ENTREVISTA RENASCENÇA/ECCLESIA

"Portugal é o meu país. Não tenho outro país para voltar"

05 out, 2025 - 09:30 • Ângela Roque (Renascença) , Octávio Carmo (Ecclesia)

A língua é um dos principais obstáculos à integração. É essa a experiência de Daniah Alkaram, uma jovem mãe e refugiada síria que em 2019 veio para Portugal com o filho menor. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, por ocasião do Jubileu dos Migrantes, conta que poder estudar Serviço Social na Católica é “um sonho”, apesar da guerra não permitir que volte ao seu país. E mesmo sem ter ainda a nacionalidade, diz que já se sente portuguesa.

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"Portugal é o meu país. Não tenho outro país para voltar”
Ouça a entrevista a Daniah Alkharam

Daniah Alkharam, de 31 anos, é uma jovem refugiada síria, aluna de Serviço Social da Universidade Católica. Tinha apenas 18 quando fugiu da guerra e de um pai opressor. Conta que os primeiros anos em Portugal foram muito difíceis, com poucos apoios. Não falar português foi a principal “barreira”, mas critica também o excesso de burocracia nos processos de legalização.

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O filho, que tem hoje nove anos, fala e escreve em português, mas já teve de mudar de escola, porque na anterior não teve qualquer apoio e sofreu episódios de racismo.

Em entrevista à Renascença e agência Ecclesia, Daniah fala do medo que sente quando ouve aviões, porque lhe fazem lembrar as bombas. Estudar em Portugal abriu-lhe horizontes de paz e de futuro.

Antes da entrevista começar a ser gravada sublinha que mais do que “refugiada”, quer que reconheçam que é mãe e mulher, e pede para ser tratada por “tu”, porque lhe facilita a compreensão em português.


Em 2022, entraste na Universidade Católica, ao abrigo da iniciativa de apoio aos refugiados. Falta apenas uma disciplina para te formares como assistente social. Que balanço fazes destes seis anos, em termos de integração aqui em Portugal? Foi difícil?

Sim, claro, foi difícil. Eu vou explicar o motivo: quando nós chegamos aqui a Portugal, há uma organização que nos acolheu. Então, nos primeiros 18 meses, ajudaram-nos nas necessidades básicas, com apoio financeiro, legal, psicólogo, comunitário. Mas, estes 18 meses não são suficientes para tudo, porque não conseguimos falar português.

A língua é uma barreira, é uma dificuldade?

Sim, muita dificuldade. Foi uma barreira maior porque, quando cheguei aqui, eu não falava nenhuma outra língua, só a minha língua materna, árabe. Então, não falava inglês, não falava português, não havia forma de comunicação com a sociedade. Não entendia, nessa altura, o que se passava no hospital, nas consultas do meu filho. Não havia nenhuma comunicação. Isso influencia também muito a nossa vida, porque não se sente segurança, se acontecesse qualquer coisa a mim ou ao meu filho. Não consigo explicar o que se passa… não consigo defender-me, não consigo defender o meu filho, não consigo fazer nada.

Então, sim, a língua é a maior barreira que tenho, até hoje. Porque quando alguém não fala a língua do país, isso vai provocar falta de tudo.

O pedido da residência e também da nacionalidade, a renovação da residência, é tudo muito lento. Isto tem influência na nossa vida


Falta de direitos. E é a base para tudo.

Sim, de direitos, de comunicação, de integração, falta de tudo, porque não se fala a língua. O problema é que o Estado não nos dá nenhum curso de português, não é obrigatório e não é grátis também. Eu estou a procurar cursos de língua portuguesa, há dois anos, e ainda não encontrei nada. É muito difícil.

Além da barreira da língua, outra dificuldade é o processo, o processo para todos. O processo é muito lento. O pedido da residência e também da nacionalidade, a renovação da residência, é tudo muito lento, talvez dois anos, três anos. Isto tem influência na nossa vida, porque se não tenho nenhuma residência válida, não consigo fazer pedidos de apoio social, não consigo fazer nada. Sem documentos, não consigo inscrever o meu filho na escola.

