22 fev, 2025 - 08:30 • Sandra Afonso , Arsénio Reis , Marta Pedreira Mixão (vídeo)
A produção para fins militares ainda é limitada em Portugal. Esta já foi uma indústria visível, mas veio a perder peso ao longo das últimas décadas. Ganha agora um novo fôlego, mas associada a novas tecnologias.
Em entrevista à Renascença, José Neves, presidente do Cluster Português da Aeronáutica, Espaço e Defesa, explica que as empresas no país que produzem exclusivamente para fins militares são residuais. Normalmente, a produção visa uma utilidade civil e pode ser depois adaptada, para a defesa, ou vice-versa.
Quando passam três anos da invasão da Ucrânia pela Rússia, aumenta a pressão sobre a Europa, para que os Estados-membros se articulem num projeto comum que sustente a soberania europeia em defesa. No entanto, não basta despejar dinheiro. José Neves defende que, se Portugal antecipasse neste momento o objetivo de investir 2% do PIB em defesa, só iria aumentar as importações para 95%, porque a indústria ainda não está preparada para aumentar a produção. Quatro anos é um bom prazo para chegar ao objetivo e o limite deve ser os 2,5%, segundo este especialista.
Por outro lado, para atrair mais capital para esta indústria, será necessário desbloquear regras e regulamentação e agilizar procedimentos. É também importante facilitar o acesso ao financiamento e o licenciamento de novos contratos, por exemplo. Outro entrave nestes negócios é a contratação.
José Neves dá vários exemplos ao longo desta entrevista do que já se produz em Portugal e do muito que ainda pode ser explorado, sempre com a integração de novas tecnologias, inteligência artificial, quântica e recurso a mao-de-obra qualificada e especializada. “Uma pessoa que trabalha no chão de fábrica pode ganhar ainda mais do que o engenheiro, porque é altamente especializado neste setor”, garante.
O país está muito longe da produção de fardas, tem capacidade e já produz bens de valor acrescentado. Através do PRR, há 400 milhões de euros em investimento.
José Neves é o convidado desta semana do programa Dúvidas Públicas da Renascença. José Neves trabalha no sector da defesa há mais de 20 anos, é membro do Conselho de Organização da AESD Europe, entidade com sede em Bruxelas que representa as indústrias de aeronáutica, de espaço, de defesa e de segurança e Presidente do Conselho de Administração da AED, o Cluster Português da Aeronáutica, Espaço e Defesa.
O Programa Dúvidas Públicas é transmitido aos sábados, a partir do meio-dia, e está sempre disponível em podcast, no Youtube e em rr.pt
A pressão sobre a Europa para que invista mais em defesa continua a aumentar, ninguém duvida que Donald Trump vai reduzir o apoio financeiro à Ucrânia, mas o financiamento europeu não depende também do papel que a União Europeia ocupar nas negociações de paz e de como fechar este processo?
Quando discutimos muito o investimento europeu em defesa, temos que pensar qual é a capacidade que a Europa tem neste momento em defesa. Entre 2022 e 2023, mais de 50% do investimento da defesa na Europa foi importado de outros países, nomeadamente dos Estados Unidos.
Há essa perceção que temos de trabalhar mais em conjunto na Europa. Até porque, os investimentos da Europa são muito significativos. A Europa investe mais do que a Rússia e mais do que a China em defesa. O problema é que a Europa está fragmentada. O investimento que é feito em França não se coordena com o investimento que é feito em Portugal, nem com o investimento que é feito em Espanha. O que faz com que haja uma desarticulação entre as diferentes forças. Como é que nós conseguimos algo sustentado para o futuro?
Nós temos uma entidade europeia, que é a Agência Europeia de Defesa, mas que ainda tem investimentos pequenos. E porquê? Porque os países têm sempre aquela perceção de soberania nacional. Não temos uma soberania europeia e esse é o grande desafio, a mudança de paradigma.
Estamos a falar ao nível da União Europeia. Sem o Reino Unido?
