20 fev, 2025 - 07:00 • Susana Madureira Martins , Lara Castro (Renascença) e Ana Henriques (Público)
À frente do Tribunal de Contas (TdC) há quatro meses, Filipa Calvão diz que o contexto autárquico “cria oportunidades para a prática de atos ilegais”. Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, defende, contudo, que o país não tem “uma cultura de corrupção, mas de desleixo", muitas vezes por falta de preparação dos serviços.
Sobre o caso Hélder Rosalino, a presidente do TdC afirma que a Administração Pública tem “grande dificuldade” em concorrer com o mercado quando quer contratar especialistas em determinadas matérias.
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O TdC passou, recentemente, a avaliar a presença de risco sísmico nos edifícios e Filipa Calvão admite que a “generalidade” dos edifícios não está preparada para suportar sismos mais fortes. Está em curso uma fiscalização sucessiva sobre o modo como as entidades públicas estão a preparar-se para reagir a catástrofes, incluindo incêndios e sismos.
Filipa Calvão anuncia ainda que o TdC está a testar um mecanismo de Inteligência Artificial para detetar as áreas de maior risco na contratação pública. A ideia é detetar com mais precisão onde devem incidir as auditorias do tribunal.
Mesmo estando no cargo há pouco tempo, já tem uma noção de quais as áreas mais problemáticas por via das irregularidades detetadas? Autarquias, Saúde?
São, de facto, áreas onde o investimento público tem sido maior e, portanto, áreas de risco que devemos acompanhar de mais de perto. A transferência de competências para as autarquias locais aumentou significativamente a sua área de ação. É evidente que o contexto autárquico, por força da proximidade em relação à população e, portanto, às empresas, é, porventura, mais atreito a atos menos conformes com a lei. Sobretudo em freguesias ou municípios mais pequenos há falta de preparação técnica dos serviços de apoio [para lidar com a contratação pública] para perceberem que em determinadas circunstâncias tem que haver um concurso público. Ou, percebendo, vai-se para um ajuste direto de última hora por desleixo. É todo um contexto que cria oportunidades para a prática de atos ilegais. Outra área com grandes investimentos é a Defesa.
As aquisições de bens e serviços na Defesa sofrem de maior opacidade por via do segredo de Estado, não é?
É natural em relação a algumas delas, não todas. Um caderno de encargos detalhado sobre a aquisição de armamento ou de veículos militares naturalmente não pode ser publicitado sem mais, sob pena de nos tornarmos um alvo fácil. O que não quer dizer que nalguns casos não possa ainda assim ser garantida a concorrência. As matérias são classificadas na medida do necessário e da medida do estritamente necessário.
A que áreas da Saúde é que está a ser dada mais atenção?
Aqui, a razão de ser da atenção do TdC prende-se com um problema estrutural da nossa sociedade, o envelhecimento. Temos tido progressivamente uma cada vez maior sobrecarga dos serviços de saúde e daí que o tribunal deva acompanhar esse investimento na saúde e a gestão pública do setor. Não lhe vou dizer áreas, evidentemente, embora possa dar como exemplo a gestão dos hospitais e a aquisição de medicamentos.
O TdC está a desenvolver uma ferramenta tecnológica de inteligência artificial que nos vai permitir detetar as áreas de maior risco na contratação pública. Analisando as áreas que no passado revelaram ser as que apresentam maior risco de ilegalidades e irregularidades, poderá identificar onde devem incidir as nossas auditorias.
"Autarquias? É todo um contexto que cria oportunidades para a prática de atos ilegais"
A legislação que permite responsabilizar os titulares de cargos públicos do ponto de vista financeiro é suficiente? No processo judicial Tutti-Frutti, e embora Fernando Medina não tenha sido incriminado, acompanha esta acusação um relatório dos serviços da Procuradoria-Geral da República que diz que este ex-presidente da câmara e outros responsáveis políticos recorreram a práticas administrativas ilegais.
O TdC aplica a lei que estiver em vigor, não opina sobre o quadro legislativo. O combate à corrupção não é uma área da sua jurisdição. Mas não creio que o problema esteja propriamente na lei, mas sim na capacidade de as diferentes instituições públicas que têm um papel importante na deteção dessas ilegalidades e no seu eventual sancionamento atuarem atempadamente - no sentido de, por um lado, encontrar ainda no exercício dos seus mandatos públicos quem comete as ilegalidades, por outro lado, corrigir comportamentos futuros.
