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Dúvidas públicas

Mira Amaral: "Estamos a pagar três vezes mais pela energia eólica"

29 mar, 2025 - 12:00 • Sandra Afonso , Arsénio Reis

Em entrevista à Renascença, Mira Amaral deixa críticas ao Chega e ao BE, responsabiliza os líderes do PSD e do PS pela queda do governo e diz que o Presidente da República estava obrigado a anunciar novas eleições. Luís Montenegro cometeu um “lapso” e o Ministério Público afasta as elites da política, diz o antigo ministro de Cavaco Silva. Mira Amaral avisa ainda que a queda do governo compromete a privatização da TAP e a execução do PRR. Reconhece que do PS também chegam boas medidas, mas não na área da energia, que continua cara devido à política socialista para as renováveis.

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Dúvidas Públicas com Mira Amaral
Dúvidas Públicas com Mira Amaral

O social-democrata e antigo ministro Luís Mira Amaral confessa que tem hoje “barreiras higiénicas de proteção” em relação ao PSD. O antigo ministro de Cavaco Silva não esquece a promessa não cumprida de Durão Barroso e Manuela Ferreira Leite de que chegaria à presidência da CGD, um episódio que o fez cortar relações com ambos. Hoje, diz estar "disponível no partido q.b.", só para os amigos, e mantém a agenda livre.

Em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença, Mira Amaral sai em defesa de Luís Montenegro, que considera ter cometido “uma pequena gafe”, “um pequeno lapso” com a empresa familiar, mas que não tem “nada de ilegal” e até se compreenderia se fosse engenheiro.

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Já ao Chega não poupa nas críticas, na sequência dos últimos cartazes, em que o partido acusa Montenegro de corrupção, colocando-o ao lado de José Sócrates. Segundo Mira Amaral, André Ventura “dá um tiro nos pés” com esta ação, queima possíveis alianças futuras com o PSD, eventualmente liderado de novo por Passos Coelho.

Mira Amaral lamenta ainda que PS e PSD não se tenham entendido para evitar novas eleições e avisa que o mais provável é que as próximas legislativas não alterem o atual quadro e venta até a ser mais difícil formar governo, porque os líderes dos maiores partidos estão ainda mais distantes.

Sobre a atuação do Presidente da República, Mira Amaral defende que, em linha com anteriores decisões, Marcelo estava de certa forma obrigado a anunciar novas eleições. No entanto, devem ser retiradas lições: para o antigo ministro, é preciso procurar soluções no quadro parlamentar antes de derrubar os governos, à semelhança do que acontece no Reino Unido.

Sobre o Bloco de Esquerda, Mira Amaral vê o partido de Mortágua “aflito”, com medo de perder votos para o PS, facto que motivou a recuperação de nomes do passado.

Para Mira Amaral, seria preciso "sangue novo" na política, mas as elites já não estão interessadas. Hoje ,chegam a ministros os “jotinhas”, que fazem carreira partidária, com menos formação e sem experiência profissional. O Ministério Público também é responsável pela fuga dos melhores da política, diz o antigo ministro.

No plano económico, Mira Amaral, que é engenheiro e economista, avisa que a queda do governo terá implicações, travando umas medidas e dificultando a execução de outras. Um dos exemplos é a privatização da TAP, que foi mais uma vez adiada. Mira Amaral defende que pode perder-se a oportunidade para este negócio.

Já com o PRR, não se mostra tão preocupado. Admite que as novas eleições vão dificultar a execução, porque o governo em gestão nunca tem a mesma capacidade de decisão, mas diz que a execução já estava comprometida desde o início, porque foi mal planeado pelo governo de António Costa.

Mira Amaral vai ainda mais atrás no tempo e responsabiliza outro governo socialista, o de José Sócrates, pelas faturas elevadas da energia. O antigo ministro explica que pagamos três vezes mais pela energia eólica porque foi contratada quando a tecnologia ainda estava em desenvolvimento. Só depois de 2032, quando terminarem os atuais contratos, se podem esperar por alívios nos preços.

Para o antigo ministro também é importante proteger o "cluster" automóvel, que está a adaptar-se no país aos veículos elétricos. Já montamos estes carros e produzimos baterias... Agora, é preciso garantir a exploração de lítio em Portugal.

Mira Amaral apoia que se revisite o relatório Porter, como defende o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, e diz que isso não invalida que se continuem a executar medidas, como receiam os empresários.

Na Defesa, Amaral defende que a Europa tem de se habituar a produzir com uma dupla finalidade - civil e militar - como já fazem há muito tempo os americanos. Tem ainda de produzir de forma coordenada.

