O último programa de jogo da Liga. “Até o líder da claque me liga a pedir a revista”

Lembra-se das velhinhas revistas de jogo vendidas nos estádios? 150 anos depois da primeira, só um resistente clube ainda as faz na Primeira Liga. Folheamos o último "programa de jogo" numa terra de irredutíveis em plena era digital.

09 out, 2025 - 12:55 • André Maia



O último programa de jogo da Liga. “Até o líder da claque me liga a pedir a revista” (foto: RR|André Maia)
O último programa de jogo da Liga. “Até o líder da claque me liga a pedir a revista” (foto: RR|André Maia)

São três e meia da tarde no Hampden Park. Glasgow, Escócia. No bairro de Mount Florida, velhos, novos, homens e mulheres correm para entrar no novíssimo estádio, construído há apenas dois anos. É sábado, dia 9 de outubro de 1885, e todos querem ver o grande jogo, mas nem todos vão poder entrar: nas bancadas ficarão 12 mil pessoas, o recorde histórico de assistência num jogo de futebol na Escócia. Os restantes vão ter de arranjar uma varanda ou trepar uma árvore mais alta para tentar ter um vislumbre do campo.

Daqui a menos de 20 anos isso já não será um problema: o Hampden vai ser o maior estádio do mundo entre 1903 e 1950, até aparecer um gigante chamado Maracanã. Mas esses tempos ainda vão longe e hoje há que aproveitar o presente. Afinal de contas é um dos mais importantes jogos do calendário futebolístico desse ano: o Queen’s Park – mais antigo clube da Escócia e vencedor da taça do país – tinha a honra de receber a gloriosa formação do Wanderers FC, os primeiros vencedores da história da FA Cup. Os londrinos visitavam a Escócia pela primeira vez e eram recebidos como autênticas rockstars, numa altura em que nem os avós dos Beatles imaginavam tal termo.

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Tamanho evento exigia, portanto, pompa e circunstância. Tinha de ficar para sempre marcado, não só na memória, mas também na história. E história é arquivo. E arquivo é papel. O Queen's Park não sabia, mas naquela tarde iria fazer história – e não falamos da goleada espantosa de 5-0 que aplicou aos ingleses. Naquela tarde foi impresso e vendido o primeiro programa de jogo oficial de que há registo na história do futebol, faz esta quinta-feira 150 anos.

Há registos que passam essa medalha às universidades de Eton e de Yale, que se defrontaram em 1873, nos Estados Unidos da América. Nessa partida, foi efetivamente distribuído um cartão relativo ao jogo, onde os adeptos poderiam preencher o resultado, os marcadores dos golos, e os nomes dos elementos da equipa de arbitragem. Só que este "antecessor" tinha uma diferença: só era distribuído no final da partida e chegava semi-preenchido.

Em Glasgow foi diferente e mais próximo da velhinha revista que se espalhou pela Europa. Foi vendida nas bancadas, antes e durante o jogo, e trazia as informações já escritas, uma espécie de guia para que o espectador não se perdesse durante os 90 minutos. Não, aqui ainda não tínhamos páginas com publicidade nem entrevistas aos protagonistas. Mas o espírito de inovação já estava presente: a formação tática já era uma realidade, os jogadores já tinham uma mini-biografia e o boletim até já servia para dar avisos – quantos não terão respeitado o "Please, do not strain the rope", que pedia aos adeptos, nos apeadeiros, para não esticarem as cordas. Mas o pormenor mais fascinante está na identificação dos artistas.

Numa altura em que ainda não havia manipulação e impressão de fotografias, o Queen's Park encontrou uma forma criativa de ajudar o público a identificar cada jogador. Como é possível ver na imagem, abaixo do nome e da posição de cada um dos atletas, está descrita... a cor das meias usadas. Porque sim, apesar de os onzes jogadores de cada lado utilizarem a mesma camisa e calção, as meias eram escolhidas individualmente por cada futebolista. E quando não havia meias, havia chapéu, de forma que mesmo o mais longínquo adepto – aquele que teve de subir à árvore – pudesse reconhecer o artista. Por exemplo, o extremo-esquerdo do Wanderers Hubert Heron apostava não só na sua velocidade, mas também num par de meias cinzentas, laranjas e violetas, com um chapéu preto.