O investimento europeu, anda na ordem dos 425 mil milhões de dólares. Inclui o Reino Unido e é um parceiro importantíssimo quando falamos da Europa.
O cluster faz parte de um grupo europeu, que é a AESD [Academia Europeia de Segurança e Defesa], onde está o Reino Unido. Porque é um parceiro importantíssimo quando falamos em defesa europeia. Falamos em defesa europeia e não falamos de defesa da União Europeia.
Imaginando alguém que quer ir às compras na área da defesa, vai comprar um tanque alemão ou um tanque francês? Ou seja, a Europa não tem uma estratégia comum a esse nível?
Vamos ao nosso catálogo e vimos o tanque alemão, o tanque francês e o tanque americano. E na realidade, o tanque com mais experiência operacional é muitas vezes o americano.
Visita de Mark Rutte
Objetivo atual é atingir nível de investimento em (...)
Há um fundamento europeu de temos de comprar mais europeu. Para mim o importante, do ponto de vista do cluster, é o que isto significa. Comprar mais europeu significa comprar só francês ou comprar ao nível europeu, com uma cadeia de valor integrada?
Esse é um grande desafio que nós temos para a Europa.
Ou deve haver um único tanque europeu, comum a todas as forças na Europa?
Mas aí voltamos à questão de base, da nossa fragmentação e de políticas diferentes.
Por exemplo, a Alemanha e a França têm perspetivas de exportações diferentes. A Alemanha não exporta para a Arábia Saudita produtos de defesa, mas a França já exporta. Quando fazemos um produto integrado, como foi o Eurofighter, há cerca de 20 anos, o projeto dividiu-se em dois. O Rafal francês, que poderia ser exportado para países do Médio Oriente, e o Eurofighter europeu, envolvendo a Alemanha, Inglaterra e outros países, que não podia ser exportado para esses países.
Portanto, logo aí temos questões políticas que são mais complexas do que só desenvolver o tanque europeu. É um desafio.
Hoje em dia vamos a Bruxelas e falamos de defesa, defesa, defesa, depois vêm as tecnologias de defesa, quânticas, de inteligência artificial. Há quatro anos, cinco anos, ninguém falava de defesa. Há 15 anos, uma candidatura a um projeto europeu, em que aparecesse a palavra defesa, não era aprovada. A palavra defesa era tóxica.
Mas a invasão da Ucrânia não mudou este cenário e esta urgência, e não pode até viabilizar a tal estratégia única de defesa?
Infelizmente, neste cenário de guerra, de morte de pessoas, esse é o outro lado da moeda. Temos de ouvir Donald Trump, é o Presidente da nação mais importante a nível global, é a nação que mais investe sozinha, mais do que todos os outros juntos.
Nessa perspectiva, até voltando à pergunta inicial, o facto de Donald Trump estar a afastar a Europa da eventual resolução deste conflito, também não pressiona a Europa a chegar-se à frente ao nível de defesa?
Sem dúvida, mas já agora, uma nota. A China também não tem estado envolvida nestas discussões, o que é uma novidade para os atores geopolíticos. Mas seria outra conversa.
Sim, a pressão que Donald Trump passa para a Europa é que "vocês não têm capacidade de ir para a guerra, têm que a desenvolver". Temos que transformar este problema, esta ameaça, numa oportunidade, nomeadamente para a indústria de defesa europeia se dinamizar e, para isso, criar uma estratégia comum. Porque essa estratégia comum até agora não houve e começa a ser muito importante.
O Comissário Europeu para a Defesa e Espaço deverá apresentar até 19 de Março o Livro Branco sobre a defesa europeia. É a União Europeia, no fundo, a preparar-se para aquilo que pode ser o pior cenário, um eventual ataque a um Estado Membro? O que é que é preciso para escalar a indústria de defesa na Europa?
Em primeiro lugar, articulação entre os diferentes atores, tanto a nível nacional como europeu. Articulação entre atores políticos, as forças armadas e indústria. Quais são as capacidades que existem na Europa que podem ser desenvolvidas e, entre as que não são, quais são críticas e têm que ser desenvolvidas.