Mira Amaral, engenheiro, economista, antigo ministro do Trabalho e antigo Ministro da Indústria e Energia de Cavaco Silva, ex-administrador BPI, ex-vice-presidente da CGD, ex presidente do BIC - é o entrevistado, este sábado, do programa da Renascença Dúvidas Públicas, que pode ouvir em antena entre as 12h00 e as 13h00 ou em qualquer altura em podcast, no Youtube ou na App.


"Podia ter sido ministro das Finanças, podia ter sido presidente da Caixa Geral de Depósitos, da EDP, da Portugal Telecom, da Galp, não tinha menos competência que os que lá têm andado. O bloco central político-financeiro, que manda no país, nunca me quis dar essas oportunidades." A frase é sua. Como é hoje a sua relação com o PSD?

É uma relação com alguma barreira higiénica de proteção. Tenho grandes amigos no PSD, posso dizer que neste Governo há seis ministros que são meus amigos pessoais. Agora, desde a cena que o PSD me fez na Caixa Geral de Depósitos, em que me atraiçoou…

Convidaram-me para ir para lá para os ajudar, que estavam aflitos com a gestão da Caixa, eu saí do BPI, onde estava muito bem como administrador, tinha a minha reforma garantida. Fui para a CGD, prometeram-me que entraria como vice-presidente, no fim do mandato do senhor professor Souza passaria a presidente. Depois, o par Durão Barroso, Manuela Ferreira Leite não cumpriram. Aldrabaram-me. Cortei relações com eles, são duas pessoas com quem nunca mais falei na vida.

A partir desse dia, comuniquei ao PSD que nunca mais contaria comigo para lutar pela camisola do PSD. O que não significa que, quando houver um líder do PSD, ou ministros, ou pessoas do PSD que sejam minhas amigas, eu não os possa ajudar em termos pessoais.

Isso acontece hoje?

Acontece. Por exemplo, se o ministro Pedro Reis me pedir ajuda, ou se o ministro Joaquim Sarmento, ou o ministro Fernando Alexandre, só para citar alguns de quem sou amigo, ou o ministro Castro Almeida pedir ajuda, naturalmente não deixarei de ajudar.

Curiosamente, depois desta cena da Caixa, em que eu cortei a relação institucional com o PSD, digamos assim, Luís Filipe Menezes, quando chegou a líder do PSD, tinha dito em público que eu seria o homem que ele teria como ministro das Finanças e quis-me convidar para vice-presidente da Comissão Política do PSD e para "ministro sombra" das Finanças.

Não aceitou?

Disse-lhe o que tinha dito quando me fizeram aquela cena da Caixa. Teria o meu apoio pessoal para ajudar naquilo que precisasse, mas tornar a exercer cargos no PSD, ou lutar pela camisola do PSD, não contassem comigo nunca mais, e assim me tenho mantido saudavelmente até hoje.

Devo dizer, aliás, que sofria com o PSD e o Benfica. Quando me desliguei e passei a vê-los à distância, a minha qualidade de vida aumentou muito, deixei de me aborrecer, e isso só me fez bem. Se o PSD não ganha eleições ou se porta mal no Governo, obviamente sou sensível.

Acha que era inevitável a queda do Governo? Ou seja, acha que tudo foi feito para encontrar uma solução para esta crise?

Eu acho que é lamentável que os dois partidos se entenderam para voltar a pôr no mapa novamente 300 e tal freguesias, medida com a qual discordo totalmente, mas não se entendem para manter a estabilidade política. Achei isto lamentável. E acho que há culpas de parte a parte.

Quem é que se portou pior, digamos assim?

O primeiro-ministro tinha superado as expectativas, que à partida não pareciam famosas. Estava a governar bem e há alguns ministros cuja qualidade eu não esperava que ele conseguisse convencer a ir para o Governo. Era um Governo aceitável. Tinha uma grande dificuldade, em minoria não podia fazer aquelas reformas estruturais que entendemos que são necessárias.

Quando entrou para primeiro-ministro, devia ter pegado na empresa, passá-la da esfera dele e da mulher, vendê-la a um colega ou deixá-la só nos filhos e também não ter a morada familiar na empresa.

Não tem nada de juridicamente ilegal, de coisa escandalosa. É uma pequena gafe que, se fosse um engenheiro, eu até percebia. Como advogado, percebo menos. Ele teve esse pequeno lapso.

