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DÚVIDAS PÚBLICAS

Fardas do Exército português são compradas no estrangeiro, lamenta setor têxtil

08 mar, 2025 - 08:00 • Sandra Afonso , Arsénio Reis

A indústria têxtil quer que os milhões que vão ser gastos em Defesa também cheguem ao setor e que Portugal deixe de comprar fardas fora da UE. Em entrevista à Renascença, o presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal avisa que as vendas das grandes plataformas chinesas de baixo custo para a Europa são cinco vezes maiores do que as estimativas. Mário Jorge Machado alerta que, dentro de um a dois anos, o preço da roupa em Portugal vai incluir o custo da reciclagem e pode aumentar até 30%.

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Preço da roupa pode aumentar até 30% devido ao custo da reciclagem
Preço da roupa pode aumentar até 30% devido ao custo da reciclagem

Com a União Europeia empenhada em reforçar a despesa em Defesa, onde se inclui Portugal, a indústria têxtil reclama que olhem mais para a produção nacional e que o mais barato deixe de ser o principal critério dos contratos públicos.

Em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença, o presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) lamenta que as fardas do Exército português sejam compradas no estrangeiro. Segundo Mário Jorge Machado, os contratos nem sequer ficam na Europa, são entregues a países terceiros, porque o critério seguido é o preço mais baixo.

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Ao mesmo tempo, Bruxelas tem alertado para o aumento das compras dos consumidores europeus fora do espaço comunitário, através da internet. Em causa estão as chamadas encomendas de baixo valor, até 150 euros, que no último ano terão atingido 4,6 mil milhões de euros. Mais de 90% vieram da China.

Mário Jorge Machado diz que estas estimativas são feitas por baixo. Há números que apontam para cinco vezes mais, 40 aviões por dia com encomendas. Não há dados oficiais que indiquem o impacto destas vendas chinesas na indústria têxtil. Em Portugal está a decorrer um estudo, uma parceria entre alguma imprensa e a indústria, que deverá produzir resultados dentro de algumas semanas.

A indústria nacional conta ainda ter, em duas semanas, conclusões das análises que estão a ser feitas ao vestuário vendido pelas grandes plataformas chinesas, como a Shein e a Temu. Um dos objetivos é verificar se cumprem as regras de segurança, que proíbem o uso de vários produtos químicos nos têxteis europeus.

Em causa está ainda uma potencial evasão fiscal em larga escala, porque os produtos abaixo de 20 euros não pagam IVA. No entanto, estas encomendas chegam sem fatura que comprove os valores da compra.

Nesta entrevista ao programa Dúvidas Públicas, o presidente da ATP admite, ainda, que as exportações da indústria têxtil nacional estão a cair, mas há países com piores resultados. Por isso, conclui, que o setor ganhou quota de mercado.

Hoje em dia, a indústria têxtil nacional conta com cerca de seis mil empresas e 130 mil trabalhadores. Mário Jorge Machado rejeita que se mantenha uma indústria de baixos salários: pagam dentro da média, garante. A carga fiscal também não permite pagar melhor, sublinha.

Vamos pagar pela reciclagem da roupa. Preço pode aumentar até 30%

Há países onde o preço final das peças de vestuário já inclui o custo da reciclagem, como em França. Mário Jorge Machado diz à Renascença que em Portugal este custo deverá passar a ser cobrado a partir de 2026 ou 2027.

Em média, dependendo de fatores como o tipo de tecido ou as cores aplicadas, o tratamento e reciclagem de tecidos pode agravar o preço até 30%.

O presidente da ATP avisa ainda que Portugal já está em incumprimento, no âmbito das metas de reutilização e reciclagem para o têxtil até 2028. Em janeiro, devia ter entrado em funcionamento um sistema de recolha e triagem, mas ainda não está pronto.

Neste momento, menos de 1% das fibras que usamos e vestimos, volta a dar uma peça de vestuário. Cerca de 30% ainda é aproveitada, para fins menos nobres, mas a grande maioria é incinerada ou acaba em aterros. Um dos desafios é tornar as fibras recicladas mais competitivas, porque atualmente utilizar fios virgens é mais barato e tem melhor qualidade.

Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal e o primeiro português a liderar a Euratex – Confederação da Indústria Têxtil e Vestuário Europeia, é o entrevistado desta semana do programa Dúvidas Públicas. Um programa transmitido aos sábados, a partir do meio-dia, e sempre disponível em podcast, no YouTube e na app da Renascença.


Segundo dados do INE, em 2024, o setor têxtil exportou quase 5,6 mil milhões de euros em vestuário e têxtil-lar. Este valor tem vindo a cair. Face ao ano anterior, a descida é de 3,1%. Quais são as principais ameaças à indústria têxtil?

O setor têxtil em Portugal cobre muitas áreas. Está ligado à moda, mas também ao têxtil-lar, como referiu, tem muitas áreas técnicas (vestuário militar, para a saúde), também há a parte do automóvel. Para além desta abrangência, é um setor que está muito localizado na zona norte do Porto.

Tem cerca de seis mil empresas e 130 mil trabalhadores, vive sobretudo das exportações, os 5,6 mil milhões que referiu, num volume de negócios total de perto de 8 mil milhões. O mercado português tem alguma importância, mas está longe de ser o principal mercado deste setor, que está muito exposto à concorrência internacional.

Por exemplo, a guerra na Ucrânia influenciou diretamente aquilo que é o volume de exportações deste setor?

Claramente. E, às vezes, esquecemos que estamos numa economia de guerra. A Europa tem uma guerra dentro da Europa e isso tem vários reflexos. Eu podia apresentar estes resultados de uma forma, diria, muito positiva. Porque as importações da União Europeia, em termos de têxtil e vestuário, no ano de 2023 caíram 17% e as exportações portuguesas para a União Europeia caíram 5%. Ou seja, nós ganhamos muita quota de mercado. O mesmo está a acontecer com o ano de 2024. Nós caímos perto de 4%, mas as importações da União Europeia caíram perto de 8%.

Estão a diminuir as nossas exportações, mas estamos a ganhar quota de mercado, porque os outros países, fora da União Europeia, que concorrem com Portugal dentro do fornecimento destes diferentes países, têm vindo a perder mais quota de mercado. O que mostra que nós estamos a fazer bem. Estamos todos a perder, mas Portugal perde menos.

Por outro lado, há cada vez mais consumidores europeus a comprar pela internet. Segundo dados da Comissão Europeia, no último ano gastaram 4,6 mil milhões em compras de baixo valor, até 150 euros, fora da Europa. Mais de 90% veio da China. Tem alguma estimativa do impacto desta concorrência chinesa na produção nacional?

Esses números, provavelmente, são muito superiores àquilo que são as estimativas. Porquê? Porque a maior parte desses valores são estimativas. Grande parte dessas mercadorias estão a entrar na União Europeia debaixo da regra que nós chamamos de mínimos. Mercadorias inferiores a 150 euros não têm de fazer declaração alfandegária. Isso abre oportunidade para que as quantidades que estejam a entrar e o controlo desse tipo de mercadoria seja reduzido, para não dizer inexistente.

"Aterram na Europa cerca de 40 aviões por dia com mercadoria de plataformas chinesas"

Estes 4,6 mil milhões são uma estimativa por defeito?

Eu já vi valores muito superiores a esses. Cerca de cinco vezes superior a isso. Estamos aqui a falar de situações que, dentro da União Europeia, podem ser gigantescas. Na Europa, aliás como nos Estados Unidos e posso dizer também no Brasil, foi criado um mecanismo para lidar com pequenas importações de pequenas coisas, pequenos valores, que não teria que cumprir o mesmo tipo de regras, só que houve grandes organizações, como essas plataformas, que perceberam que aquilo que seria para simplificar a vida de algumas pequenas organizações.

Serviu e está a servir de porta de entrada para grandes organizações colocarem grandes quantidades de volume, muitos mil milhões de euros, dentro da União Europeia e também nos Estados Unidos, sem o respetivo acompanhamento e sem pagar os respetivos impostos que todas as outras empresas têm de pagar. Essas organizações estão a aproveitar-se desse buraco na legislação para tirarem uma vantagem competitiva muito importante.

Há valores sobre o impacto destas vendas da China para Portugal, na indústria nacional?