O primeiro "programa oficial de jogo", datado de 9 de Outubro de 1875
O primeiro "programa oficial de jogo", datado de 9 de Outubro de 1875

Hoje só sabemos isso – e que C. Herriot, do Queen's Park, não usava meias – porque o clube escocês teve a ideia de criar o "matchday program", o "programa oficial de jogo", como se diz à portuguesa. Uma pequena revista, ao estilo magazine, com informações sobre o jogo – que vão desde os plantéis, entrevistas, notícias, anúncios – e que são um dos ex-libris de qualquer colecionador de futebol. Basta ir a um qualquer site de vendas em segunda mão para, numa rápida pesquisa, encontrarmos centenas destas revistas, que, 150 anos depois, vivem apenas nas prateleiras poeirentas dos adeptos.

Em 2018, em Inglaterra, a English Football League revogou a obrigação da impressão do programa de jogo a cada jornada, a pedido dos clubes. Não era preciso qualquer norma para que a maioria deles, da Premier League à quarta divisão inglesa, continuassem a fazê-lo, por respeito à tradição.

Mas em Portugal a história é outra: tradição forte nas décadas de 60, 70, 80 e 90, os últimos registos dos boletins de jogo impressos – de forma regular, jornada a jornada – são do início de 2000. Agora estamos no ano 2025 D.C. Todo o país está ocupado pelo digital. Todo? Não! Uma terra povoada por irredutíveis estorilistas resiste ao fim da tradição. A Renascença foi até ao Estádio António Coimbra da Mota para ler o "Meninos da Linha". O único programa oficial de jogo que continua a ser impresso na Liga Portuguesa, jornada após jornada, 150 anos depois do primeiro.


João Carreira, assessor de comunicação da SAD do Estoril Praia, é o editor do "Meninos da Linha"
João Carreira, assessor de comunicação da SAD do Estoril Praia, é o editor do "Meninos da Linha"

“Antes do último jogo em casa, o João Carvalho veio pedir-nos para ser a capa"

Do fundo de uma das salas do Estádio António Coimbra da Mota, casa do Estoril Praia, o assessor de comunicação da SAD João Carreira pega em dois exemplares do “seu bebé”. Levanta-os, vira-os para o sócio Miguel Catorze e pergunta: “São estes?”. Miguel acena de forma positiva, mas com algumas dúvidas que só podem ser esclarecidas em casa, quando olhar para todos os exemplares que tem do “Meninos da Linha”. É que, para completar a coleção, só lhe faltam duas edições e há que ser rigoroso. Mesmo que isso leve a problemas conjugais.

"Tenho todas numa prateleira, fiz um montinho com as da época passada e agora estou a fazer outro com as deste ano. A minha namorada não adora a ideia, mas vamos ter de conversar. Com as camisolas já é um problema de espaço, mas as revistas são mais pequenas, acho que tão depressa não vou ter esse problema”, diz entre risos. Miguel, de 26 anos, é sócio do Estoril Praia e tem uma coleção de mais de 50 camisolas do clube, 120 no total do universo têxtil futebolístico. A sua sorte – por enquanto e para não ficar solteiro – é que o número de edições do programa oficial de jogo do seu clube ainda está nos primeiros dois dígitos.

