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Dúvidas Públicas

SNS devia ter consultas para a longevidade

09 mar, 2024 - 08:00 • Sandra Afonso , Arsénio Reis

Com a população em rápido envelhecimento, Ana João Sepúlveda, especialista em economia da longevidade, alerta que a saúde pública não está preparada para receber estes utentes e defende a necessidade de parcerias público-privadas. Em entrevista à Renascença, descreve ainda esta "economia grisalha", que já é responsável por mais de metade do consumo, mas a grande maioria não tem acesso ao mercado da investigação e inovação que aposta na prevenção e qualidade de vida. A socióloga fala ainda dos novos empregos que estão a surgir, assim como produtos e serviços, que estão a mexer com área como a banca e os seguros, e rejeita trabalho ou voluntariado sénior gratuito.

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Fundo para a Longevidade lançado ainda este ano em Portugal
Fundo para a Longevidade lançado ainda este ano em Portugal

São cada vez mais as empresas, investidores, investigadores e governantes que olham para o envelhecimento como uma oportunidade de negócio, porque é um mercado em forte expansão, com uma procura em crescimento e grande potencial de desenvolvimento.

Não é consensual até que idade vamos viver, 120, 130 ou mesmo 180 anos, explica a socióloga Ana João Sepúlveda, no programa Dúvidas Públicas, da Renascença, mas todos concordam que vivemos cada vez mais tempo. O desafio é garantir qualidade de vida durante este tempo. É este o grande objetivo da economia da longevidade.

Nessa linha, a Associação Empresarial de Portugal (AEP) está a preparar o lançamento do primeiro Fundo para a Longevidade no país. Ao que apurámos, está já marcado para 2 de abril um encontro com investidores, no Porto, para apresentar o projeto, que tem sido bem recebido.

Em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, Ana João Sepúlveda explica que a "economia grisalha", do envelhecimento ou da longevidade, já movimenta triliões de dólares pelo mundo. Em Portugal nunca se fizeram estudos, mas estimativas para o país indicam que mais de metade do consumo é feito por pessoas acima dos 50 anos.

De acordo com esta especialista, o mercado português ainda se está a adaptar às necessidades destes consumidores grisalhos, como a banca, mas a transformação já está em curso. Ana João Sepúlveda deixa vários exemplos, como novos conceitos para medir o risco da idade nos seguros, novos tratamentos e farmacologia de rejuvenescimento e prevenção e casas modulares que se adaptam às necessidades das famílias, entre outros. Começam ainda a surgir novas profissões.

Sepúlveda admite mesmo que os Estados e as empresas comecem a ser avaliados também pela forma como lidam com a longevidade e o envelhecimento da população, o que pode afetar o respetivo rating e dificultar o financiamento.

Um dos problemas deste grande mercado, com forte investimento, altamente tecnológico e inovador, é que é também caro e inacessível à grande maioria dos portugueses. A socióloga defende que é preciso democratizar o acesso a estes produtos e serviços, mas nem o Serviço Nacional de Saúde está preparado para o envelhecimento da população, nem sequer disponibiliza consultas para a longevidade. Para Ana João Sepúlveda, será necessário envolver os privados.

A investigadora alerta ainda para a falta de respostas ao nível dos equipamentos sociais, o que já faz com que haja idosos a alugar quartos, às acessibilidades e à oferta dos transportes públicos.

Defende ainda uma segunda vida ativa, porque nem todos querem ficar em casa parados, após a reforma. No entanto, este trabalho deve ser remunerado, inclusive o voluntariado, e pagar os impostos devidos.


Segundo o Eurostat, Portugal é o país da União Europeia que está a envelhecer mais rapidamente. É o resultado do aumento da esperança média de vida, com a descida de natalidade, temos cada vez mais consumidores idosos, com necessidades específicas. Quanto é que vale este mercado?