Acho perfeitamente chocante aquele cartaz do Chega. Isto não pode valer tudo na política. O Chega se acha que, com um cartaz deste, afasta o Luís Montenegro e vem Passos Coelho e facilita e tem uma boa relação com o Passos Coelho. Obviamente, coisas destas, nenhum "laranjinha", seja ou não apoiando de Luís Montenegro, vai gostar do André Ventura. O André Ventura, com um cartaz deste, até está a dar um tiro nos pés para uma possível futura, se houvesse um líder do PSD que se entendesse com ele.

E o PS?

Face a isso, qual foi a estratégia de Pedro Nuno Santos? Não queria eleições porque sabe perfeitamente que se for a eleição e correr mal pode ter o lugar em causa no PS. Como líder da oposição, e se fosse ao contrário o PSD tentaria fazer o mesmo, a política não é para santos, decidiu não votar a moção de confiança, não deitar abaixo o Governo, mas avançar com uma comissão parlamentar de inquérito e manter Luís Montenegro em banho-maria.

E é aí que eu percebo a reação de Luís Montenegro, que não aceita depois ser derretido em banho-maria e antecipa-se com a moção de confiança.

Houve uma sugestão do meu amigo ministro Castro Almeida que eu achava justa para as duas partes. O PSD retirava a moção de confiança e Pedro Nuno Santos retirava a comissão de inquérito. Infelizmente, não se concretizou. É lamentável.

Acredita num bom resultado para o PSD?

A minha preocupação é que - Deus queira que me engane - na Madeira tivemos uma surpresa agradável, ninguém pensava que ia haver uma solução de estabilidade. Mas o mais provável, da minha perspetiva, é que as eleições não alterem nada o quadro existente. Até me parece que vai ser mais difícil formar um novo Governo, porque a situação entre os dois líderes está muito radicalizada.

Num contexto tremendo de incerteza mundial, adicionar incerteza nacional, acho isto muito mal e estou francamente aborrecido com os dois partidos.

Falta falar sobre um dos protagonistas. E a resposta dada pelo Presidente da República?

O Presidente da República foi apanhado de surpresa nesta matéria. Se citasse Marques Mendes, candidato à Presidência, diria que o Presidente da República tem que antecipar as crises. Ele não conseguiu, de facto, fazer uma magistratura de influência, no sentido de evitar eleições. Isto deve dar-nos uma lição para o futuro.

Temos de aceitar, como acontece em Inglaterra, onde se forma uma solução no Parlamento que pode mudar o primeiro-ministro sem o Governo cair necessariamente. Esta personalização do primeiro-ministro, o presidencialismo do primeiro-ministro que foi muito enfatizada pela gestão de Marcelo Rebelo de Sousa, acho que o novo Presidente da República deve aprender a lição e é isso que Marques Mendes, a meu ver, anda a dizer.

Se há um orçamento que é chumbado, não se tem logo de ir para eleições. Se há um primeiro-ministro ou um líder do Partido que por acaso acumula com o primeiro-ministro, que muda, ou quer sair o quadro Parlamentar existente, e os partidos que têm a possibilidade de formar Governo, devem indicar o novo primeiro-ministro.

António Costa, se tem apenas demitido o primeiro-ministro e não o secretário-geral do PS, tinha a legitimidade de chegar ao Presidente da República e dizer-lhe eu sou o secretário-geral deste partido, eu indico o primeiro-ministro. E isto é perfeitamente legítimo em tempos constitucionais.

Se fosse candidato à Presidência da República, e eu acho que Marques Mendes se tem tentado demarcar disso, e eu acho que o almirante Gouveia e Melo também já deu uns toques nesse sentido, é não ter um Presidente da República tão reativo à figura do primeiro-ministro. Ele deve, em tempos formais e condicionais, atender mais ao quadro parlamentar. É este o segredo de uma democracia parlamentar estável como a inglesa.

É preciso sangue novo na política? Ou será melhor ir buscar valores garantidos, como fez agora, por exemplo, o Bloco de Esquerda?

Acho que o Bloco de Esquerda está aflito, com a ideia do voto útil. Porque, num extremar de posições, o pessoal mais da esquerda pode tentar votar no Pedro Nuno Santos, que aliás, do ponto de vista ideológico, não suscita grande antipatia da extrema-esquerda. Embora, devo dizer, do contacto pessoal com ele, acho que até é mais moderado do que a imagem pública que tem.

Isto para dizer que o BE deve estar assustado e vão buscar toda a artilharia que têm, os antigos fundadores. É evidente que a argumentação de Francisco Louçã é para rir, quando diz que o caso é tão grave, com Trump nos EUA, que tem de voltar à política. Nós não riscamos nada no contexto mundial. Nem espero eu que o Bloco de Esquerda risque grande coisa na política nacional.