Há pouco mencionou a inteligência artificial. A Europa vai investir 200 mil milhões de euros em inteligência artificial. Os Estados Unidos vão investir 500 mil milhões de euros em inteligência artificial. O seja, em 5 anos garantidamente os Estados Unidos vão estar ainda mais à frente do que estão hoje em inteligência artificial.
Quando falamos de defesa, temos de ir também ao plano Draghi, em que diz que nos estamos a afastar da realidade mundial. A diferença entre a Europa, por um lado, e a China e os Estados Unidos, por outro, está a crescer cada vez mais.
"A pressão que Donald Trump passa para a Europa é que 'vocês não têm capacidade de ir para a guerra, têm que a desenvolver'. Temos que transformar este problema, esta ameaça, numa oportunidade
Também segundo o relatório de Mário Draghi, a União Europeia vai precisar de cerca de 500 mil milhões de euros na próxima década, para se manter competitiva a nível mundial no setor da defesa. Será necessário encontrar novas formas de financiamento, para além dos orçamentos nacionais?
Se olharmos para o investimento europeu de defesa, o European Defence Fund, no programa quadro atual, que vai até 2027, estamos a falar de cerca de 12 mil milhões de euros. O plano do novo Comissário Europeu, é de cerca de 100 mil milhões de euros. Portanto, estamos numa escalada de quase 10 vezes mais.
É um potencial envolvimento de defesa percentual de 2.5% do PIB, de cada país, para trabalho em comum com as diferentes entidades europeias. Portanto, não é cada país, mas o bolo que podemos alocar a uma construção europeia de tecnologias.
Por exemplo, o programa europeu de defesa promove muito isso, um projeto não é aprovado se não envolver pelo menos 3 países. Aí promovemos uma cadeia de fornecimento europeia.
Já temos bons exemplos. O Airbus A400M já envolve um conjunto de países europeus que depois adquiriram a aeronave. Portugal, infelizmente, tem estado fora desses grandes desenvolvimentos europeus. O que tem sido um problema.
Por falta de interesse, falta de capacidade?
Um pouco de tudo. Nunca há uma resposta, há várias respostas. Portugal inicialmente esteve envolvido no desenvolvimento do A400M, ainda tinha outro nome à altura, mais tarde saiu porque a indústria portuguesa de defesa tem sido diluída ao longo dos tempos.
Neste momento temos muito poucas empresas que trabalham só em defesa em Portugal. Temos uma ou duas que só trabalham em defesa.
Olhando para o cluster, temos 150 entidades. Dessas, cerca de 130 são empresas, depois temos institutos tecnológicos, inclusive câmaras municipais. Dessas 130, 90 trabalham em defesa.
A maioria?
Sim e não. Um ou dois por cento trabalham em defesa, usam o conhecimento que têm da aeronáutica e do espaço para trabalhar em defesa, o que é muito bom. O duplo uso da tecnologia. Por exemplo, o programa de Vigilância de Objetos Espaciais é gerido em Portugal pela indústria de defesa e pela Força Aérea.
Elas têm finalidades civis e não tanto de defesa.
É para nós um grande desafio catalisar esse desenvolvimento. Se vamos aumentar o nosso investimento em defesa, de 1.4%, 1.5% do PIB para 2% ou 2.5% do PIB, para mim o desafio é tornarmos a despesa em defesa em investimento em defesa. Em vez de importarmos tudo, que é o que acontece hoje, 90% é importado. Temos poucos OEMs, integradores que exportam defesa.
Dizermos que Portugal vai investir 6 mil milhões em defesa por ano, o que significa 10 mil postos de trabalho.
Neste momento a AED representa 20 mil postos de trabalho, mas muito poucos ainda em defesa.
Está a ligar duas prioridades europeias, a defesa por um lado e a reindustrialização por outro. Ou seja, a reindustrialização também se pode fazer com o setor da defesa?
Claramente.