Portugal ainda não produziu números, temos dados de outros sobre o nosso mercado. Trago uns dados da Associação Americana de Reformados (AAPIA), que bate mais ou menos com um relatório apresentado em 2022, depois teve uma outra versão em 2023, da Fundação MAPFRE. Eles fizeram também um estudo sobre quanto é que vale o mercado 50+ em Portugal.

Segundo dados recolhidos pela AAPIA em 2016, pré pandemia, quando ainda não estávamos tão sensibilizados para esta questão do envelhecimento e da longevidade, hoje o valor seria um bocadinho superior. Mas eles diziam que este mercado dos 50+ em Portugal representava, já em 2016, 7,6 trilhões de dólares americanos. Em 2020, isto representou 40% do nosso PIB, em 2030 irá representar 44%, e em 2050 46%. Eles diziam que os 50+ em Portugal foram responsáveis em 2020 por 59% do consumo interno.

Mais de metade do consumo interno é feito por pessoas com mais de 50 anos. Consomem não só para si, consomem para os outros, financiam muito o consumo das gerações mais novas.

Compram para os netos, para os filhos.

Ou dão dinheiro e os filhos consomem.

Isso é bom ou mau?

Eu acho bom! Gostava que os jovens tivessem mais poder aquisitivo próprio, mas não tenho nada contra isto, antes pelo contrário. Ou seja, quando as pessoas falam em economia grisalha, em inverno demográfico, se é verdade que isto tem um lado negativo, também é verdade que tem um lado positivo, ainda maior.

Ou não teríamos países como a Croácia, que em 2022 já estavam a fazer o segundo plano de ação para o envelhecimento e, claramente, a pôr o envelhecimento como uma das áreas estratégicas de desenvolvimento económico.

Pode dar-nos dois ou três exemplos práticos desse lado positivo?

Um aspeto positivo tem a ver com a área da inovação. Temos toda a sociedade pensada para uma sociedade com menos gerações e mais gerações mais novas, nós ainda não passamos este período de transição de alinhamento entre a sociedade e a realidade demográfica.

Tudo o que tem a ver com a saúde preventiva, a transformação da tecnologia para nos ajudar a monitorizar a nossa saúde.

Quer dizer que ainda estamos muito mais dedicados ao tratamento das doenças na idade grisalha, como disse há pouco, do que propriamente em prevenir essas doenças?

Sim. Uma empresa norte americana de estudos para esta área prevê que em 2027, a nível mundial, este mercado dos produtos, terapias, serviços, na lógica de prevenir ou retardar o envelhecimento, irá valer 216.52 mil milhões de dólares. A Merrill Lynch tem um valor um bocadinho acima para 2025, fala em 600 mil milhões de dólares para produtos, tecnologia e farmacêutica, tudo o que tenha a ver com a questão da vida saudável.

Um grande economista, o Andrew Scott, diz - e a mim, como sociólogo que trabalhou em estudos de mercado, faz todo o sentido - que quanto mais tempo estivermos a falar sobre as questões da longevidade, quanto mais as pessoas perceberem que vamos viver mais tempo, e por isso falamos na questão do dividendo da longevidade e no aumento do tempo de vida, mais as pessoas vão estar focadas no que podem fazer para viver bem.

Defende ainda que é uma questão intergeracional.

Nós hoje temos muitas famílias verticais, com poucas pessoas por cada geração, mas muitas gerações. Isto quer dizer que a transmissão de perspetivas, de pontos de vista, de valores, teoricamente, passa mais rápido de uma geração a outra, porque tem que impactar menos gente.

Ou seja, mais cedo os mais novos vão estar também preocupados com esta questão do investimento em aumentar a qualidade de vida.

Já que falamos em prevenção. Tem havido muita aposta, sobretudo lá fora, neste mercado, em farmacologia, tratamentos e até intervenções cirúrgicas. Mas isto ainda é muito dispendioso. É um mercado de nicho?

Essa é uma das questões que mais me preocupa, a democratização destes serviços.

Há uns anos a Margaretta Colangelo, que é também uma investigadora nesta área, foi a primeira pessoa que me chamou a atenção para a investigação na área da medicina da longevidade, que é uma nova área da medicina na prevenção, que é muito pensada numa lógica masculina. Ou seja, não leva em conta a complexidade do corpo da mulher. Por outro lado, é muito cara.