Não há números com base em estudos, com rigor científico. Aquilo que eu posso dizer é que quer na Associação Têxtil Portuguesa, na ATP, quer nas outras associações congéneres pela Europa, temos muitos colegas que dizem que há uma diminuição importante do seu volume de negócios.

Esta ligação, seguramente que existe, quantificá-la neste momento é um exercício difícil de fazer. Algumas semanas atrás um jornal americano fez algum trabalho de investigação e conseguiu associar uma série de encerramentos de empresas nos Estados Unidos a este tipo de plataformas.

Eu sei que em Portugal estamos a procurar fazer um trabalho idêntico, nós ATP juntamente com alguns jornais, para procurarmos perceber de uma forma mais detalhada o impacto que tem esta situação dentro da estrutura produtiva têxtil. Espero dentro de algumas semanas já ter números para podermos falar com mais algumas certezas.

Estamos a falar sempre de produtos até 150 euros, que beneficiam da tal regra dos mínimos, ou seja, de alguma isenção de taxas e impostos?

Total isenção. Na Europa, o último valor que tive oportunidade de ver é que estavam a aterrar cerca de 40 aviões por dia com este tipo de mercadorias, só de avião. Já dá para ter uma pequena ideia da dimensão que este tipo de pequenas quantidades está a gerar. Estamos aqui perante um novo modelo de negócio, depois tudo isto vai ter um impacto numa série de outros aspetos, nomeadamente a circularidade, a segurança...

Bruxelas está preocupada, obviamente, com a qualidade dos produtos importados por plataformas, como a Shine e a Temu, as grandes plataformas de venda de vestuário. A indústria nacional decidiu tomar medidas. Quer explicar que medidas são essas?

Estamos a atuar junto do Governo português e da Comissão Europeia, porque esta concorrência está a retirar vantagens do ponto de vista fiscal relativamente às empresas europeias ou à indústria europeia, mas também sobre as questões da segurança dos próprios consumidores, porque um consumidor quando compra um artigo tem como expectativa que aquele produto cumpra as regras sobre as quais um produto poder ser vendido na União Europeia e, neste momento, nós não temos esse tipo de segurança e esse tipo de garantia.

A reunião que eu tive com os membros da Comissão Europeia foi que estavam a trabalhar no assunto, que estavam a fazer perguntas a essas plataformas para perceberem que mecanismos tinham mas, muito sinceramente, isto é uma situação que já se vinha a passar há alguns anos e ainda estamos na fase das perguntas.

Para além da distorção da concorrência, temos aqui a questão da segurança, porque a nossa pele é o maior órgão que nós temos no nosso corpo e através da nossa pele podemos absorver muitos tipos de materiais.

Mas há riscos para a saúde pública?

O que posso dizer é que na Europa existe uma legislação, o REACH , que tem a ver com a utilização de produtos químicos no fabrico de artigos têxteis e não só, em que foram proibidos muitos produtos. Porquê? Porque se fizeram avaliações e verificou-se que eram cancerígenos e tinham outro tipo de implicações, nomeadamente nas utilizações dos formaldeídos na parte têxtil.

Na produção na Europa esses produtos estão proibidos. Sobre o que vem fora da Europa não existe neste momento este tipo de garantia, especialmente se quem os está a vender não se sentir obrigado a ter de cumprir esse tipo de cuidados, de que tipo de produto está a utilizar, porque poderá sentir que não existe controle. Sai do fabricante e vai para a casa do consumidor, não há nenhum tipo de controle, nenhum tipo de avaliação e isso pode trazer riscos.

Nós fizemos algumas compras de alguns produtos e junto do centro tecnológico estão a ser testados, mas são uma amostra, nós compramos meia dúzia de produtos e chegam milhões.

Já tem algum tipo de conclusão dessas análises que foram feitas?

Não, ainda não temos resultados.

Mas os resultados não serão muito diferentes daqueles que obteve a Euratex, a Federação Europeia do Setor, que fez um exercício semelhante?

Exatamente, a Euratex fez um exercício semelhante e numa parte dos produtos foram encontradas quantidades de substâncias que não poderiam ser utilizadas se tivessem sido produzidos dentro da União Europeia.

Para quando é que podemos esperar conclusões dessas análises que mandaram fazer?

Dentro de duas semanas, estarão prontas.

