Siga-nos no Whatsapp

Explicador Renascença

O que se passa na Fertagus? Por que é improvável ver mais comboios a passar?

12 fev, 2025 - 21:38 • João Pedro Quesado , Anabela Góis

A Fertagus pode continuar sem capacidade para acomodar todos os que precisam do comboio na margem sul. Com a CP aparentemente de fora das soluções e a reversão dos horários fora de questão, pode não haver remédio imediato.

A+ / A-
O que se passa com a Fertagus? Que solução existe?
Mudanças nos horários da Fertagus geraram mais procura a partir de Setúbal, mas esticaram uma manta que tinha pouca margem. Foto: Rui Minderico/Lusa

A enchente nos comboios da Fertagus pode estar para durar. O ministro das Infraestruturas anunciou esta quarta-feira que a CP "não encontrou meios" para ajudar a resolver a sobrelotação de comboios na ligação entre Lisboa e Setúbal, uma resposta rejeitada pela comissão de utentes da Fertagus. O problema parece não ter resposta simples e rápida nem consensual — são precisos mais comboios, mas ninguém sabe bem onde os arranjar no imediato.

De onde vem este problema?

A sobrelotação começou a 15 de dezembro de 2024. Nesse dia, entraram em vigor os novos horários da Fertagus, aumentando a frequência de comboios em Setúbal de 30 em 30 minutos para de 20 em 20 minutos.

Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui

Para conseguir isso, a empresa, que tem 18 comboios no serviço desde 1998, foi obrigada a mudar a oferta na parte do percurso onde existe mais procura.

Porque é que Setúbal passou a ter mais comboios?

A mudança foi resultado do prolongamento da concessão do serviço de passageiros que atravessa a ponte 25 de Abril. Foi, aliás, anunciada como permitindo “o reforço da operação”.

A parceria público-privada, iniciada em 1998, foi renegociada em 2005 e alvo de acordos de reposição de equilíbrio económico-financeiro em 2010, 2019 e 2024, tendo sido prolongada até março de 2031.

O programa de exploração do contrato, que estabelece o serviço que a Fertagus tem que disponibilizar, está desde sempre indisponível ao público, sendo declarado “confidencial” e correspondente a “segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna de uma empresa”.

O que aconteceu na prática?

Ao contrário do anúncio do Governo, que falava em “redução dos tempos de espera e comboios menos lotados”, os comboios da Fertagus passaram a andar mais cheios e a aparecer com menos lugares em parte da linha.

A partir da estação de Coina, no Barreiro, onde o serviço era intensificado para responder à maior procura existente, a alteração de horários de 15 de dezembro resultou, na verdade, no corte de 2.512 lugares entre as 7h00 e as 10h00 – o equivalente a um comboio duplo da Fertagus, assumindo o número de passageiros em pé numa situação de sobrecarga (780 pessoas), mais os 476 lugares sentados por automotora. Onde em fevereiro de 2024 existia uma oferta de 33.912 lugares nos comboios nesse espaço de três horas, passou a existir uma oferta de 31.400 lugares.

no Fogueteiro, a estação seguinte, a redução é mais dramática no horário entre as 8h00 e as 9h00 da manhã. Enquanto antes das alterações de dezembro eram realizados dois comboios simples e cinco duplos, as mudanças traduziram-se em três comboios de cada tipo, e uma redução de 3.768 lugares naquele horário - de 15.072 lugares para 11.364.

Não é possível voltar aos horários antigos?

Segundo Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas, essa não é uma hipótese.

Contudo, os horários já não são os mesmos das alterações a 15 de dezembro. A oferta foi reajustada a 20 de janeiro, revertendo a redução de lugares. Por exemplo: os sete comboios simples (de 1.256 lugares) e dez comboios duplos realizados entre as 7h00 e as 10h00 voltam a oferecer 33.912 lugares aos utentes a partir de Coina.

E o problema mantém-se?

Sim, porque não há resposta para o aumento de procura total em 8%, indicado pelo Governo a 31 de janeiro, numa resposta a questões da Renascença. “De Penalva a Setúbal, a procura aumentou 30%”, disse então a secretária de Estado da Mobilidade, Cristina Pinto Dias.

Por outras palavras, há mais pessoas a procurar o comboio, mas o número de comboios, e de lugares disponíveis, não aumentou.

Como é que os comboios da CP podiam ser solução?

Os comboios da CP foram vistos como solução para a Fertagus porque as duas empresas partilham material semelhante.

Os 18 comboios utilizados pela Fertagus são propriedade do Estado, através da empresa Sagesecur. Esses 18 comboios de dois pisos e quatro carruagens fazem parte da série 3500, um grupo de 30 automotoras que foram compradas pela CP em 1998 — 12 ficaram nas mãos da operadora pública, onde fazem parte do serviço urbano de Lisboa até a Azambuja.

Contudo, no debate que tem surgido, partes do setor ferroviário apontam que as soluções diferentes adotadas pelas duas empresas na manutenção destes comboios já tornam as automotoras muito diferentes, e quase incompatíveis entre si. O risco é serem necessárias semanas de imobilização para tornar os comboios compatíveis, numa série que nunca gozou de elevados níveis de fiabilidade desde a entrada ao serviço.

Mas a CP tem comboios parados?

As duas empresas têm diferenças na operação. À Renascença, João Cunha apontou que a transportadora pública “tem uma produtividade muito inferior” nos mesmos comboios, e que devia ser exigida à CP uma disponibilidade de frotaum bocadinho mais alta para poder libertar três ou quatro” comboios.