Agora, se me pergunta em tese, num partido, num sistema político, é sempre saudável ter gente nova. Não devemos estar agarrados aos velhinhos, como eu, que já tenho quase 80 anos.

Mas esses jovens estão interessados?

Lamento que as elites universitárias já não vão para a política. O que vejo hoje em dia são cada vez mais os "jotinhas", que começam a carreira aos 15 anos nas "jotas", não tiram curso universitário, não têm experiência profissional, a chegarem a ministro. Isto é de alto risco, até porque estamos a ver, qualquer pequena coisa que um tipo possa fazer, não seja totalmente perfeita, arrisca-se como aconteceu com Luís Montenegro, a ter este escrutínio feroz. Isto, obviamente, dissuade pessoas da elite portuguesa a virem para a política.

E há outra coisa que eu acho que é um risco tremendo vir para a política hoje, é a atuação do Ministério Público. Veja o caso do meu amigo Miguel Macedo, recentemente falecido. Foi um dos grandes ministros do Governo de Passos Coelho, foi acusado daquela maneira pelo Ministério Público, foi totalmente ilibado, no meio disto tudo destruíram-lhe a carreira, quase o património, sofreu a bom sofrer.

Eu acho que os juízes, das sentenças que têm dado, são credíveis. Eu digo mais no sistema jurídico da atuação do Ministério Público, que faz um grande show-off, acusa e depois provas palpáveis? Isto espremido o que é que vai dar?

Mantém uma relação próxima com empresários e com a banca, compreende os receios sobre o impacto das novas eleições legislativas na economia e nos negócios?

Em tese compreendo. Nós vamos acrescer à terrível incerteza geostratégica mundial, uma incerteza portuguesa que era perfeitamente evitada. Agora, há aspetos que preocupam mais do que outros.

O PRR não me preocupa nada, está em andamento, foi mal concebido desde o início no Governo António Costa, é para mim uma grande oportunidade perdida, este Governo já não conseguia remendar e recuperar as coisas. Há investimentos que, se não forem feitos, até é melhor do que gastar o dinheiro mal gasto.

Mas acha que corremos o risco de perder verbas do PRR?

Perdemos com a mudança do Governo, embora em tese o Governo em gestão possa ir gerindo, não é a mesma coisa que ter um Governo com toda a legitimidade a atuar. Já é difícil fazer grandes mudanças porque foi mal concebido desde o início e estava a ser pessimamente executado no Governo de Costa. Castro Almeida, que é muito experiente e batido em fundos, tem melhorado as coisas, mas os erros de base ele não podia mudar.

Há um dossier que me preocupa de sobremaneira, o da TAP. A TAP teve aqui uma oportunidade de ter lucros dois, três anos, este lucro já é só 50 milhões mais pequeno que os outros. Se vem uma crise económica mundial, se vem uma nova pandemia, ou se há, devido à política comercial e tarifária de Trump, se a economia mundial arrefece muito, o setor da aviação civil volta a afundar-se. E vamos ter novamente a TAP nas mãos públicas, uma TAP novamente a perder dinheiro.

O tempo aqui é muito importante?

E o timing, a oportunidade de privatizar é muito importante. Até porque nem sabemos como será o novo Governo e quais as condições de governabilidade. Temos aqui uma janela de oportunidade para tentar integrar a TAP num grande grupo.

Até porque a TAP tem um problema clássico de dificuldades económicas. Está entre dois modelos de operação: um modelo da low cost, com uma estrutura de custos muito leve, e o modelo das grandes companhias que têm uma dimensão que a TAP nunca terá. Leva pancada dos dois lados e, a prazo, é uma situação que não é sustentável.

A oportunidade era agora e, mais uma vez, com o sistema político português com esta instabilidade, podemos desperdiçar esta oportunidade de vender a TAP. E devo dizer que isto devia preocupar os trabalhadores da TAP, porque a melhor garantia de sustentabilidade futura é a empresa ser privatizada. Se isto dá para o torto novamente, não sei se a Comissão Europeia autoriza novas ajudas de Estado. O Estado também, mesmo que queira lá pôr dinheiro, não vai ser tão fácil como foi no passado.

A TAP deve ser privatizada a 100%, ou o Estado deve manter parte do capital?

Quanto menos Estado na TAP, melhor. É muito simples. O Estado portou-se mal na TAP. Primeiro privatizou, depois veio o governo Costa, andou para trás no processo. Isto significa, em termos técnicos, o quê? Quanto maior a posição do Estado na TAP, maior a incerteza para o parceiro privado. Logo, isto em termos financeiros significa pagar menos pela TAP. Quanto maior a posição do Estado na TAP, a meu ver, menos vale a TAP para um parceiro privado.