E isso pode levar a que tipo de medidas por parte de Portugal, independentemente das que forem tomadas pela União Europeia?

Situações que têm a ver com questões de fronteira estão debaixo do domínio da União Europeia.

"Mais fiscalização às importações chinesas? Sim, o caminho tem de passar por aí"

E em relação à invasão fiscal, muitas destas compras acabam por surgir sem pagamento do respetivo IVA ou taxas aduaneiras. O que é que pode ser feito?

A regra do IVA é ligeiramente diferente. O IVA só está isento se a mercadoria for inferior a 20 euros. Nas compras que fizemos não veio nenhuma fatura a acompanhar as mercadorias. O consumidor não tem nenhum documento que mostre o valor a que está a ser faturado e o IVA que foi pago. Estamos sempre a presumir que depois essas empresas vão fazer a declaração do IVA.

Tenho um amigo que comprou uma mercadoria, que por acaso era da área eletrónica. Perguntaram-lhe depois se o valor da mercadoria que comprou seria por 7€. Ele na altura disse que sim, sem pensar no assunto, mas na realidade aquilo tinha custado 110€. Agora é fácil perceber, não é? Porque os 7€ não pagam IVA, 110 teriam de pagar IVA.

Estas situações das autodeclarações e não haver uma fatura, com o valor da mercadoria e o IVA que está a ser pago. Nós não temos controle sobre aquilo que nos está a chegar de países terceiros.

E o que é que é preciso? Mais fiscalização?

Claramente. Esta situação foi pensada, quando foi criada, para lidar com pequenas situações e transformou-se na entrada de milhões e milhões de parcelas. E isto, neste momento, de acordo com a legislação atual, é legal. Tem de se mudar a legislação.

Donald Trump, por exemplo, já tentou congelar as chamadas compras mais baixas, que no caso dos Estados Unidos estão abaixo dos 800 dólares. Agora agravou tarifas sobre as importações chinesas, em 10%. É este o caminho? Estas medidas serão eficazes, na sua opinião?

Sim, o caminho tem de passar por aí. Nós temos de perceber que quando alguém está a abusar do sistema, a abusar daquilo que era a intenção inicial, tem de ser encontrado aqui um limite. Isto foi pensado para as pequenas organizações, não foi pensado para gigantes que faturam dezenas de mil milhões. Estamos a distorcer o funcionamento do mercado de uma forma muito grave.

Já agora, que estamos a falar do Presidente norte-americano, até que ponto é que a aplicação de tarifas por parte dos Estados Unidos pode afetar a indústria nacional?

As guerras de tarifas, infelizmente, nunca são uma boa forma de resolver algum tipo de desequilíbrio. Nos anos 30, após o crash bolsista, os Estados Unidos subiram as tarifas em cerca de 20 mil produtos e uma série de empresas na Alemanha e no Japão acabaram por fechar, o que provocou muito desemprego. Este desemprego deu origem a um discurso populista pelo partido nazi e pelo Hitler e um discurso pró-militar no Japão.

Quando existe uma situação económica em que as pessoas estão insatisfeitas, estão mais dispostas a acreditar em discursos mais populistas que lhes prometem soluções fáceis para problemas mais complicados.

Acha que estamos a regressar a uma fase desse tipo?

Espero que não, mas há algumas aprendizagens que temos de fazer. É algo que a todos nós nos deve preocupar. Foi estudado o resultado da guerra de tarifas de Trump e todos os estudos mostraram que foram ineficazes, para além de terem provocado algum tipo de aumento de inflação e de diminuição das exportações, para um lado e para o outro.

Voltando à indústria têxtil, no caso de Portugal o impacto será sempre limitado? Pergunto isto porque, por exemplo, em 2024, os últimos dados conhecidos, as exportações de Portugal para os Estados Unidos não chegaram a 8%.

Sim, estamos a falar de cerca de 500 milhões de euros. É um valor ainda com significado, quer na parte dos têxteis pro-lar, quer no caso do vestuário. A minha empresa é uma das que envia produtos para os Estados Unidos.