Mas daqui a uns anos, quem sabe, pode vir a precisar de uma estante maior – ou de outra namorada. “A ideia surgiu no início da época passada, mas só tivemos capacidade para o lançar à 11.ª jornada. Nessa última época fizemos 12 números, este ano já vamos em quatro [16 no total]. Já o tínhamos tentado antes, mas só conseguimos nessa altura, para avançarmos com algo bem estruturado, não queríamos lançar um rascunho. Acabou por sair em novembro, e acho que foi bem conseguido. A ideia é fazer todos os jogos da Liga até ao fim da temporada”, explica João Carreira, que antes da passagem pelo clube da Linha, já tinha tido experiência em revistas, tendo editado uma na área da economia.


O "Meninos da Linha" foi criado na época passada e já conquistou os adeptos
O "Meninos da Linha" foi criado na época passada e já conquistou os adeptos

O “Meninos da Linha” – expressão usada na zona – tem entre 15 e 20 páginas, com uma tiragem de mil exemplares por edição, distribuídos gratuitamente no estádio – nos bares, camarotes, fanzones e até no setor visitante. E a procura é grande. Que o diga o telemóvel do assessor de comunicação do Estoril Praia. “A reação dos adeptos tem sido muito boa, felizmente. Há pessoas que me ligam a pedir edições específicas — “falta-me a X”, “a Y” —, e nós deixamos sempre exemplares na fanzone. Ainda no último jogo me ligaram a perguntar pela revista. Até o líder da claque me liga a pedir revistas em falta. É muito gratificante”, diz João, que deu a entrevista a Bola Branca precisamente ao lado de um dos adeptos que mais revistas cobra. E como dizia o outro... “não são poucas”.

“Sou uma pessoa que chega cedo ao estádio, gosto de apanhar o programa, dar uma vista de olhos, depois voltar a ler mais um bocadinho no intervalo. Eu dei uma entrevista para uma das edições e dessa vez levei bastantes exemplares para amigos e família. Não sei ao certo quantos, mas foram mais de dez”, lembra Miguel.

Mas o que é que este adepto do Estoril Praia tem de especial para merecer uma entrevista no programa oficial de jogo do clube? Precisamente isso: é adepto do Estoril Praia. “Nós tentamos fazer coisas bonitas e aproximar o clube da comunidade. A revista é também uma forma de os adeptos conhecerem outros adeptos — há muitas histórias de paixão e de sacrifício que merecem ser contadas — e também para os jogadores conhecerem melhor os adeptos e perceberem o amor que existe pelo clube”, explica João.

Em 15 páginas cabem os plantéis dos clubes que vão a jogo, notícias sobre as várias modalidades estorilistas, promoção à loja do clube, entrevistas a adeptos e até a jogadores, que não ficam de fora da febre da revista. “Antes do último jogo em casa, o João Carvalho foi bater à porta do nosso departamento de marketing. Virou-se para nós e disse a brincar que tinha de ser ele a capa da revista (risos). Para as capas, tentamos sempre que seja um dos jogadores que se tenha destacado nos últimos jogos. Por exemplo: o Joel Robles, o nosso guarda-redes, no jogo antes da partida com o AVS e foi a capa desse jogo. Também já tivemos entrevistas com o Mangala, com o Pizzi, com o nosso mais recente reforço Antef Tsoungui, o Felix Bacher… acho que eles gostam muito de aparecer, sim”, conta João Carreira.



À data da publicação desta reportagem, eram 16 as edições publicadas do "Meninos da Linha"
À data da publicação desta reportagem, eram 16 as edições publicadas do "Meninos da Linha"

Porém, nem tudo são rosas: apesar do sucesso entre adeptos e jogadores, há alguma probabilidade de, no futuro, haver menos cópias impressas. “Estamos a avaliar se faz sentido manter os mil exemplares por jogo, porque a nossa média de espectadores anda entre os 2000 e os 2500”. Porquê? A resposta não está, como é habitual e seria provável, no dinheiro.