Um rapaz disse ao meu filho: “vai para a tua terra”. Qual é a terra do meu filho? Qual é a nossa terra? Ele não sabe escrever árabe, o país dele é aqui.

Como qualquer mãe já falaste muito do teu filho. Ter vindo com um filho pequeno foi um desafio para a integração também? Independentemente de coisas tão portuguesas, como a demora nos processos legais: sentiram-se sempre bem acolhidos pela sociedade?

Na verdade, não muito… o meu filho sabe que este é o país dele, porque quando chegamos aqui ele só tinha dois anos, então ele cresceu aqui. A primeira língua dele é o português, ele só sabe ler e escrever em português. Na escola anterior, não conseguiram integrar o meu filho, não respeitaram o meu filho, porque ele tem algumas dificuldades, infelizmente, e era o único aluno árabe na escola. Um dia, a diretora da escola fez uma reunião comigo para me contar que não conseguia aplicar o apoio que a médica tinha pedido para o meu filho.

Um rapaz disse ao meu filho: “vai para a tua terra”. Qual é a terra do meu filho? Qual é a nossa terra? Qual é o nosso país? Ele não sabe escrever árabe, o país dele é aqui. Infelizmente, isto dá-me mais medo e também não consegui a integração nesta sociedade, mas quando encontrei alguém para ajudar-nos, isso facilitou muito, claro.

A faculdade deixou-me pintar a primeira linha da minha história. É um espaço muito importante na minha vida!

Entraste na universidade, e mesmo com estas dificuldades todas, estás a fazer o curso de Serviço Social. Foi ao nível da Universidade Católica, que estás a frequentar, que depois tiveste mais apoio?

Sim. Eu consegui entender, saber que este apoio dava para mim, que aquele não dava, o que devo perguntar ou pedir sobre este apoio. Porque quando nós chegamos, nos primeiros 18 meses, dão-nos só coisas básicas, não nos dão sentimento humano. Mas quando entrei na faculdade, tinha ambiente com professoras e com a faculdade, deram-me apoio emocional, apoio humano.

Quando passei a ter alguém, fiquei mais calma, ‘ok, Daniah, calma, tudo bem, está tudo no caminho certo, tudo se vai resolver’. Mas antes eu pensava, não, tenho de fugir daqui porque não tenho nenhuma solução, ninguém a ajudar”. Mas a faculdade deixou-me, depois de três anos aqui, pintar a primeira linha da minha história, nesta vida. Então, a faculdade, sim, é um espaço muito importante na minha vida!

Já sonhavas ser assistente social?

Sim.

Então, Portugal ajuda a concretizar um sonho…

Sim. Na Síria não temos este curso, então queria ser psiquiatra ou psicóloga, qualquer coisa assim. Mas quando eu cheguei aqui, percebi que era isto mesmo.


E pensas exercer ou ser assistente social cá em Portugal, ou também é uma hipótese voltar à Síria? Como é que está isso dentro da tua cabeça e do teu coração?

Eu tenho agora esta capacidade de voltar para ajudar, porque as mulheres do meu país precisam mais - as mulheres portuguesas conhecem os direitos delas e aqui há leis que as protegem, mas no meu país não, não temos direitos das mulheres, não temos nada. Então, é preciso alguém para lhes dizer que têm esses direitos, lutar por esses direitos, para fazer o que se quiser, pensar, sonhar. Mas agora, depois do que aconteceu não, claro, não vou voltar. Porque agora Portugal é o meu país. Não tenho outro país para voltar.

Eu tenho memórias da guerra, sim. Ainda agora ouvi um avião a passar, muito perto, e é como um choque para mim

Eu ia perguntar isso, já pediste a nacionalidade portuguesa…

Sim, há um ano e meio…

Como é que vês a demora nos processos?