O mercado americano nas exportações portuguesas tem uma dimensão pequena, para aquilo que poderá ter. Nós deveríamos trabalhar mais e comunicar mais dentro do mercado americano as vantagens de produzir dentro de Portugal, dos produtos portugueses. Sempre que falo com marcas americanas que estão a comprar em Portugal, depois de conhecerem a cadeia produtiva e a capacidade do setor, a capacidade de inovação, de design, a qualidade dos produtos, todos dizem que já deviam estar a trabalhar com Portugal há mais tempo.

Há aqui ainda um trabalho grande que temos de fazer para crescer dentro do mercado americano, que é um mercado grande, com poder de compra e muito interessante. É verdade que uma guerra comercial vai complicar muito este tipo de aproximação.

"Em Portugal nós falamos muito dos salários e falamos menos dos impostos que estão associados aos salários."

A nossa indústria têxtil vive ainda de baixos salários, como se falava há muitos anos?

O preço dos produtos é sempre uma componente muito importante e as empresas, para sobreviverem, têm de ser concorrenciais no custo dos seus processos produtivos. Um dos fatores são os salários. Em Portugal nós falamos muito dos salários e falamos menos dos impostos que estão associados aos salários.

Uma empresa que paga um salário de 2 mil euros líquidos por mês a um trabalhador, tem encargos mensais perto dos 3 mil e 600 euros. Se esse mesmo trabalhador estivesse na Holanda, para pagar os mesmos 2 mil euros, a empresa teria um encargo de 3 mil, 3 mil e poucos euros. Ou seja, o esforço, o custo para a empresa em Portugal, para um salário de 2 mil euros, é muito superior ao custo que uma empresa tem na Holanda.

Dito de outra forma, é mais barato para as empresas pagarem salários altos numa grande parte dos países europeus do que em Portugal.

O que eu estava a tentar perceber era se o salário médio na indústria têxtil continua a ser bastante mais baixo que o salário médio a nível nacional?

A Pordata tem essa comparação feita de uma forma interessante, a nível da indústria, está dentro da média do setor. Se me perguntar, olha, e os salários são salários elevados? Não, claramente que não são. Há margem para eles continuarem a crescer? Há, desde que a produtividade cresça.

A pergunta não é se as pessoas ganham pouco, é um pouco ao contrário. O que é que as organizações têm de fazer para conseguirem ter produtos de maior valor, serem feitos com maior produtividade, para conseguir pagar maiores salários?

Isto de dizer que os empresários é que querem pagar baixos salários, é uma discussão um bocado estéril, eu não conheço empresários em que a preocupação deles seja como é que eu vou pagar salários baixos. Uma empresa que não consegue ser lucrativa, porque tem muitas amarras, isso reflete-se também nos salários que são recebidos.

E com processos cada vez mais automatizados e robotizados, deverão continuar a diminuir os postos de trabalho nesta indústria?

Estamos a entrar num tema muito interessante. A utilização agora das novas ferramentas de inteligência artificial e dos novos mecanismos, como a robotização, sem dúvida que vai dar oportunidade para haver um crescimento dos salários. Nós já vimos isto a acontecer no passado, as pessoas tiveram de sair da sua zona de conforto e tiveram de adquirir novas competências, novas capacidades, e é exatamente disto que nós estamos a falar.

Hoje, quem não estiver a trabalhar e não estiver a procurar soluções utilizando estas novas ferramentas, essas empresas e essas pessoas vão ter dificuldade em adaptar-se. Estamos na mesma situação de quem trabalhava num tear manual e não quis adquirir competências para depois trabalhar num tear automático, depois teve mais dificuldade em arranjar um trabalho com mais valor acrescentado, para ter um salário melhor.

E estamos a falar de melhores salários, melhores empregos, mas menos empregos?

Provavelmente, estamos a entrar em algo que todos nós pretendemos, que é cada vez trabalharmos menos horas e termos mais tempo disponível. Esta pode ser uma grande oportunidade, porque a questão do salário tem a ver com o valor que a organização para a qual nós trabalhamos é capaz de produzir. Com menos horas, mas com mecanismos que me permitem ser mais produtivos, eu posso trabalhar mais.

Posso produzir mais em menos horas?

Exatamente. Estas novas ferramentas podem ser aqui uma oportunidade muito interessante, também para podermos produzir mais trabalhando menos horas. Isto é mais complexo do que pode parecer, a Europa não tem as fronteiras fechadas ao comércio internacional, temos de encontrar soluções para sermos competitivos.

