leça, porque nós não vamos desistir". Até ao momento, os resultados são positivos: os leceiros subiram aos nacionais e lideram, à data, a série B do Campeonato de Portugal, com 40 pontos e apenas duas derrotas em 18 jogos.

Como encontrar talento escondido?

No Leça, acreditam que há talento em todos os cantos do mundo. Mais do que "descobrir", um termo que pode ser enganador segundo o diretor geral, o que o clube tenta é chegar antes dos outros.

Para tal, o clube recorre à observação direta e a ferramentas de análises de dados. Quando um atleta se destaca em certo parâmetro, é avaliado.

"Temos alguns jogadores que chegam por aquela ideia cliché do 'moneyball', porque estatisticamente têm a capacidade de fazer a diferença, seja em que fator for. Ainda assim, um jogador passa sempre pelo olho humano, que tem cerca de 75% da importância", explica o dirigente.

A estatística permite retirar preferências pessoais e subjetividade da análise, ainda que não substitua a observação dos jogos: "Quando era miúdo, achava um piadão quando um nórdico surgia em Portugal e podia ter a mesma performance do português, mas os números valem o que valem e não podemos ser enganados por eles".

Exemplifica: "Um central pode ter grandes números se entrar para jogar 20 minutos numa equipa que baixou o bloco e passou a estar numa linha de três defesas. Há muitos ponderadores e, por isso, o olho prevalece".


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Pedro Oliveira, chief "scout": "Peço vídeo de um jogador e, de repente, mandam de 20 porque todos são incrivelmente bons"

Apesar do peso no projeto, o departamento de observação do Leça não é totalmente profissional. Cada um dos "scouts" tem outro emprego a tempo inteiro. A observação é part-time e paixão.

Pedro Oliveira lidera o departamento, divide tarefas e campeonatos para cada um observar. O maior foco está nos campeonatos nacionais, de todas as séries da Liga 3 aos campeonatos distritais do Porto, Braga e Aveiro.

No entanto, o clube quer apostar nos mercados estrangeiros, principalmente aqueles para que mais ninguém está a olhar.

"Tentamos procurar zonas com menos tradição em Portugal. É irrealista para nós irmos olhar para o centro da Europa, Escandinávia ou até mesmo o Brasil, porque são mercados muito batidos", ressalva André, a cabeça do projeto. "Ainda não são para nós", corrige.

Pedro Pinto, um dos olheiros, foca-se no mercado africano, enquanto Paulo Teixeira tem observado a região do Caribe. Junta-se um recente interesse nos estaduais brasileiros e no Cáucaso.

"Estou entusiasmado por trabalhar com mercados como a Zâmbia e a Etiópia, há lá muita qualidade, as pessoas não têm noção, mas o trabalho é muito difícil. A comunicação é complicada, é preciso chegar aos jogadores e às pessoas que estão ligadas aos campeonatos", explica Pedro.


Pedro Baptista (à esquerda) é o diretor geral da SAD. André da Silva (à direita) é o diretor de futebol. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Pedro Baptista (à esquerda) é o diretor geral da SAD. André da Silva (à direita) é o diretor de futebol. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Com esse trabalho, "chega também muita palha".

"Assim que abres uma porta num destes mercados a pedir vídeos de jogadores – porque precisamos de jogos completos –, é difícil que não entre informação que não queres. Pedes um jogador e mandam-te de 20 porque dizem que todos têm qualidade para vir para a Europa. É preciso filtrar", detalha Pedro Oliveira.

O líder do departamento ressalva que o clube incute responsabilidade nos olheiros para que não olhem para os jogadores como mercadoria: "Falamos de miúdos com menos de 20 anos, é preciso termos certeza, não faz sentido trazermos cinco jogadores que são enviados à balda e depois ficam sem jogar e para onde ir".

Paulo Teixeira, que tem observado os campeonatos de Costa Rica e Jamaica, deixa uma ressalva: "É uma pessoa que tem uma vida. Temos de ter muito cuidado, porque uma decisão influencia tudo à volta dela. Temos esse cuidado, para evitar a ideia do 'manda vir e depois vê-se'".

A correlação entre a segunda divisão chilena e o Campeonato de Portugal

Quando um jogador se destaca num destes campeonatos, o grande desafio é perceber em que patamar poderá encaixar no futebol nacional.

"O Garro jogava numa espécie de estadual de Antioquia. Se eu perguntar a qualquer 'scout' do mundo qual é a relação competitiva entre essa liga e o Campeonato de Portugal, ninguém sabe responder. A liga húngara equivale à liga chilena? Ninguém sabe", diz André.

Aqui, os dados estatísticos também ajudam a decifrar o puzzle. "Tentar isolar o atleta e perceber em que nível podemos imaginá-lo é o grande desafio do scouting", diz Tiago Coutinho.

Pedro Pinto concorda: "Um jogador parece muito diferenciado, mas será muito bom porque os outros são maus, ou será ele mesmo bom?"