Em Portugal temos a Lei de Programação Militar que define os investimentos a 12 anos. Temos estado a falar com os ramos das Forças Armadas e com o Ministério da Defesa sobre a necessidade de um alinhamento entre as necessidades das Forças Armadas e o que é que a indústria pode fazer. E usarmos programas como o European Defence Fund, que promove investimento em defesa na área de investigação e desenvolvimento, para desenvolvermos capacidades nacionais e para que a indústria portuguesa tenha capacidade de fornecer as Forças Armadas no futuro.
Não é dizer que vamos desenvolver uma aeronave, um navio, mas que essa aeronave e esse navio integrem a tecnologia portuguesa, integrem as empresas portuguesas, o sistema científico e tecnológico português, na sua cadeia de fornecimento. Esse é um desafio enorme. E já temos bons casos e boas práticas em Portugal.
Deixe-me só dizer um exemplo aqui. O KC390, desenvolvido e fornecido à Força Aérea Portuguesa, pelo Embraer, envolveu no seu desenvolvimento entidades nacionais: a OGMA, o CEIA, a Optimal, o Ricardo e Barbosa. Empresas essas que, depois, usaram esse conhecimento noutros projetos, seja civis, seja militares.
Portanto, conseguimos ganhar empregos à custa de investimentos em defesa.
E estamos a criar valor acrescentado?
Isso. Passamos de importação para exportação.
Munições, por exemplo, não parecem um produto de valor acrescentado, mas quando fala em integrar novas tecnologias, já parece um produto mais escalável.
Eu olho para as munições como algo com menos valor acrescentado. Para mim, nós temos que olhar para o cenário da guerra 5.0. Ou seja, temos que olhar para drones autónomos, para a inteligência artificial, para sistemas submarinos, onde Portugal tem que ter um papel importante. Costumo dizer à minha família, podemos ter um submarino russo aqui à nossa porta, aqui ao largo de Portugal.
Ainda não há um alinhamento a nível nacional, nesta área, sobre o tipo de projetos que deveriam ser desenvolvidos?
Existe. Nós temos estado a trabalhar com as Forças Armadas, temos reuniões regularmente, também com o Ministério da Defesa, com a própria IDD, no sentido de articular as necessidades. Como é que a indústria pode trabalhar com os centros de investigação e desenvolvimento?
As Forças Armadas, os três ramos, têm anualmente seminários e conferências a promover as nossas necessidades futuras, como é que vemos o ID, a investigação e desenvolvimento nestas áreas, para nós também o entendermos.
Nós não queremos desenvolver um novo avião de combate europeu. Não queremos. Mas queremos fazer parte desse desenvolvimento.
A indústria está a aproveitar o PRR?
Se for ver a execução dos PRRs, provavelmente os que açambarcam as áreas da aeronáutica, espaço e defesa, são dos mais desenvolvidos. Nós estamos a desenvolver em Portugal uma aeronave de transporte de passageiros e de carga, que pode ter uma utilização muito importante na área da defesa. O Lus 222. Estamos a desenvolver um drone de 650 quilos, que pode ter uma importância muito grande na área de vigilância costeira e defesa. Estamos a desenvolver satélites que têm um papel crítico na defesa europeia e na defesa nacional, a nível de vigilância.
São exemplos que estão a acontecer hoje. A AED no PRR, envolve investimento na ordem dos 400 milhões de euros. Inimaginável, há 3, 4 anos atrás.
O PRR para nós tem sido um farol de desenvolvimento tecnológico.
E quase todo esse investimento é possível ser aplicado militarmente?
Sim, grande parte tem capacidade de utilização dupla. Ou seja, um satélite, quando está a ser desenvolvido para a observação da terra, pode detetar embarcações civis como militares. O Lus 222 pode transportar passageiros como militares ou carga militar. O drone pode ser usado para a vigilância de florestas como para a observação da terra ou para a vigilância na defesa, na segurança portuguesa.