“Felizmente temos muitos parceiros, e neste caso a revista não traz custos ao clube porque temos um patrocinador que nos apoia. A avaliação do número de exemplares é mais por uma questão ambiental. Tentamos não desperdiçar e causar o menor impacto possível. Não ignorámos essa questão quando lançámos o projeto, claro. Aliás, a revista também é publicada online, mas achámos importante começar pelo formato físico. Quando as pessoas já souberem que existe e for uma tradição, podemos pensar em passar apenas para o digital”, antevê o assessor de comunicação do Estoril Praia.

Pode ser uma boa nova para a namorada de Miguel, mas uma má notícia para o jovem adepto estorilista, que, mesmo não ignorando as questões ambientais, não tem dúvidas de que um PDF não é o mesmo que uma folha de papel. “Eu gosto mais de ter as coisas físicas, em papel. É como com os bilhetes dos jogos. Antes colecionava, agora é tudo digital e essa coleção foi-se perdendo. Mas, se for uma decisão para ajudar na sustentabilidade, compreenderei perfeitamente. O Estoril Praia tem essa preocupação como um dos pilares do clube. Ficaria um bocadinho triste, porque não poderia continuar a coleção da mesma forma, mas perceberia”, admite Miguel Catorze.


Miguel Catorze guardou todos os números do programa de jogo do Estoril Praia
Miguel Catorze guardou todos os números do programa de jogo do Estoril Praia

Mas mesmo que um dia o seu clube acabe por optar apenas e só pelo digital, ainda há uma esperança para Miguel continuar a colecionar programas de jogo. Porque teremos sempre Inglaterra. “Gostava de ter revistas de jogo de dois clubes ingleses: o Wolverhampton, porque gosto do clube e teve muitos portugueses; e o Fulham, por causa do Marco Silva, que é um dos meus treinadores preferidos. Seria especial ter um desses”.

Mas não tão especial do que ter um programa oficial de jogo do seu Estoril Praia... na Europa. “O que eu mais queria era que a última edição deste ano fosse com uma qualificação para a Europa na capa. Os tempos do Estoril europeu estão muito presentes na minha memória. Nessa altura, quando jogámos na Liga Europa, fiz uma coleção de cachecóis dos jogos. Poder juntar a isso um programa de jogo europeu seria mesmo especial”, sonha o adepto e sócio do clube da linha.

Por enquanto, o “Meninos da Linha” vai continuar, independentemente de todos os obstáculos naturais que apareçam. “Não vou negar que não é uma revista simples de fazer. Até porque sou eu que faço todas as entrevistas e escrevo todos os artigos – à exceção de um, que é uma crónica que nos dá muito orgulho e que colocamos sempre no final da revista. Felizmente temos um designer que nos acompanha e que já está completamente integrado no processo desde o início desta época, o que facilita muito as coisas”, explica João Carreira.


O programa de jogo do Paços de Ferreira, num jogo frente ao SL Benfica
O programa de jogo do Paços de Ferreira, num jogo frente ao SL Benfica

O mesmo pode dizer Paulo Gonçalves, diretor de comunicação do FC Paços de Ferreira. A equipa pacense é a fiel protetora do legado dos programas oficiais de jogo na II Liga. A Bola Branca, Paulo conta – com a ajuda da editora Sara Alves – que a FCPF Magazine foi lançada em 2018/2019, mas que esta época será publicada apenas mensalmente. Com uma tiragem de aproximadamente 1000 exemplares e feito por três pessoas, conta com um apoio de uma parceiro local, à semelhança do Estoril Praia, sendo o programa distribuído gratuitamente e divulgado também online.

A Renascença contactou as comunicações de todos os clubes da Primeira Liga: com base nas respostas recebidas, só Estoril Praia e Paços de Ferreira foram sinalizados como mantendo viva a tradição dos programas de jogo. Uma tradição que, 150 anos depois, está em vias de extinção, mas que representa aquilo que é o mais importante no futebol: a emoção. E essa nunca poderá ser digitalizada. “Acreditamos que é importante ter uma revista em papel, para que as pessoas fiquem com uma memória física de uma época ou de um jogo. É algo que se leva para casa, uma recordação", explica João Carreira.


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