“A maior parte do trabalho de manutenção da Fertagus é à noite. A maior parte do trabalho de manutenção da CP é às horas de ponta”, disse João Cunha. “É por isso que a Fertagus, à hora de ponta, tem no mínimo 17 unidades em 18 a andar, e a CP, nas 12 de dois pisos que tem, se tiver 9... Já é um grande dia". Questionada sobre esta disponibilidade há uma semana, a CP não respondeu à Renascença.

As diferenças de operação prendem-se com critérios que, apontam partes do setor, são mais exigentes do lado da CP do que na Fertagus nos critérios usados para disponibilizar os comboios ao serviço. Um exemplo apontado é a circulação de comboios duplos durante várias semanas com o pantógrafo (o aparelho que capta energia elétrica da linha acima da via) de uma das carruagens motoras em baixo, indicando uma avaria. Caso essa avaria se repetisse na outra carruagem motora acoplada, o comboio duplo pararia.

Os trabalhadores ferroviários juntaram-se, na passada sexta-feira, para afirmar que a CP “não tem quaisquer comboios encostados”, e que estes comboios da série 3500 “terminaram há poucas semanas as operações de renovação geral, orçadas num total de 17,5 milhões de euros”. Além disso, declararam que “a eventual transferência de comboios da CP para a Fertagus significará uma redução da oferta da CP muito para além do serviço suburbano das linhas de Sintra, Azambuja e Sado”.

Não há outras soluções?

João Cunha indicou uma “quinta carruagem” como solução a médio prazo, que poderia ficar pronta em cerca de seis meses. A base é umaideia defendida pela gestora da Fertagus em 2019, de acrescentar uma quinta carruagem aos comboios atuais.

O especialista em ferrovia olha para comboios de perfil semelhante à série 3500 que Espanha está a retirar de circulação, da série 450, e que aponta serem “basicamente iguais às 3500 no veículo não motor”, necessitando de uma “adaptação simples” devido à tensão utilizada na alimentação elétrica das linhas ferroviárias espanholas.

Uma solução defendida por outros setores é que a CP alugue comboios à Fertagus, incluindo a tripulação. Para isso seriam utilizados comboios da série 2300, habitualmente vistos na Linha de Sintra e com capacidade para cerca de 850 passageiros, recorrendo a maquinistas da CP que têm certificação para estes comboios e para o itinerário onde a Fertagus opera.

Contudo, pelo que foi ouvido esta quarta-feira no Parlamento, também isto parece estar fora de questão para a CP.

Não há solução?

De forma imediata, parece que não. O ministro das Infraestruturas indicou que a situação está mais estabilizada, mas a Comissão de Utentes discorda: “a verdade é que as coisas não melhoraram significativamente”.

A solução é comprar mais comboios para circular em Portugal. Esse processo é, contudo, moroso, não só devido às exigências legais, como ao risco de impugnações e disputas judiciais.

Portugal tem duas compras de comboios em curso. Uma consiste em 22 comboios comprados à Stadler em 2021 – automotoras destinadas a realizar serviços regionais, com entrada ao serviço projetada para 2026. Outra é de 117 comboios, adjudicada ao consórcio entre a Alstom e a DST em novembro de 2023, e inclui 62 automotoras para o serviço urbano e 55 automotoras para o serviço regional — mas essa compra está parada nos tribunais desde então.

Quantos comboios seriam precisos?

Há muitas exigências a responder na rede ferroviária em Portugal. São poucas as linhas onde já não é possível encaixar mais serviços - ou seja, é possível fazer circular mais comboios em grande parte da rede.

A soma de 139 comboios em compra serve maioritariamente para reforçar os serviços urbanos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto — 34 automotoras são para substituir comboios atuais, mais precisamente os 29 comboios que circulam na Linha de Cascais, enquanto os 22 comboios regionais substituem as mais automotoras a diesel ainda alugadas a Espanha.

Depois há as substituições necessárias: 86 comboios circulam nos serviços urbanos na área de Lisboa (incluindo os 18 da Fertagus), e 34 fazem serviços urbanos na área do Porto. Uma substituição integral destes comboios, sem pensar em aumentar o número de serviços, exige 120 unidades novas.

Nem todos os comboios precisam de ser substituídos ao mesmo tempo — aos comboios utilizados na Linha de Sintra, comprados durante a década de 1990, é reconhecida uma fiabilidade capaz de os levar aos 50 anos em operação. Mas outras séries, como os comboios utilizados no Porto e pela Fertagus, têm menos durabilidade.

A necessidade de substituir as carruagens e locomotivas dos comboios Intercidades, assim como as séries de comboios regionais e interregionais (serviços onde muitos são unidades transformadas no início do milénio a partir de material da década de 1970), acrescentam mais de 200 unidades à lista de compras.

Depois há a necessidade de responder a novas fontes de procura, sejam elas adições à rede ferroviária normal ou as linhas de alta de velocidade. Se para a alta velocidade há números — os mais recentes indicam a compra de 22 comboios para a CP —, o resto está longe de ser estimado.

Ao todo, o investimento deverá ser de vários milhares de milhões de euros. Basta ver que a compra de 22 comboios regionais vale 158 milhões, enquanto a compra de 117 comboios custa 746 milhões. Já a compra de comboios de alta velocidade estava estimada em cerca de 580 milhões de euros quando estavam a ser pensadas apenas 16 unidades para a CP.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+