A investigação é financiada principalmente por grandes filantropos, a nível mundial, e a questão é como é que aceleramos a entrada destas soluções no mercado e, principalmente, nos serviços nacionais de saúde.

Em Portugal há, por exemplo, consultas de longevidade no Serviço Nacional de Saúde?

Que eu saiba não.

Mas deveria haver?

Claramente, deveria haver.

Como é que explica que não haja, dada a nossa tendência demográfica? É falta de centralidade destas questões?

Acho que sim. Nós continuamos a ser reativos. Portugal precisa de acelerar e deixar de ser reativo face aos outros, de assumir o papel de liderança que nos é proposto. O relatório que a Mapfre lançou em outubro do ano passado fala exatamente disso. Portugal tem capacidade, há espaço para ter um papel de liderança aqui.

A gestão do Serviço Nacional de Saúde é tão intensa, nós não nos preparámos para a realidade demográfica. Os centros de saúde não estão estruturados, nem as pessoas, muito provavelmente, preparadas e formadas para receberem pessoas mais velhas nas suas diversidades e complexidades.

Conforme envelhecemos, sentimo-nos mais inseguros. Se estou a atender, tenho que estar preparado, incluindo emocionalmente, para gerir uma pessoa que está com alto nível de stress e, se calhar, está a exagerar em relação àquilo que tem. Mas é minha obrigação, enquanto prestador de um serviço público, perceber e atender. Mas não estão preparados para isso.

Eu neste momento estou a fazer um tratamento com uma professora da Nova Medical School. Andei aqui uns tempos até perceber que não ia ser no Serviço Nacional de Saúde que ia encontrar o médico que precisava para a complexidade do meu corpo.

E a logística, o equipamento, a tecnologia?

Outro aspeto que eu acho que dificulta é que tivemos aqui um pudor nesta relação público-privado. O Estado não vai ter condições financeiras de suportar as despesas inerentes a uma população envelhecida e a envelhecer e nós a atrairmos pessoas com mais de 50 anos. Atraímos de uma forma estratégica, queremos ser a Flórida da Europa. Atraímos de uma forma não estratégica, quando permitimos que gerações mais novas venham.

Este pudor nesta relação público-privado tem custos. O relatório que saiu este ano, se não me engano em janeiro, do Fórum Económico Mundial, diz que é preciso haver uma relação público-privada para endereçar as questões da longevidade.

Nós estamos envolvidos na promoção da criação de um fundo de investimento privado cá em Portugal para a longevidade. É um projeto que vai ser liderado pela Fundação AEP, no Porto. Exatamente por percebermos que é preciso existir alguém, alguma entidade que centralize fundos privados.

Só com financiamento privado?

Com financiamento privado. A 40+ Lab, com uma equipa de alunos do MBA Executivo da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, fizemos um mapeamento de fundos de investimento, venture capital, family office. Várias entidades privadas de financiamento ligadas ao envelhecimento e à longevidade.

Já tínhamos feito um outro estudo para a Fundação Calouste Gulbenkian em que criámos uma hierarquia de 38 países nesta relação com a economia da longevidade. Ao cruzar esta informação, conseguimos perceber que aqueles países que têm uma estratégia para a economia da longevidade têm depois uma estrutura de investimento privado para esta área.

Segundo vários indicadores, a qualidade de vida nos últimos anos da nossa existência vai piorando. Afinal, vivemos mais mas pior em Portugal?

Infelizmente, sim. Em parte, por uma questão de literacia, ou seja, nós não sabemos envelhecer, não sabemos como o fazer. Parte porque não temos acesso às soluções.