Mas deve ter alguma?

Eu admito alguma posição simbólica, tipo "golden share", na questão de preservação do hub nacional. Por exemplo, veria com grande preocupação uma TAP vendida ao grupo da Ibéria, porque tem o aeroporto de Madrid, podia fechar o hub português.

Veria com simpatia a venda da TAP ao grupo alemão ou ao grupo francês. O Estado tem capacidade na escolha do parceiro de minimizar o risco de ficarmos sem o hub em Lisboa. E não é preciso ter uma presença maciça do Estado, de controlo na empresa.

Acha que o PS, se vier a ser Governo, vai manter a privatização nessa linha?

Já se percebeu que o PS aqui é muito mais defensivo que o PSD. E na linha do que fez no passado, em que reverteu as questões, já percebi que Pedro Nuno Santos não é tão radical como alguns dizem, mas eu acho que a tendência aqui na TAP é tentar que o Estado mantenha a maioria. E eu acho que isto é uma péssima solução.

Não me choca uma posição do Estado mínima, para salvaguardar algumas coisas, tipo "golden share". Embora, em termos da União Europeia já não podemos ver isto como "golden share", mas todos os países sabem fazer estas coisas, com um pacto social bem trabalhado entre o privado e o Estado, podemos chegar aos mesmos efeitos que a "golden share" fazia, preservando o hub de Lisboa. Isto é possível sem o Estado ter uma posição maioritária.

O Estado em posição maioritária não será bom para a TAP, nem para o Estado, nem para nós contribuintes.

Portugal garantiu agora a produção de um modelo elétrico na Autoeuropa. Ficaríamos chocados se conhecêssemos as contrapartidas?

Não, não ficamos chocados. Havemos de as conhecer um dia. Quando negociei a Autoeuropa também pagámos muito dinheiro: incentivos fiscais, incentivos financeiros, e apoios à formação profissional.

É claro que houve alguns empresários na altura que não gostaram. Acho que ninguém hoje em dia discute a justiça da nossa decisão, de trazer a Autoeuropa para Portugal.

Temos que perceber que a Autoeuropa está a competir com as outras fábricas do Grupo Volkswagen. Para se ganhar o modelo elétrico, este "low cost" de cerca de 20 mil euros que vai ser um carro popular, que pode competir com os chineses, tivemos de competir com outras fábricas europeias. Era importante o apoio do governo português, não sei quanto, mas incentivos financeiros, fiscais e de apoios à formação profissional, que são os necessários para poder competir com os outros.

É capaz de ter dado um bocadinho mais, mas acho que é dinheiro bem empregue. Todos perceberíamos o desastre para a economia portuguesa se a Autoeuropa saísse de Palmela de um dia para outro. Como estamos numa democracia, os apoios públicos vêm a saber-se. À posteriori vamos saber.

Porque acha que não temos mais investimentos da dimensão da Autoeuropa em Portugal? O que é que está a falhar?

Depois de conseguimos a Autoeuropa para Portugal, isto começou com um almoço meu com o administrador financeiro, aconteceu a abertura da China à concorrência internacional e a queda do muro de Berlim. Os tradicionais investidores na indústria portuguesa eram alemães, americanos e franceses. Quando a China se abre ao mercado mundial, os americanos esquecem Portugal. Quando cai o muro de Berlim, o investimento alemão vai para o leste europeu.

Não estou a culpar os governos seguintes, não estou a gozar, não estou a chamar de nabos, mas não teriam conseguido, a seguir, continuar a nossa trajetória de investimento.

E hoje, o que é preciso fazer para dinamizar a indústria nacional? Menos impostos?

Também convinha, mas não só. O que o ministro Pedro Reis conseguiu agora com dois investimentos significativos é muito importante. A fábrica de baterias em Sines e o carro elétrico na Autoeuropa. Isto vem na sequência do que já se tinha conseguido com a fábrica da Stellantis, em Mangualde, que também já tinha passado para veículos elétricos.

Agora convém chegar até ao fim e conseguirmos explorar o lítio. Na Europa somos o país com maiores recursos de lítio, uma matéria-prima para a fabricação de baterias. Já temos uma fábrica de baterias, duas fábricas de montagem de veículos elétricos, para completar esta cadeia de valor, convém agora que o lítio que temos em Portugal, quer em Boticas, quer em Montalegre, possa ser explorado.

Conseguimos dinamizar um cluster automóvel em Portugal com a Autoeuropa, com a Stellantis, a Mangualde e com a indústria de componentes, as exportações são cerca de 13 mil milhões de euros por ano. Agora que está a transitar para o veículo elétrico, convém defender este cluster.