Basear o recrutamento em dados e arriscar em lançar jogadores que chegam de patamares inferiores "não é sexy", segundo André. Exemplifica: "Temos o Miguel Paiva na baliza, que fomos buscar ao Oliveira do Douro, que desceu, e ele fartou-se de sofrer golos."


O escritório da SAD foi um dos espaços criados após a renovação da bancada do estádio do Leça. Com vista para o relvado, há espaço para reuniões e convívio. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
O escritório da SAD foi um dos espaços criados após a renovação da bancada do estádio do Leça. Com vista para o relvado, há espaço para reuniões e convívio. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Os camarotes do estádio foram alvo de intervenção, tal como a bancada de imprensa. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Os camarotes do estádio foram alvo de intervenção, tal como a bancada de imprensa. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR


"Pode não ser espetacular do ponto de vista visual, ainda que o seja tecnicamente. Tem um perfil concentrado, é competente com os pés. Aí também entra a estatística: qual a taxa de sucesso nas bolas paradas e eficácia de passe? Tem tiques nervosos? Está calmo ou berra demasiado?", contextualiza.

Os adeptos podem ter dificuldade em entender o processo e o dirigente compreende: "Ele não é gigante, tem um nome meio aborrecido, é português. Pode não ser divertido de ver na janela de transferências, mas foi validado por todos os olheiros, o treinador gostou, o diretor desportivo ficou agradado com o perfil mental, e avançámos."

A "caixa de pandora" de um estádio antigo

A reestruturação do clube não se ficou pelo projeto desportivo. Pedro Baptista é o homem forte da SAD em todos os temas que não estão relacionados diretamente com colocar a bola no fundo da baliza. Logística, organização e gestão estão no seu raio de ação.

Quando chegou, encontrou um clube "debilitado a vários níveis". O estádio, de pé desde a década de 80, precisou de obras profundas. Da bancada principal restou praticamente apenas o esqueleto.

"A questão é mais no que é que não mexemos?", brinca.

"Tocámos pouco no cimento que está no chão e não substituímos a estrutura que suporta a bancada", detalha. De resto, tudo foi alterado: há novos camarotes, a bancada foi renovada com degraus e cadeiras tendo em conta os critérios necessários já a pensar em divisões superiores.

Juntam-se uma cobertura renovada, paredes, um escritório para a SAD e até novos balneários. O resultado é um estádio que conserva a história no seu exterior, mas com o interior virado para o futuro desejado nas divisões superiores.

O processo foi difícil e frustrante. A cada problema juntavam-se outros novos e inesperados: "Tivemos um trabalho invisível de canalização e eletricidade e isso foi abrir uma caixa de pandora. À medida que se resolviam problemas, descobríamos mais."


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André da Silva: "O que pagamos está dentro da média das equipas que se propõem a fazer um bom campeonato"

O esforço compensou, para o dirigente Pedro Baptista: "Acho que todos têm orgulho de chegar todos os dias ao estádio para se trabalhar."

O projeto é custoso, desde o investimento inicial no estádio à estrutura desportiva, mas quem o pensou não equacionaria de outra forma: "Não era uma opção partir para este projeto sem canalizar investimento fora de campo para que o clube se sustente de forma saudável."

Outro exemplo são as redes sociais, em que o clube investe, com um departamento de marketing e comunicação. O dirigente Pedro Baptista acredita que a aposta no digital "dá valor à marca e isso acaba por facilitar as transferências".

"A 'bigger picture' compensa e o investimento, depois, é sempre refletido no futebol", conclui.

O orçamento do Leça é muito maior do que os dos adversários?

Quem trabalha no Leça defende que o clube não está financeiramente dopado, uma crítica habitualmente apontada ao projeto.

"Diria que o nosso orçamento não é muito superior [aos outros clubes do Campeonato de Portugal], não sei se será superior de todo", diz Pedro Baptista. Vai mais longe: "Na parte desportiva, deve ser um bom bocado inferior, não tenho dúvidas que há clubes a gastar muito mais em salários e custos operacionais do que nós."

André da Silva concorda e considera que "há muita falsa história contada".

"Todos os clubes dizem que não estão a investir assim tanto, que isto é para os outros e não para eles, mas depois fazem 30 por uma linha para terem as melhores condições", justifica.


O diretor geral assume que o orçamento total do Leça será superior à média, mas o desportivo não, "porque temos um diretor comercial, uma diretora de comunicação, um de marketing, um diretor de segurança, team manager, temos o estádio sempre limpo e arrumado, temos scouting, fisioterapeutas, psicólogo, nutricionista". E tudo isto custa dinheiro.

A equipa treina de manhã, os jogadores dedicam-se inteiramente ao futebol e têm pequeno-almoço disponível. No final do treino, há uma equipa de fisioterapeutas para ajudar na recuperação e até psicólogo, para o apoio emocional ao longo da temporada. Os salários podem não ser os mais altos da divisão. Em tudo o resto, o clube aproxima-se do profissionalismo.