No Longevity Med Summit foram apresentados estudos de casos e de empresas que trabalham nesta área. A suíça tem vindo a posicionar-se nesta área, tem uma estratégia muito agressiva para a longevidade, não só com a criação de estruturas bancárias para isto, fundos de investimento, mas também tem grupos. Aliás, um evento anual para investidores na área da longevidade acontece na Suíça. O comentário de corredores a algumas das entidades ali apresentadas era ou nos unimos, aqueles que procuram a democratização, ou isto vai mesmo criar uma clivagem entre as pessoas e fundos. Fruto da incapacidade financeira de aceder.

Pode agravar as desigualdades?

Vai agravar. Apesar do meu investimento na minha longevidade, o impacto será pequeno se for só eu a investir, com tratamentos, suplementos, etc. Se eu viver numa casa que não seja promotora da minha longevidade, num bairro que não seja promotor da minha longevidade, numa cidade... Ou seja, o ambiente que me rodeia, tem todo ele que ser promotor da minha longevidade. É uma questão complexa.

Mas uma oportunidade.

É também uma das minhas grandes preocupações é atuar para colocar Portugal no mundo. Nós temos possibilidade de aumento de crescimento económico, é o que acontece noutros países.

Os países, mais cedo ou mais tarde, vão ser avaliados pela sua capacidade de promover a longevidade dos seus cidadãos. Isto quer dizer que se Portugal não o fizer, quando quisermos, por exemplo, ir buscar dinheiro lá fora, as empresas de cotação vão olhar para nós e vão dizer que não recebemos tanto ou pagamos mais juros. Quando uma Bloomberg começa a pensar em criar um índice de longevidade, mais cedo ou mais tarde nós vamos estar a fazer rankings dos países em relação a isso.

As empresas já são avaliadas por este critério?

Ainda não.

Mas acha que vamos caminhar também neste sentido?

Não tenho dúvidas.

Ainda sobre o Fundo de Investimento para a Longevidade, quantas empresas em Portugal estão envolvidas e quanto em capital já conseguiram reunir?

Ainda não chegámos a essa fase. O que é que posso dizer? Estamos a preparar um evento para abril deste ano e vamos querer fazer um encontro de investidores. É algo que em breve a Fundação AEP irá comunicar.

Queremos colocar à conversa pessoas que já estão ligadas a investimentos nesta área e pessoas que queiram perceber porque é que é interessante. A nossa ideia é encontrarmos um conjunto de entidades que queiram criar este fundo de investimento. O objetivo é criar este fundo de investimento para a longevidade ainda este ano.

Há uma meta para o valor? Quanto é que esperam reunir?

É a pergunta certa, à pessoa errada. Mas estive há pouco tempo a falar com uma pessoa que está à frente da empresa, que irá fazer a construção deste fundo. A explicação que me deu foi que deveria ser um fundo médio-grande, para termos fundos de pensões, fundos imobiliários e family office.

Tive oportunidade também de falar com Christian Kumar, um investidor, que conheci num pequeno-almoço promovido pela Embaixada do Reino Unido em Lisboa. O Christian tem exatamente a mesma visão, que tinha que ser um fundo médio grande.

Eu sei que do ponto de vista de condições, nós somos um bom país para para que isso aconteça, é interessante.

Já começaram a contactar empresas, fundos?

Já começámos.

Qual é o feedback?

Nós temos tido muito interesse. Por isso substituímos a ideia inicial de uma reunião para um evento de meio dia.

O meu objectivo é ir plantando aqui as sementes, porque há uma visão para Portugal, que passa pela criação do ecossistema para a longevidade, passa pela criação de um consórcio de entidades privadas que queiram de facto usar o potencial que Portugal tem para desenhar a inovação, para trazer soluções para o terreno. E nós precisamos de investimento privado.

Este é um mercado onde a procura continua a aumentar naturalmente e em franco crescimento, diria eu, e uma oportunidade de negócio, como estamos a ver e ouvir pelas suas palavras. Quais são as áreas ou setores que mais poderão beneficiar em Portugal?

Há setores óbvios. Toda a área financeira, porque há coisas que já estão hoje em dia mais do que estudadas, nós precisamos de uma perspetiva de prevenção de saúde financeira e, mais uma vez, inter-geracional.