Já que fala dos clusters, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, quer atualizar o relatório Porter, também uma iniciativa sua, que já tem 30 anos. Concorda com este exercício?

Devo dizer, ver o secretário-geral de um partido, que não o meu, pegar numa ideia minha, foi simpático para mim. É evidente que acho que a ideia pode ser boa, o contexto é diferente da altura, as metodologias Porter também têm que ser atualizadas.

Se se fizesse um novo trabalho, tipo Porter, discutíamos a economia portuguesa e a competitividade das empresas, em vez de andarmos, como andámos o ano todo, a discutir o Estado e o seu orçamento.

E muitas vezes nem foi o orçamento em si, mas se passava ou não passava.

As tricas e as tricas dos impostos e não se discutiu a economia. O país viveu graves desequilíbrios e hoje está equilibrado, não temos défice externo, temos ligeiro superavit e não temos desemprego. Logo, temos condições únicas para discutir a economia portuguesa e revisitar o relatório Porter.

Alguns empresários disseram logo que não precisamos de relatórios, mas de medidas. Uma coisa não impede a outra, há muita coisa que já está diagnosticada e só falta vontade política para implementar, e os empresários têm a razão. Agora, isto não dispensa voltar a discutir a economia portuguesa e a competitividade das empresas. Nesse sentido, apoiei a ideia do Pedro Nuno Santos, mas nesta perspetiva.

No caso, o líder do PS defende que o Estado apoie setores específicos, definidos à cabeça quais são.

Em termos extremados, a malta mais liberal diz que o Estado não tem nenhuma visão estratégica, o mercado funciona, os empresários fazem o que querem. Depois há a visão extremada do outro lado: um governo e um ministro iluminado, dita quais são os setores a apoiar e os setores a acabar.

O que eu pratiquei no governo foi que temos uma realidade que não se pode escamotear, os setores industriais tradicionais: o têxtil, o calçado, madeira, mobiliário, metalomecânica, cerâmica e vidro. Fazem parte da nossa tradição industrial, não são obsoletos, mas têm um certo desafio de modernização, vou ter que ter uma política setorial para estes setores. Depois vou tentar captar investimentos e outras coisas para avançar para novos setores.

E como é que se encaixa aqui a indústria da defesa?

É dos tais setores onde é evidente que vamos ter que apostar. O que é que os americanos têm? Têm o Ministério da Defesa, o Pentágono, que passa fabulosos contratos de desenvolvimento de tecnologias militares à indústria civil americana. A indústria civil americana faz o desenvolvimento tecnológico à custo do contribuinte americano. E essa indústria civil, depois de fazer os brinquedos militares, de acordo com o conceito de Indústrias duais, passa aquilo para aplicações civis.

Veja o caso da Boeing, eu aprendi isto no meu tempo de governo, em Bruxelas. O que é que diziam os americanos? Vocês apoiam a Airbus e nós não apoiamos a Boeing. Pois, eles não apoiavam o avião civil, apoiavam o avião militar.

A Europa tem que utilizar o conceito de indústrias duais que os americanos utilizam. Um programa pan-europeu de defesa, é aquilo que eu defendo, que apoie as empresas privadas a fazer brinquedos militares, de acordo com o conceito de industrias duais, depois passam aquilo para aplicações civis.

Se cada país toca o que sabe, não há uniformização. Nós os europeus já temos aviões militares de combate, se calhar, que chegam para as encomendas, não temos munições suficientes. Há ainda os satélites de inteligência e alguns mísseis hipersónicos, que os americanos fazem e que nós não fazemos. Tem que ser um esforço conjunto.

A Europa tem essa capacidade?

Temos um caso de sucesso na Europa: a Airbus. Hoje é um fabricante de aviões mais respeitado que a Boeing, que está cheia de problemas. A Airbus é resultado de quê? De um consórcio europeu. O caso do Airbus mostra-nos que, unidos e com uma lógica pan-europeia, temos capacidade de produzir equipamento militar.

Se há fábricas de automóveis que vão fechar com a crise automóvel, talvez convenha utilizar essas fábricas para produzir. Os americanos têm na sua Constituição um dispositivo muito simples que diz que em caso de guerra ou emergência militar, o governo americano pode requisitar fábricas privadas para construir equipamento militar. Fizeram isto na II Guerra Mundial. Também devemos ter estes conceitos na Europa, numa lógica pan-europeia.

Como é que vamos financiar este rearmamento da Europa?