"Para mim o desafio é tornarmos a despesa em defesa em investimento em defesa. Em vez de importarmos tudo, que é o que acontece hoje"
Voltando um pouco atrás. Diz que já há encontros regulares com as Forças Armadas. E sente interesse por parte dos empresários em desenvolver parcerias e entrar nesta indústria?
Sinto, por isso é que é importante a visão a médio e longo prazo. Ou seja, as empresas, a indústria, saberem o que é que as Forças Armadas necessitam daqui a 3, 4, 5, 6 anos. Eu costumo dizer, qualquer empresa poderá investir se saber que vai ter um comprador mais à frente.
De certa forma, as necessidades até estão na Lei de Programação Militar. Uma crítica que eu muitas vezes faço à LPM é a sua falta de determinismo. Muitas vezes não é executada. Em 2023 ficou em 64%.
Um dos grandes problemas é a contratação pública. Ou seja, como é que as Forças Armadas podem lançar um concurso público internacional ou nacional e como é que esse concurso depois é executado? Entre o momento da proposta e a adjudicação, há um processo de advogados, logístico, que demora e é um desafio enorme para as Forças Armadas.
Hoje já não são prazos viáveis?
No passado, as Forças Armadas podiam pensar num caderno de encargos, lançar um concurso e 4, 5 anos depois tinham o bem. Agora, imagine comprar um produto na área de Inteligência Artificial. Três anos depois o produto está desatualizado. Na área de ciber, um ano depois o produto está desatualizado.
É um desafio tornar a contratação pública mais rápida e eficaz.
Portugal tem como objetivo atingir em 2029 a meta que falhou em 2024, que era gastar 2% do PIB em defesa. Este objetivo deve ser antecipado?
Se nós tivéssemos hoje a utilização de 2% do PIB, estávamos a importar praticamente 95% desses equipamentos.
Por isso estamos também em diálogo com o Ministério da Economia. O programa Avançar Portugal olha para a economia de defesa, é importante pensarmos como é que criamos capacidade, como é que galvanizamos a nossa indústria, para olharem para a indústria de defesa, como algo que tem potencial. Temos de criar capacidade em Portugal.
Esta despesa tem que acompanhar a produção?
Eu vou um pouco mais a montante. A criação de conhecimento, atração de talento para estes mercados, a retenção de talento nestes setores, para termos a capacidade de produção e industrialização no futuro. Os projetos PRR têm outra importância que não mencionei, são projetos em que Portugal passa a ser o OIM, ou seja, começamos a ser nós o vendedor da aeronave, do drone, do satélite e conseguimos, pela primeira vez em Portugal, controlar a nossa cadeia de fornecimento nacional.
É importante criar empresas ou consórcios em Portugal, porque são investimentos de vários milhões de euros. Quando assumi a presidência da AED, em 2019, éramos 53 entidades, hoje em dia são mais de 150. Agora, temos que colocar empresas, que muitas vezes são concorrentes, a trabalhar em conjunto.
O Primeiro-Ministro, quando diz que vai despender 2% em defesa, vai dizer que investe 2% em defesa, porque vai criar 20 mil postos de trabalho, ou 10 mil postos de trabalho em Portugal, nestas áreas.
Por isso, 2% em Portugal, hoje, não seria bom. Mas, 2% em 2029, se desenvolvermos a indústria, já será muito bom, estamos a criar postos de trabalho, estamos a dinamizar um eixo da economia portuguesa, que hoje em dia é muito pequeno.
E qual deverá ser o limite?
Acho que 2,5% já seria muito interessante para Portugal, estamos a falar, provavelmente, de 8 mil milhões de euros por ano. A Polónia está nos 4.2% e estamos a falar de 24 mil milhões de euros. A Holanda tem 2% e estamos a falar de 20 mil milhões de euros por ano.
A Polónia tem fronteiras muito complicadas.
Mas a Holanda não tem, e o investimento em valor absoluto é quase o mesmo. Agora, a Holanda quando investe em defesa, olha para o Ministério da Economia e o Ministério da Defesa. Se é uma prioridade rápida, é a defesa, se é uma prioridade a longo prazo, é a economia.