Já falou na forte aposta na inovação. Portugal e a Europa vão conseguir competir com a produção que chega, por exemplo, da China, e é inevitável falar do exemplo chinês?

Essa foi a grande razão do "Clean Deal for Industry in Europe". A verdade é que a produção na Europa, ao longo destes últimos anos, tem vindo continuamente a decair. E nós também já percebemos, e na altura da covid-19 foi muito clara essa situação, que se nós não temos capacidade industrial, se vamos só comprar o mais barato, vamos perder a nossa autonomia estratégica.

A diferenciação pode ser aqui o segredo, a diferenciação pela qualidade, naturalmente?

É, mas também temos de perceber que estamos a lidar com alguns blocos. No caso da China tem acontecido muito, em muitas áreas, a instalação de sobrecapacidade, que tem permitido que depois essa capacidade em excesso seja colocada noutros mercados a preços mais baixos. O que chamamos de dumping. Não é por acaso que as bicicletas chinesas, para entrarem dentro da União Europeia, pagam uma taxa de anti-dumping da ordem dos 30%. Se não pagassem essa taxa, já não havia indústria de bicicletas na Europa.

Voltando à indústria têxtil e à inovação, pode-nos dar exemplos do que se está a fazer fora da caixa, digamos assim, em Portugal?

Sim, temos situações muito interessantes e diferentes que estão a ser feitas. Começando pela parte das fibras. Hoje, um dos grandes objetivos é conseguir a circularidade da economia. Todos estamos vestidos com fibras, ou naturais, como o algodão ou o linho, ou fibras sintéticas, como poliéster ou o nylon. O grande desafio é reciclar estas peças, quando chegam ao seu final de vida, para poderem voltar a dar novamente um produto de vestuário.

Neste momento, menos de 1% das fibras que usamos e vestimos, volta a dar uma peça de vestuário. Cerca de 30% dos quilos que descartamos, tem uma utilização em termos de produtos para isolamento ou para outras funções menos nobres, mas 70% é incinerado ou vai para aterro, e só 1% é que volta a dar fibra para vestuário. Isto é uma oportunidade gigantesca.

Como estamos a recuperar estas fibras?

Estão a ser desenvolvidas tecnologias, e em Portugal já existem empresas, em que as nossas camisas, os nossos casacos, são separados pela qualidade de tipo de fibra, se é algodão ou se é poliéster, e depois são destroçados mecanicamente e voltam novamente a dar fio. É um processo de recuperação mecânico.

Diminui substancialmente o que era enviado para os aterros, por exemplo?

Exatamente, essa é uma das razões. Mas também já existe uma recuperação química, que é, simplificando, colocar toda a roupa numa espécie de caldeirão, com reagentes, que fazem com que a celulose se dissolva nesse caldeirão, e depois volta a dar novamente uma fibra celulósica.

A indústria nacional está confortável com as metas de reutilização e reciclagem impostas por Bruxelas para o têxtil até 2028? Esses limites são acomodáveis e estamos preparados para eles?

De acordo com a legislação europeia e a diretiva europeia, em janeiro, deveria ter entrado em funcionamento um sistema de recolha e de triagem, que ainda não está devidamente montado. Essa diretiva não está a ser cumprida por Portugal, nós não temos um sistema organizado e uma entidade licenciada para fazer esse tipo de recolha e de triagem.

Mas há contentores espalhados pelas ruas, para recolha de artigos, aumentaram as lojas de segunda mão...

Estamos a falar de situações parecidas, mas distintas. As lojas de segunda mão fazem parte, mas vai haver uma altura em que esse produto chega ao seu fim de vida e tem que se lhe dar um destino. Precisamos de ter tecnologia para dar destino a esses produtos.

Há aqui também uma questão de modelo económico, porque as fibras virgens têm preços muito competitivos. Um quilo de poliéster virgem custa cerca de um euro, um quilo de algodão virgem custa cerca de dois euros. Para ter poliéster que já foi usado, que já teve uma série de tratamentos e ao qual tenho de retirar botões e fechos, tenho de separar por cores, pago dois ou três euros, enquanto um quilo de poliéster virgem, puro, limpinho, pronto a ser tratado, custa um euro.