Portugal só gasta 1,6% em despesas militares, já antes se pressionava que devia chegar aos 2%, agora já alguns falam em 3% ou 4%. Isto não há milagres, significa que tem que haver alguma parcimónia, alguma contração noutros casos.

A União Europeia, para facilitar as coisas, admitia a hipótese da despesa militar não contar para o défice. Em termos da União Europeia, isso facilita a vida, pode não facilitar em termos de mercados, porque são implacáveis, acham que não conta para o défice da União Europeia, mas conta para a dívida que os mercados têm que financiar.

Há duas coisas que eu vejo neste quadro da Ucrânia, ninguém liga nenhuma à Europa nem à ONU, portanto, temos que nos rearmar e tem que se arranjar maneiras de financiar o esforço de defesa. Na medida em que se consiga fazer esta lógica americana de indústrias duais, a própria despesa militar faz crescer a economia. Há aqui uma maneira inteligente de tentar minimizar aquilo que perguntou, e muito bem, como é que a gente vai financiar a defesa?

O modelo utilizado para o setor automóvel pode ser semelhante no setor da defesa? Não há um carro português, não há uma marca automóvel portuguesa, mas produzimos carros em Portugal ou, pelo menos, montamos e exportamos peças para vários modelos a nível europeu.

Se a Comissão Europeia fizer um programa pan-europeu de defesa, Portugal insere-se nessa lógica. Nós já temos um cluster de aeronáutica, espaço e defesa dinâmico a funcionar em Portugal, já temos capacidade industrial instalada e tecnológica muito simpática em Portugal. Algumas destas empresas já têm parcerias na Europa e podem entrar num esforço conjunto europeu.

Temos todas as condições neste momento, sou otimista nesse aspeto. Já fazemos drones, civis e militares, construção e reparação naval, robótica, materiais, tecnologias de informação, têxteis e calçados, temos capacidade industrial instalada que serve para a indústria de defesa europeia, temos aqui atributos para entrar na lógica que citou muito bem, já se faz no automóvel.

Eu nunca tive a pretensão de fazer um automóvel português, mas tive a pretensão de ter fábricas de automóveis em Portugal. Já fazemos componentes para o Airbus aqui em Portugal, então porque é que não podemos fazer para estas coisas também?

O Banco de Fomento funciona agora com um modelo ligeiramente diferente daquele que conheceu, quando lá esteve, e está nesta altura debaixo de muitas críticas dos empresários. Tem agora uma nova direção. É preciso reestruturar a instituição?

Este Banco de Fomento não tem nada a ver com o Banco de Fomento em que estive. O meu amigo Guterres, como primeiro-ministro, numa perspetiva neoliberal privatizou e acabou com o Banco de Fomento, fez um concurso e vendeu o Banco de Fomento ao BPI. Ficámos o único país da Europa a não ter um Banco de desenvolvimento estatal. Foi um erro que fizemos.

O novo Banco de Fomento que foi criado não tem nada a ver com o outro. Porquê? Porque hoje é criado e vive à custa de fundos comunitários, e os fundos comunitários têm regras e restrições que não dão ao Banco de Fomento a margem de manobra que tem um banco privado, com depósitos privados. Depois, confesso que até hoje a coisa não funcionou bem. Os empresários não têm uma boa imagem do Banco de Fomento.

Daí a minha pergunta. Faz sentido este modelo?

O ministro Pedro Reis, que tem experiência bancária, está a tentar fazer a terceira ressurreição do Banco de Fomento. Confesso que tenho prognóstico reservado.

Como é que podia funcionar? Acha que faz sentido ainda a integração na banca comercial? Por exemplo, na Caixa Geral de Depósitos?

Não, não. A lógica é esta. O Banco de Fomento vem fazer coisas que a banca comercial não faz. A banca comercial pega em depósitos e transforma os depósitos, capital garantido, em crédito às empresas e às famílias, com pouco risco. A banca comercial não pode fazer crédito com grande risco, por exemplo, uma startup não é para a banca comercial. Financia empresas maduras com pouco risco.

O Banco de Fomento deve apoiar projetos com mais risco, porque tem capital público que serve para isso, não é capital dos depositantes, e projetos de maior maturidade.

Ainda sobre o Novo Banco e o IPO. O ministro das Finanças diz que as condições ainda têm de ser analisadas, mas admite que o Estado pode manter os 25% que tem no banco por algum tempo. Concorda?

É uma atitude de prudência. Não sabemos como é que as coisas vão evoluir. O Estado não tem neste momento necessidade de dinheiro, por isso, se a presença do Estado for útil à estabilização do Novo Banco, ou até a uma transação para novos donos ou para a entrada em mercado, concordo inteiramente.