O TdC e o procurador-geral da República perderam recentemente a favor do Governo o poder de nomearem o presidente da Agência Nacional Anticorrupção. Foi a melhor opção?
Não conheço esse projeto de diploma. Sei que já foi anunciado, mas não gosto de falar sobre aquilo que não li ainda. Em todo o caso, as entidades administrativas independentes têm formas de designação diferentes e, nesta, pretender-se-á, porventura, sublinhar um pouco mais a legitimidade democrática, ainda que indireta por via do Governo, na escolha desses titulares de órgãos. O que me parece mais importante é dotar a agência de meios que lhe garantam uma atuação independente e efetiva.
Que balanço é que faz da atuação da agência, tendo até em conta que não fez um único contrato público ao longo da sua existência?
Não vou pronunciar-me sobre a atividade de um organismo cuja ação não foi por nós avaliada.
A quem é que compete fiscalizar esta agência?
Depende do que estiver em causa. Se estamos a falar de fiscalização de legalidade, essa competência situa-se algures entre o Tribunal de Contas, quanto à questão financeira, e os tribunais administrativos, quanto às demais questões. Se estamos a falar de eficiência de gestão e do desempenho, essa análise compete ao TdC e ao Governo. Claro que podemos sempre comparar a atividade desta agência com a do Conselho de Prevenção de Corrupção, que funcionava no TdC - como alguns têm feito. E, de facto, talvez tenha havido maior impacto da atividade do conselho, porque se centrou numa vertente pedagógica e teve, de facto, alguma visibilidade.
Está a dar razão ao Governo, que disse que a agência não tem sido eficaz?
Não sei se foi eficaz, não teve foi visibilidade.
Esta semana tem estado a ser discutida no Parlamento a lei dos solos, que estabelece um novo regime para a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos. Traz vantagens ou é um novo foco de problemas?
O TdC não tem como avaliar um diploma que não foi ainda sequer aprovado.
Nem a título preventivo?
Os organismos públicos, neste caso no plano autárquico, devem procurar pesar devidamente as consequências jurídicas e práticas das suas decisões e fazer a melhor execução possível dos diplomas legais que lhes são apresentados. E, portanto, logo veremos o que é que daí resulta desse regime.
O ex-diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde sugeriu que o Tribunal de Contas avaliasse demissões de administrações hospitalares e que, em caso de gestão danosa, obrigue os responsáveis a arcar pessoalmente com a despesa.
O TdC define o seu plano de auditorias no ano anterior e não anda propriamente a reboque de sugestões. O plano de 2025 está definido. Por ora, essa não parece ser uma matéria que tenha angustiado o tribunal.
Os ajustes diretos são um cancro ou são uma necessidade?
São necessários e, por isso, a legislação europeia lhes dá espaço para existirem. O que se nota muito, de facto, é que temos uma cultura não de corrupção, como alguns dizem, mas de desleixo e de falta de planeamento. Vamos deixando andar. Como povo não somos bons a planear. Se sabemos que há um contrato acaba no final de 2025, então no início do ano há que começar a preparar um novo procedimento de contratação.
Mas isso não é uma visão um bocado naïf do que se passa? Não sente necessidade de revisão de algumas normas do código de contratação pública?
Eu não diria que essas práticas sejam para evitar concursos públicos. Às vezes é para, de facto, acelerar a contratação. Quanto à legislação de contratação pública, no plano europeu a sua revisão está a ser pensada no sentido de uma simplificação de procedimentos. Não quer dizer que se esteja a afastar a lógica de garantir a concorrência, pelo contrário, mas sim a diminuir o peso burocrático de procedimentos que, por vezes, constituem uma teia que enreda os organismos públicos e dificulta o cumprimento dos princípios da lógica da contratação pública.
"Temos uma cultura não de corrupção, como alguns dizem, mas de desleixo e de falta de planeamento"
Se fosse nomeada para o Governo mexia no código da contratação pública?
Jamais, em circunstância alguma, responderei a uma pergunta dessas. Estou no Tribunal de Contas e não pretendo de todo misturar funções. Não podemos legislar livremente nesta matéria, porque temos condicionantes do quadro legislativo europeu.