É o que nos falta? Estratégia.
Exatamente. Estamos a trabalhar nela. Outro ponto importante, quando fazemos grandes aquisições internacionais, como o KC 390 ou neste momento, por exemplo, na área da Força Aérea, o F-35, temos de pensar como é que podemos tornar essa despesa em algo benéfico para o país. Como é que podemos olhar para o investimento no F-35, de vários biliões de euros, em um farol de desenvolvimento económico? Como é que podemos criar empregos de elevada qualificação?
No ecossistema americano, veem que todos os estados beneficiam hoje em dia com o F-35. O Colorado tem 30 empresas, a Califórnia tem 6 mil empresas. E todos eles empregos de elevada qualificação e empregos bem pagos. Temos que olhar para o armamento da nova geração e não para a bala.
São importantes, como vimos no cenário ucraniano, mas o valor acrescentado é menor e já existem entidades no mundo a desenvolver isso. Entidades a desenvolverem sistemas autónomos, com inteligência artificial, que fazem uma guerra quase sozinhas, há muito poucas. Esse é o desafio e nós temos tecnologia e capital humano. Há pessoas a virem da Alemanha, de França, para Portugal porque veem aqui desafios que não existiam no passado.
Faz sentido olharmos para a indústria da defesa, por exemplo, como a indústria automóvel. Não temos que construir todo o carro, podemos apostar em peças.
A própria LPM define isso, 33% de incorporação nacional. Embora não esteja a ser posta em prática.
Tivemos uma missão à Holanda, que está a construir com a Roménia o navio D. João II. Temos falado com a Marinha, sobre como é que vamos colocar sistemas no D. João II e qual é a posição de Portugal, das empresas portuguesas, nesse novo desenvolvimento?
A carcaça do navio, hoje em dia, vale 20% ou 10% do navio. O que vale em qualquer sistema, hoje, é tecnologia, é inteligência artificial, é o quântico. Todos estes novos desenvolvimentos valem muito mais.
Uma aeronave, no passado, tinha milhares de linhas de código. Um F-35 tem biliões de linhas de código.
Um piloto pode ter muito mais tecnologia numa aeronave, mas se a tecnologia estiver sempre a fazer bi, bi, bi, bi, a primeira coisa que eu vou fazer é desligar tudo. A minha experiência como engenheiro aeronáutico e aeroespacial é que muita tecnologia faz com que o piloto tenha menos consciência do que é que está a acontecer, porque o cérebro está ocupado com outras coisas.
E a Europa é autossuficiente em termos de matérias-primas nesta área da defesa?
Hoje em dia ouvimos falar das terras raras todos os dias, não é?
A questão é o volume de investimento que estamos a fazer e que é menor do que os Estados Unidos, do que a China estão a fazer. Nas tecnologias em que formos líderes, é muito importante que a gente comece a investir mais.
Outro problema que às vezes temos na Europa é que cria muita regulação, o que é ótimo, a regulação é importante, mas não pode ser um impedimento da evolução tecnológica.
Temos que pensar qual o papel dos reguladores e como é que os envolvemos no desenvolvimento tecnológico.
A UE é o primeiro bloco económico que tem regulação concreta em inteligência artificial, ao contrário da China que não a quer e dos Estados Unidos que também têm muitas dúvidas.
Não podemos ter o regulador de um lado, numa sala, e depois os engenheiros e os cientistas na outra sala, sem falarem entre eles.
Um dos nossos pilares na AED é a regulação. Porquê? Porque tudo o que voa tem que ser certificado. Não podem recusar a certificação por ser complexo ou adiar 20 anos. Os chineses ficam em vantagem.
Isto também passa por desbloquear regulamentação ao nível de investimento direto em armamento e equipamento militar?
Sim. É uma das nossas funções na AED. As empresas que trabalham pouco em defesa, e muitas delas só em investigação e desenvolvimento, se querem realmente trabalhar na área da atividade económica de defesa, quais são as regulamentações para onde têm que olhar? Envolve o próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, como é que podemos exportar um bem de defesa?