Foi ministro da Indústria e da Energia. Na energia renovável Portugal já foi considerado um exemplo. Porque continua a energia tão cara em Portugal? Como se explica?

Nós investimos na energia eólica na fase cara da curva de aprendizagem, isto é, quando a tecnologia não estava dominada. Investimos maciçamente numa capacidade instalada de quase 6 mil megawatts de energia eólica, a preços muito caros, cerca de 90 euros por megawatt hora, que ainda está a funcionar e presente na economia portuguesa.

Estamos a pagar a energia das eólicas ainda a 90 euros por megawatt hora, quando hoje em dia já há projetos eólicos cuja energia é vendida a 30 ou 40 euros por megawatt hora.

Outro caso, esse, felizmente, a capacidade instalada foi pequena, mas em termos de preço é chocante. Quando o ministro Manuel Pinho investe numa central fotovoltaica prematuramente, com uma tecnologia imatura, não dominada, e essa energia custa 350 euros por megawatt hora. Os últimos leilões que foram feitos em Portugal do solar já são a 20 ou 30 euros por megawatt hora.

A minha tese é que estamos a pagar a energia muito cara, porque investimos em tecnologias eólicas que ainda estavam na fase inicial da curva da aprendizagem, não estavam maduras tecnologicamente, logo o preço é demasiado caro. Só quando estas eólicas forem descontinuadas é que deixamos de pagar uma brutal capacidade instalada, que custa 90 euros por megawatt hora, que foi montada em 2001, com preços exagerados.

Isso afeta até a competitividade do país?

Com certeza. Eu é que lancei as eólicas em Portugal e fiz isso com uma lógica muito simples: pagava para o preço de venda à rede, o preço da energia que eles iam substituir. Fiz isto em 1988. Uns anos depois, um governo PS esqueceu esta minha lógica e pôs as eólicas a pagarem cerca de 90 euros por megawatt hora.

É essa capacidade que eu chamo sucata tecnológica, porque foi feita numa fase em que a tecnologia era imatura, muito cara. Já apareceu eólica muito mais barata, não estamos a receber os benefícios dessa eólica porque a que lá está é velha, enquanto essa eólica não for descontinuada, não vai ter energia elétrica mais barata. E isso foi o que a Ministra do Ambiente veio no outro dia, com alguma honestidade, confessar. Coisa que o lobby das eólicas não gostou, mas é a pura das verdades.

Sobre esta guerra comercial em curso. A União Europeia promete uma resposta em bloco, Ursula von der Leyen diz que ainda estão a analisar o impacto deste aumento de tarifas por parte dos Estados Unidos. Concorda com uma retaliação?

Há aqui duas teses. Numa lógica meramente económica e aplicando a teoria dos jogos, o melhor é estarmos quietos, não retaliar. Retaliar é aplicar tarifas aos produtos americanos que entram na Europa, logo, é pôr os consumidores europeus a pagar mais caro.

Agora, percebo que em termos políticos é difícil convencer a classe política a não retaliar contra Trump, que todos detestam na Europa.

O que é que me preocupa? Quando Trump vem dizer que vai pôr taxas nos automóveis de 25%, diria que a Autoeuropa não me preocupa tanto, não é a Autoeuropa que está a exportar diretamente para os Estados Unidos. Preocupam-me outros produtos, por exemplo, no setor metalomecânico, têxtil e farmacêuticas, acho que vamos apanhar por tabela dificuldades das exportações portuguesas para os Estados Unidos.

Temos um terceiro efeito, os grandes países europeus que exportam muito para a América, como a Alemanha, são prejudicados e a sua economia vai arrefecer. Por aí, as nossas exportações para a Alemanha, para esses países, apanham por tabelas.

Mesmo a terminar, não resisto a fazer-lhe uma pergunta provocatória. Quantos Porshes já pode comprar nesta fase da sua vida? Era um dos seus sonhos, que julgo só terá concretizado depois da saída do Governo.

Desde miúdo, tinha a ambição de ter um Porsche. Só comprei um Porsche depois de sair do Governo, uns anos depois. Com o dinheiro que ganhei na banca, comprei o meu primeiro Porsche, 911, e agora vou no terceiro Porsche, 911. Tinha esse Porsche para passear em Cascais e depois comprei um SUV, um Macan, para andar na estrada.

Quando os meus amigos perguntam porquê é que eu quero um Porsche, eu digo que já não é para acelerar, com 79 anos já não tenho os reflexos que tinha antigamente, tenho consciência disso, mas ouvir o barulho do motor, aquilo para mim é uma sinfonia, é como a música.

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