"Poderíamos ter um investimento desportivo muito maior se ignorássemos tudo à volta. Eu entendo que os adeptos que fazem o esforço de comprar bilhetes e vão connosco à Madeira e à Régua não tenham de compreender o raciocínio, mas esta é a escolha do clube para que sejamos sustentáveis", remata André da Silva.

O treinador Filipe Mesquita já trabalhou na II Liga como adjunto. É em Leça que arranca a sua carreira como treinador principal e acredita que, "embora os jogadores não ganhem como profissionais", toda a estrutura o é.

"Em vez de os jogadores irem trabalhar a seguir ao treino, vão descansar. Não têm mais nada na cabeça e isso tem vantagens, claro. Não temos ninguém que acabe de trabalhar às cinco da tarde, vem treinar e ainda tem os problemas do emprego na cabeça", explica.

Mesquita sente-se orgulhoso por trabalhar num "clube muito especial": "Ainda se sente o cheirinho a anos 90, à primeira divisão. Sente-se na estrutura e nos adeptos, todos têm essa nostalgia, queremos que volte novamente."

O avançado Pedro Martelo concorda. É o melhor marcador da série em que compete o Leça. Já marcou nove vezes em 16 jogos.

As condições do Leça não lhe são estranhas. Passou pela formação de Benfica, Deportivo da Corunha e SC Braga. Teve ainda uma caminhada de destaque nas seleções jovens, tendo marcado o golo da vitória no Europeu sub-19, em 2018.


Ainda assim, a carreira não lhe sorriu e não chegou, até hoje, ao patamar que lhe era esperado. Jogou no Amora, no S. João de Ver e no Belenenses, na terceira divisão, até rumar ao estrangeiro, para jogar na República da Irlanda por meia temporada.

O Leça abriu-lhe as portas do regresso e não tem qualquer arrependimento: "Pela forma como somos tratados, dá para sentir que somos jogadores, ainda que seja uma divisão inferior. Aqui voltei a sentir-me jogador, acolhem-nos com grande profissionalismo."

Martelo tem já lastro nas divisões inferiores portuguesas e declara: "Sem desprezar ninguém, as condições do clube não têm nada a ver com os outros em que estive, é totalmente diferente."

II Liga na mira

O clube apresentou aos sócios, na Assembleia-Geral em que foi aprovada a venda da SAD em 2023, um projeto para chegar à II Liga até 2028.

"Claro que não estávamos à espera que o clube descesse aos distritais enquanto negociávamos, mas mesmo assim sentimo-nos capazes de comprometer com a visão", diz Pedro Baptista.

O dirigente reconhece que "nem sempre a bola vai entrar" e que o Leça já viveu uma "amostra do quão cruel pode ser o mundo do futebol".

Os leceiros lideraram o campeonato distrital na época passada e venceram a época regular, mas um golo sofrido nos descontos da última jornada da fase de apuramento atirou-os para fora dos lugares de subida, às custas de Coimbrões e Alpendorada.


Filipe Mesquita foi adjunto de Fábio Pereira na Oliveirense, na II Liga. No Leça, é treinador principal de uma equipa sénior pela primeira vez. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Filipe Mesquita foi adjunto de Fábio Pereira na Oliveirense, na II Liga. No Leça, é treinador principal de uma equipa sénior pela primeira vez. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
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O Leça só foi promovido de forma administrativa após a desistência do Canelas 2010. O plantel estava praticamente construído para disputar os distritais; ainda assim, o clube lidera o Campeonato de Portugal, com seis pontos de vantagem para o Salgueiros.

"Não esperava uma primeira volta tão regular, fomos das últimas equipas a perder nos campeonatos nacionais", reconhece o diretor de futebol, André da Silva.

O treinador Filipe Mesquita vê a questão de outra forma.

"Quando apontamos lá para cima e trabalhamos para tal, é mais difícil andarmos cá em baixo. Pode ser uma surpresa ver um recém-promovido acabar a primeira volta no primeiro lugar, mas quem está cá dentro sabe como estamos a trabalhar e já não é tão surpreendente. É um reflexo", considera.

Em Leça, os adeptos ainda recordam os saudosos anos 90, que não ficam esquecidos com várias fotografias expostas na renovada bancada do estádio. Ainda se fala regularmente dos golos de Constantino, do empate contra o Sporting e das defesas de Stojkovic. Agora, o clube quer virar-se para o futuro.

"A mística existe, ainda que alguns adeptos pudessem estar menos ligados ao clube. Queremos reacender essa dinâmica dos anos dourados. O Leça pelo qual se apaixonaram pode vir a renascer. Queremos que tratem as memórias do antigamente como positivas, mas que criem novas", diz Baptista, diretor geral da SAD.

André da Silva não sabe o futuro, nem sabe se o Leça vai mesmo conseguir chegar à II Liga nos próximos três anos e meio. Tem, no entanto, uma garantia.

"Acho que assim vamos ganhar muito mais vezes do que vamos perder, mas, acima de tudo, acho que vai ser divertido de acompanhar", conclui.


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