Há diretivas europeias também, sobre como é que se pode exportar um produto de defesa?
Há muito formalismo?
Há muito formalismo. Muitas vezes temos queixas dos nossos associados, porque é um processo demorado e é algo que temos falado com o Ministério da Defesa e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, como é que podemos agilizar o processo? Novamente, o formalismo pode levar a perda de competitividade.
"Todas as aeronaves produzidas no mundo hoje têm algo produzido em Portugal, seja estrutura, seja sistemas, seja um parafuso que segura o motor à estrutura da aeronave. É incrível.
Se o José Neves quisesse montar uma empresa na área da defesa, exclusivamente, uma coisa simples. Consegue um empréstimo junto de um banco privado nacional?
É complicado. Um estudo sobre a perceção europeia sobre a defesa, em janeiro de 2020, antes da guerra na Ucrânia, revelou que as pessoas não querem trabalhar em defesa, tudo o que é defesa é mau para a sociedade. Inclusive na banca, investir em defesa gerava anticorpos. Ainda hoje, se disser que é um bom negócio para a defesa, é complicado do ponto de vista financeiro. Não português, europeu.
Está neste momento a ser trabalhado, exatamente, como é que se pode investir em defesa, usando o banco europeu, o European Investment Bank. É um desafio novo. Se eu colocasse a palavra defesa numa proposta para a Comissão Europeia, no passado, era eliminado, simplesmente.
Tudo é muito disruptivo.
O que quer dizer que o investimento é basicamente público, neste momento em Portugal?
Público e dos privados, se olharmos para o PRR, 50% do investimento é privado.
Faço-lhe a pergunta de outra forma. Mesmo as empresas, as poucas que produzem, ou que têm iniciativas para a área militar, é produção subsidiada?
Não. Depende do que é que entende por subsidiada. Temos algum cofinanciamento na área do Fundo Europeu de Defesa, mas as empresas portuguesas nenhuma é 100% financiada. Sempre que há um projeto novo, as empresas têm que criar um plano de negócios interno, dizer onde é que, mais à frente, podem vender.
A questão aqui da dupla utilização é muito importante.
Aliás, a própria internet começou a ser desenvolvida pela defesa e hoje em dia é muito mais tudo o resto, menos defesa. Portanto, a defesa tem sido, historicamente, um catalisador tecnológico, depois vai para outras áreas.
É tudo lento nesta área? Começa no licenciamento para as atividades na defesa, passa pela contratação. Ou seja, todo o processo é muito difícil?
Eu não sei se a palavra é lento. O Ministério da Defesa é muito solícito quando as empresas pedem para se certificarem na área de defesa. O próprio Gabinete Nacional de Segurança é hoje também rápido em credenciar as pessoas, para trabalharem na área de defesa, para olharem para documentação secreta ou muito secreta.
O que é que muitas vezes é lento? É o processo de contratação, porque temos de criar um caderno de encargos, depois temos de lançar um concurso público, depois o fulano que perde coloca tudo em tribunal, como é que desenvolvemos agora o processo novamente. E o desafio é conseguir que tudo isto seja mais ágil.
E volto a dizer, nas novas tecnologias não podemos pensar a 5 anos, sob pena de perdermos competitividade na indústria nacional. E estamos todos muito conscientes disso.
Donald Trump criticou recentemente as contribuiçõe(...)
E falta transparência nesta área? Esta semana a Presidente do Tribunal de Contas, em entrevista à Renascença e ao Público, aludia ao segredo de Estado nesta área para explicar alguma falta de transparência. Ela existe?
No caso das contratações que trabalhamos na AED, não creio que exista. Existe muita coisa a fazer. Um ponto que eu aqui não mencionei, por exemplo, é que como a contratação pública é lenta, as Forças Armadas têm tendência a ir para entidades Nato para fazerem contratação. Há uma que se chama NSPA.