O Governo avançou com legislação que isenta de visto prévio do TdC mesmo os contratos mais vultuosos, desde que relacionados com o aproveitamento de fundos comunitários. Há quem já lhe tenha chamado licença para roubar…
O regime legal está construído de modo a que quem incorra nessa tentação seja responsabilizado. Tenta equilibrar a urgência da execução de fundos, que depois se perdem, com a legalidade financeira e a garantia de concorrência. Portanto, não me parece que se possa falar em licença para roubar.
Perante a falta do visto prévio há titulares dos órgãos públicos que receiam incorrer em responsabilidade financeira reintegratória, ou seja, terem de devolver as quantias já pagas. E isso corre o risco de bloquear a execução desses fundos. Mas, vamos ver.
A auditoria à gestão da ANA Aeroportos pós-privatização não está atrasada? Tem uma data para a sua divulgação?
Uma auditoria à gestão de uma empresa dessa dimensão é sempre difícil. Não posso dar datas.
Já uma auditoria anterior, ao processo de privatização da ANA, suscitou críticas entre os partidos da direita parlamentar quanto à isenção e à competência dos juízes responsáveis pelo relatório. A tensão entre o TdC e o poder político é uma inevitabilidade? O tribunal é de alguma forma um contrapoder?
No sentido amplo de que a justiça pode ser um contrapoder em relação ao poder político, sim. Mas na verdade não é essa a missão do TdC, que tem a particularidade de não conhecer apenas as questões de legalidade financeira, mas de ir além disso e de fazer também uma análise da eficiência da gestão financeira pública. As suas recomendações são feitas para serem ponderadas não apenas pelas entidades administrativas, mas também pelos titulares dos órgãos políticos. É natural que cada vez que sai um relatório desta natureza, isso tenha algum impacto no contexto político. E que haja algum debate em volta disso.
Há quanto tempo é que o TdC não audita os gastos dos órgãos de soberania?
O Tribunal de Contas tem acompanhado alguns gastos de órgãos de soberania. Temos feito esse trabalho.
Como é que encara casos como o de nomeação de Hélder Rosalino, que se tivesse tomado posse iria ganhar, como secretário-geral do Governo, um salário de 15 mil euros, quase o dobro do primeiro-ministro?
A Administração Pública tem uma dificuldade muito grande de concorrer com o mercado em relação a especialistas em determinadas matérias. O teto fixado na lei, em função do salário do primeiro-ministro e do Presidente da República, são limites legais que, de facto, condicionam muito essa escolha. Desse ponto de vista, compreendo, às vezes, a necessidade ou a vontade que haja de ir buscar pessoas por um valor superior àquele que é praticado dentro da administração pública. Mas, na verdade, a lei também dá, em muitos casos, a opção a quem é contratado de manter o vencimento de origem, que às vezes é significativo.
Qual foi o papel do consultor Jorge Bravo, nomeado pelo Governo para presidir o grupo de trabalho da sustentabilidade das pensões, no relatório do Tribunal de Contas, que identifica falhas nos relatórios de sustentabilidade da segurança social? Quanto é que custou a colaboração deste especialista?
Em 2022 houve a perceção que era necessário recorrer a especialistas nessa previsão da evolução dos sistemas de segurança social. O TdC fez um protocolo com o Instituto dos Atuários Portugueses, solicitou a indicação de um nome porque não tinha especialistas nesta área e celebrou um contrato de prestação de serviços. Os custos estão no portal da contratação pública [19 mil euros].
Um juiz jubilado do TdC foi acusado pelo Ministério Público de ter durante anos recorrido à prostituição de menores. É passível de punição disciplinar, tendo em conta que não foram atos praticados no exercício de funções?
Os juízes conselheiros jubilados estão sujeitos ao código de conduta do tribunal e ao estatuto dos magistrados judiciais. Portanto sim, e o tribunal vai agora precisamente avaliar a questão.
Mudando de assunto, o Tribunal de Contas passou nos últimos anos a avaliar nalgumas auditorias a prevenção do risco sísmico. Que resultados tem alcançado?
Há a ideia de que a generalidade dos edifícios não está preparada para suportar um sismo de dimensões significativas. Temos uma área de auditoria relacionada com risco de catástrofes naturais que inclui também os incêndios e em sede de fiscalização sucessiva estamos a analisar em que termos é que nos encontramos preparados para reagir ou prevenir e reagir a catástrofes naturais.
Mas não só do ponto de vista das empreitadas?
Sim, não só do ponto de vista das empreitadas. É uma análise geral, e não contrato e contrato.