Precisamos que as pessoas desenhem estratégias para serem saudáveis do ponto de vista financeiro, principalmente nas últimas décadas de vida, que é onde teoricamente vão precisar de maior investimento, nomeadamente na área da saúde. Acho que o mundo financeiro já está a levar aqui uma volta, com a Inteligência Artificial e a tecnologia. A demografia tem também aqui impacto.

A banca já está a responder a estes consumidores?

Alguma banca, sim. Aqui em Portugal, não tanto.

Há aqui uma dupla visão. Enquanto eu olhar numa perspetiva de envelhecimento, eu vou ter uma visão desalinhada com a mentalidade do consumidor. Nós, consumidores, cidadãos, vamos estar muito mais focados na componente da longevidade. Por isso é que eu venho cada vez mais a falar na longevidade na economia, embora aqui tenha estado a falar sobre economia da longevidade. São coisas diferentes.

Isso quer dizer que o mercado não se está a adaptar a estes consumidores mais velhos? Nem sempre é facil encontrar determinado artigo, menos complicado ou mais acessível, como nos telemóveis. É sempre assim?

Não. Já temos alguma banca que começa a olhar para isto, seja por iniciativa própria, seja por necessidade de outros.

Por exemplo?

Há uns tempos falei com uma fintech americana que tinha vindo para Portugal, trocou Nova Iorque por Lisboa. Deram-me duas razões.

O principal motivo era a tontina, algo que deixou de existir mas a União Europeia recuperou. Explicando de forma simples, imagine que temos aqui uma caixa, para onde cada um transfere dinheiro. O último a morrer leva a maior parte do valor, não é dividido pelos descendentes de nenhum dos participantes. Ou seja, antigamente as pessoas literalmente matavam-se umas às outras para terem acesso à caixa toda!

Há relativamente pouco tempo, a União Europeia aprovou as tontinas, como forma de complemento de pensão, não numa perspetiva individual. Esta fintech queria entrar no mercado europeu com as tontinas.

Além disso, a empresa norte-americana considerava Portugal um país muito bom para se viver, com boas infraestruturas tecnológicas e mais seguro e mais barato que Nova Iorque. Trouxeram a empresa e a família. Ou seja, se nós tivéssemos uma estratégia para esta área da economia da longevidade, estaríamos a atrair outras fintechs, por exemplo.

São novos produtos, novas tecnologias, adaptadas ao envelhecimento?

Não tenho dúvidas que é o caminho, que é a oportunidade. Todo o sistema de seguros, toda a lógica do modelo de negócio está a ser e vai ser impactado por duas coisas, que é a evolução tecnológica e a evolução demográfica.

Os seguros é outra área bastante fechada aos idosos.

Já começa a não ser. Imagine que eu mudo a lógica do risco nos seguros. Hoje, de uma forma muito básica, é a minha idade. A partir de determinada idade, o risco é tão alto que há determinados seguros que ficam inacessíveis. E se a lógica do risco passasse a ser pela idade que eu tenho a viver?

A esperança média de vida?

Não. A esperança individual de vida. Ao trabalhamos com biomarcadores, conseguimos definir com que idade é que cada um de nós vai morrer. Eu consigo ter aqui um sistema, uma lógica de risco que passa a ter a ver com a minha idade biológica e a minha esperança de vida.

Até na compra da habitação, em que as condições do crédito são definidas com base em limites de idade pré-estabelecidos, se tiver indicadores individuais que prolonguem a minha idade, não há nenhum motivo para que esse crédito não possa ser estendido. É isto que nos está a dizer?

É isso.

E com menor risco.

Exato.

Já existem tabelas de evolução demográfica que nos mostram, não a evolução do tempo vivido mas, a evolução do tempo a viver, por gerações. Quanto tempo é que as gerações vão viver num determinado país? Este é o racional que, em princípio, vai começar a ser utilizado.

E esse racional aponta para que idades? 120, como dizia há pouco?