Não há aqui nenhum tipo de incentivo para se utilizar o material que é de pior qualidade. Este modelo de negócio tem de ter aqui algum tipo de cuidado para percebermos do que estamos a falar. Eu não tenho dúvida, nós todos, na Europa, quando comprarmos uma peça de vestuário, vamos ter de pagar para esse produto vir a ser reciclado, exatamente para fazer este equilíbrio com as fibras virgens.

Nós já começámos a pagar pelos sacos plásticos no supermercado, sempre que comprarmos uma peça de vestuário, vamos ter de pagar também para a reciclagem desse produto.

Essa regulamentação está a ser preparada por Bruxelas. Quando é que acha que os consumidores vão sentir esse impacto no preço final, esses custos de tratamento e resíduos de têxteis?

Está previsto começar a acontecer em 2026 ou 2027. Estamos a um, dois anos de distância dessa situação vir a acontecer. Já em 2025 não me parece muito provável, as coisas teriam de evoluir muito rapidamente, e sabemos que estas situações normalmente não são de evolução muito rápida.

Isto em Portugal, porque em França já acontece isso, as marcas que vendem em França já estão a colocar no preço do artigo que vendem o custo depois de ser reciclado. O consumidor nem sempre se apercebe, há artigos em que é visível para o consumidor, e há artigos em que não é visível para o consumidor.

Neste momento, quanto é que custa a sustentabilidade na moda? Ou, em média, quanto é que os consumidores pagam a mais pelos produtos sustentáveis?

É difícil fazer as contas. Em termos médios, eu diria que estaríamos a falar algures entre os 10% e os 30%. Mas já começa a haver situações em que produzir sustentável, nomeadamente nos processos transformativos, já não custa mais. Eu quase poderia dizer que é o que se vai passar com os automóveis elétricos, com o preço das baterias a baixar, o preço vai aproximar-se dos veículos a combustão.

Em relação ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a indústria têxtil está a aproveitar o programa para inovar e garantir a sustentabilidade no setor? Qual é o valor investido?

Há vários programas dentro do PRR, que estão ligados a diferentes empresas da área têxtil, como a circularidade da água ou a produção do linho na Europa. O linho é uma fibra natural que é produzida sobretudo na zona da Normandia, em França, apesar de Portugal também ter características para essa situação. Mas depois, mais de 90% do linho tem de ir à China, para ser transformado em fio, e volta para a Europa, para ser transformado em tecido.

Nós na Europa perdemos a capacidade de fazer produtos, fazer o fio a partir do linho. Perdemos esta base industrial toda para a China. Voltamos à conversa da sobrecapacidade. Mas neste momento, dentro do PRR, usamos algumas novas tecnologias para produzir o fio. Está a ser construída uma fábrica para produzir, fazer fio a partir do linho, na Europa.

Diz que o seu maior desafio passa por lidar com a classe política. Os governos têm apoiado esta indústria?

Os governos têm vindo a perceber ao longo destes últimos anos que a indústria é importantíssima para a soberania estratégica da Europa. Estamos a falar nas situações do militar, na situação da saúde. Quando estou a falar de militar, não estou a só falar nas munições.

Há muitos exércitos europeus, nomeadamente o português, que compram os seus fardamentos fora da União Europeia. Se porventura temos algum problema com esses países, podemos cair um pouco naquela situação do Raul Solnado, de dizermos que só podemos começar a guerra quando o nosso inimigo nos mandar o equipamento.

Logo no início referiu que a indústria têxtil em Portugal também produz vestuário militar. Produz já com algum tipo de escala, ou produz só para consumo interno?

Mais uma vez, voltamos à questão política. Há aqui uma série de limitações, nomeadamente na contratação pública. Aquilo que está na contratação pública é comprar quem fornece mais barato.

Uma série de países, no que diz respeito ao militar, já conseguiram introduzir cláusulas na contratação pública para ter de ser comprado no seu país. Nomeadamente a Alemanha, agora invocou uma cláusula de proximidade de guerra e então tudo que é militar tem de ser feito na Alemanha.

Nós defendemos que a contratação pública tem de ter uma componente muito significativa de produção europeia, para quê? Para garantir que mantemos uma indústria na Europa.

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