Um dos meus principais objetivos é minimizar o investimento NSPA. E porquê?
Os contratos ficam lá fora?
Mais do que isso. A NSPA, muitas vezes, olha para o preço mais baixo. E eu pergunto, o que é o preço mais baixo?
Se nós comprarmos uma caneta fora de Portugal, vamos gastar dinheiro nessa caneta. Mas se produzimos a caneta em Portugal, o valor da caneta, em vez de ser 10, pode ser 12. Mas se criamos postos de trabalho para produzir a caneta evoluída tecnologicamente e esses postos de trabalho depois possam dinamizar a economia, pagam impostos em Portugal e ainda podemos exportar essa caneta tecnologicamente evoluída, qual o valor económico disso?
E qual é a percentagem de capital estrangeiro envolvido nesta indústria em Portugal?
Nós temos empresas de DNA puramente português, a Critical Software, por exemplo, e temos empresas estrangeiras que investem em Portugal e que são bem recebidas. E temos excelentes casos, comos o Grupo Tagos, que veio para Portugal através de um bom projeto de offsets na década de 90, creio eu, e que hoje em dia tem em Portugal um centro na área marítima, tem manutenção de navios em Portugal, e tem um centro que exporta para todo o mundo, o Centro de Controle do Tráfico Aéreo. Portanto, excelente exemplo de investimento estrangeiro em Portugal.
Temos outras empresas que estão a vir para Portugal porque vêm no país uma elevada capacidade de mão de obra altamente qualificada. Olho para Portugal não só pelos salários mais baixos, olho para Portugal como um conjunto de fatores: proximidade, cultura, conhecimento, qualificação, a formação dos Centros de Investigação e Desenvolvimento, mas também dos Centros de Formação.
Mas o peso deste capital estrangeiro é importante?
É importante e tem sido dinamizador. Ou seja, nós temos empresas que investem em Portugal no setor espacial, por exemplo, a Embraer tem uma cota hoje em dia significativa nas Ogma.
O grande desafio muitas vezes é atrair um novo ator estrangeiro e que envolvam a cadeia de fornecimento portuguesa.
Todas as aeronaves produzidas no mundo hoje, todas, Boeing, Embraer e Airbus, têm algo produzido em Portugal, seja estrutura, seja sistemas, seja um parafuso que segura o motor à estrutura da aeronave. É incrível, as pessoas não sabem.
Antes de terminarmos, queria só perceber como é que funciona este cluster da AED. Está localizado no mesmo sítio, as empresas estão espalhadas pelo país, que vantagens garante?
Fomos criados em 2016 e a AED surge porque havia três entidades diferentes, segregadas: para a aeronáutica, para o espaço e para a defesa. Mas, na realidade, grande parte das empresas estavam nas três associações. As pessoas iam às mesmas reuniões, que eram separadas.
Tivemos a brilhante ideia, que é pena não ter vindo mais cedo, de juntar os três. Ganhamos uma voz muito mais forte, em vez de sermos mil postos de trabalho, somos 20 mil postos de trabalho, 1.5% do PIB, é quase uma Autoeuropa.
Tínhamos aqui uma missão, colocar as empresas a trabalhar entre si. Os projetos de aeronáutica, espaço ou defesa são projetos de grandes dimensões, de milhões de euros. Temos, tipicamente, um tecido industrial de pequenas e médias empresas, que não conseguiam ir a jogo.
Criamos um plano estratégico a longo prazo, com quatro pilares: regulamentação, pessoas e competências (uma pessoa que trabalha no chão de fábrica pode ganhar ainda mais do que o engenheiro porque é altamente especializado neste setor), inovação e criação de valor e, por último, mercador e oportunidades.
Uma PME não consegue ir a um certame internacional. Hoje temos um grande stand português em que vamos 20, 30 empresas portuguesas. As pessoas quando passam no stand português vêem aeronaves, vêem drones, vêem algo. Há 10 anos atrás viam um powerpoint, hoje vêm produção nacional. E isso abre os olhos.