Eu acho que sim. Há quem diga e há quem esteja a investir para que cheguemos aos 180. Acho que é bocadinho torre de Babel. Mas 120, 130 são as previsões mais comuns.

E nesse caso, pelos estudos e informação a que tem acesso, até que idade vamos trabalhar?

A questão é: o que é que é para si trabalho? Isto é tão disruptivo! Quando o trabalho é impactado pela tecnologia, pela evolução da inteligência artificial, pela facilidade com que eu tenho de andar de um sítio para o outro, esta tendência para acumular trabalhos ou criar o próprio negócio, esta perspetiva de contribuição para a sociedade, para a economia.

Eu se calhar tenho capacidade para trabalhar até ao dia que morrer. Não equaciono, honestamente, a questão da reforma, equaciono sim a questão da sustentabilidade financeira, o tipo de vida que eu quero ter. Há países que já falam em segunda vida ativa.

Mas essa segunda vida ativa deve ser remunerada? E como?

A segunda vida ativa deve ser remunerada, claramente. Nós precisamos de continuar a ter dinheiro disponível. Eu quero continuar a consumir! Isto leva-me a querer ter necessidade de ter dinheiro disponível.

Não há mal nenhum em continuar a pagar impostos. Há coisas que terão que ser o Estado a prover.

Também será necessário que as pessoas comecem a fazer um planeamento financeiro da sua velhice com maior antecedência? Não depender tanto do Estado?

Mais uma vez, passa pela questão da literacia. Eu tenho que saber o que é que isto de viver mais tempo e depois perceber como é que faço a minha gestão financeira. A Fundação António Cupertino Miranda tem vindo a fazer um trabalho muito interessante na área da literacia financeira.

A mim preocupa-me a digitalização do dinheiro, principalmente com os mais novos. O dinheiro digital é volátil, eu não o vejo desaparecer. Mais facilmente perco o controle das contas e isto, mais cedo ou mais tarde, vai ter implicações na vida deles, quando forem mais velhos.

É preciso trabalhar na literacia para a longevidade, a sério.

Há também muito apelo ao voluntariado sénior.

Esta noção de trabalho voluntário não pago a mim não faz sentido. Mesmo que seja um trabalho voluntário, eu tenho sempre despesas, a menos que a pessoa que faz o trabalho voluntário diga quetem condições para isso. Mas, por sistema, não faz sentido.

Conheço alguns projetos de impacto social com pessoas mais velhas. É preciso voltar a trazê-las para dentro da sociedade, o que implica dar-lhes condições de voltarem a receber um salário.

Há pouco não chegou a concluir, que áreas mais beneficiam com esta economia do envelhecimento?

Falei da banca e do setor financeiro. Temos o setor imobiliário. Não estamos a falar nos bairros de 15 minutos dos quais não sou propriamente fã, acho que corremos o risco de criar guetos. No caso de Lisboa, eu prefiro ter um sistema de transportes acessível, mas é rara a estação de metro com elevador ou escadas rolantes a funcionar. Isto é inaceitável!. As empresas que gerem os transportes públicos têm de começar a ser responsabilizadas.

Outra área é o grande consumo. Não vai estar longe o dia em que vamos entrar num supermercado e vamos ter uma secção com o nome Longevidade lá dentro. O que é que eu iria encontrar? Por exemplo, sigo uma biohacker que publicou no instagram um suplemento que, entre outras coisas, reforça os cabelos e unhas. Inclusive, recupera os cabelos brancos.

Há uma empresa inglesa que tem um teste ao sangue que vem numa caixinha, que eu poderia comprar nesta secção do supermercado, eles recolhem o teste em casa e enviam para o Reino Unido. Em alguns dias recebo o relatório em casa.

E que tipo de informação pode receber?

Ainda não fiz o teste, tenho lá a caixinha em casa. Mas, entre outras coisas, dá-me a minha idade biológica, com um nível de acuidade muito grande e mede uma imensidão de fatores de saúde. Fazem ainda uma consulta com o médico deles, para nos ajudar a perceber o relatório, como é que depois gerimos os resultados.

Pode antecipar eventuais problemas de saúde?

Claramente.

É caro?

O kit custa, tanto quanto me lembro, 600 euros. Voltamos ao tema da democratização. Como é que fazemos para que estas coisas cheguem ao mercado, sem promover a desigualdade?

Quanto mais pessoas, por exemplo, usarem este teste, mais dinheiro eles vão ter para continuar a promover a investigação.

É a área da prevenção, um mercado novo. Isso leva também aos novos empregos que esta economia grisalha está a criar.

Há mesmo novas profissões, já falei dos biohackers, são um otimizador da saúde. Acho que vamos ter aqui uma outra vertente, profissões que já existem, mas que vão mudar radicalmente a forma como são percebidas, a valorização. Estou a falar, claramente, dos cuidadores formais.

Quando nós olhamos para as novas tecnologias e para a robótica, por exemplo, e como é que no Japão é trazida para dentro de casa. Se eu não tiver nenhuma doença mental, não vou querer um robô para me fazer companhia, prefiro ter uma outra pessoa. Contudo, não vou achar mal que venha um robô para me levantar da cama e me sentar na cadeira, em vez daquele profissional que eu valorizo e a quem pago bem.

Mais uma vez, voltamos à capacidade para financiar isto, temos que ter a economia social muito ligada a esta área da longevidade e o investimento privado.

O ideal, obviamente, seria que os filhos tomassem conta dos pais, mas nem sempre isso é possível. Restam os equipamentos sociais que não chegam para a procura. Este é um dos principais desafios de hoje?

Sem dúvida. A área do imobiliário é uma das indústrias que mais tem vindo a crescer. Passam-me por mês vários projectos pela mão, não me lembro de um que tenha um cariz de impacto social, que não fosse para ricos, milionários, estranjeiros, americanos, suíços...

Vamos ter aqui uma diversidade de conceitos. Desde o aparthotel, onde gostava de morar, com cozinha e retaurante, para os dias em que não me apetece cozinhar, médico à distância de um botão. Ainda conceitos para diferentes graus de autonomia e para diferentes bolsas.

Mas disse que as novas ofertas dirigem-se à classe média-alta.

Começa a existir no mercado pessoas mais velhas a alugarem quartos e a viverem o quarto. Isto a mim faz-me alguma confusão. Aquela pessoa vai passar o seu dia fechada num quarto, de uma casa que não é a sua. Se calhar, por falta de oferta de estruturas habitacionais para pessoas independentes, mas com pouco poder de compra.

Sente que essa necessidade já está a provocar alterações no mercado?

Sei que o Ministério da Segurança Social tem vindo a olhar para isto. Também sei que algumas infraestruturas que existem em Portugal foram penalizadas pela própria Segurança Social. Se, por um lado, tem havido aqui alguma tentativa de pensar noutras formas, há alguma rigidez no licenciamento de novas soluções e na forma como está a ser feito.

Volto à questão do público-privado. Porque é que não podemos ter estruturas de saúde, lares ou outras, nas velhas e boas PPP? A questão é como é que as coisas são reguladas?

E o apoio domiciliário, que permitisse às pessoas permanecer nas suas casas? Também não há uma tradição em Portugal desta prática?

Não há, começa é a haver novas soluções e este é o caminho.

Lembro-me de estar em Bruxelas e de ouvir que os europeus não são americanos, os europeus não saem das suas casas para irem viver noutros conceitos. Além disso, é muito mais confortável e muito mais humano criar condições para que as pessoas continuem a viver nas suas casas.

Como pode ser uma casa para a longevidade?

A Irlanda há uns anos já tinha laboratórios nesta área. Começou a conceber casas modulares, com paredes amovíveis, em que hoje tenho um T5 mas amanhã posso ter um T3 ou um T2.

Por outro lado, os serviços irão cada vez mais para dentro da casa das pessoas. Esta também é uma área que cresce.

Precisamos de financiamento e de literacia, para que eu perceba que a mulher a dias não está formada para vir tratar de mim!

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