Com medo, muito medo, porque imagina sair alguma lei nova que diz: “desculpa, vais voltar para o teu país novamente”. O que vai acontecer? Eu fiquei dez anos fora do meu país, fora da minha família, o problema de eu ter fugido ainda existe. Ainda existe guerra, não há direitos humanos, ninguém respeita as mulheres. Se voltar não consigo ficar com o meu filho, porque eu sou separada, então, na lei da Síria, tiram-me automaticamente o meu filho. Claro não quero voltar, eu não consigo voltar.

E em Portugal, mesmo tendo o estatuto de refugiada, pensas que será mais fácil viveres com o teu filho?

Claro.

Teres uma profissão, seres mãe…

Sim, claro. Aqui tenho o direito de ficar com o meu filho, decidir a vida dele, tenho voz para dizer: “desculpa, eu sou mãe, eu vou decidir o que eu quero para o meu filho, o que é melhor para ele”. No meu país, tudo é sobre a paternidade, é tudo o pai que vai decidir, se não for o pai, o tio, ou o avô…as mulheres não têm poder, nem sobre os filhos.

Falavas-me ainda pouco dos motivos pelos quais saíste da Síria, um país em guerra, há muitos, muitos anos. Ainda tens memórias dessa guerra?

Sim, eu tenho memórias da guerra, sim. Ainda agora ouvi um avião a passar, muito perto, e é como um choque para mim, porque me assusta. Imagino que atire uma bomba ou que faça algo sobre a nossa cabeça, “oh meu Deus, vai fazer estragos na minha casa, vai cair em cima de nós”, algo assim. Então, infelizmente, sim. E quando passa um avião perto e tenho o meu filho comigo, estou sempre a fazer isto [gesto de tapar os ouvidos], para ele não ouvir. Não sei, não sei, a minha cabeça esquece-se totalmente que nós aqui vivemos com segurança, nesse momento não funciona. Só quero proteger o meu filho, que não haja nada, nós estamos muito bem aqui, mas na minha cabeça não, na minha cabeça é outro mundo totalmente diferente.

Se puderes contar um bocadinho aos ouvintes, como é que foi a decisão de sair da Síria?

Acho que é importante dizer que eu não só fugi da guerra, fugi com outra motivação também. Eu fugi porque o meu pai é muito, muito, muito homem do mundo árabe, queria controlar a minha vida toda. Se ele quiser tirar a minha vida, ele tem este direito, tudo bem, ninguém vai perguntar “porque é que tiraste a vida da tua filha?”. Então, para me proteger, foi melhor fugir. Quando eu tinha 18 anos, decidi fugir da minha casa e da minha família. Fui para a Turquia, eu fiquei lá e casei lá; depois nós decidimos ir para um sítio que nos respeitasse como pessoas, como humanos, porque na Turquia nós somos só números, ninguém nos respeita, ninguém nos quer a viver na Turquia, basicamente. Então, para nós era melhor procurar um país que nos respeitasse.

Portugal escolheu-me, não fui eu que o escolhi. Com sorte, porque nunca pensei que este país decidisse escolher esta menina, esta família.

Entretanto separaram-se. Mas Portugal já estava nos planos?

Não.

Surgiu nesse entretanto.

Sim, mais ou menos assim, sim. Porque, na verdade, ninguém sabe coisas, muitas coisas sobre Portugal. Eu só conhecia o Cristiano Ronaldo e acabou. Só esta informação, peço desculpa.

Percebemos…

Para mim, Portugal escolheu-me, não fui eu que o escolhi. Com sorte, porque nunca pensei que este país decidisse escolher esta menina, esta família. Eu estou aqui num caminho, certo? Eu tenho coisas básicas, mas tudo bem, consigo sonhar um futuro, construir minha vida. Eu consigo fazer isso aqui, mas no meu país não.

Também quero dizer, sobre como se olham os refugiados… quando eu viajei (recentemente) à Alemanha e a Espanha, eu não falei inglês, só falei português. Quando alguém perguntava “de onde és?”, eu disse sempre “sou portuguesa”. Tudo mudou. Eles sorriam, queriam ajudar, diziam “Portugal é muito bonito, nós vamos lá visitar”.

Antes eu dizia que era da Síria, e era tudo diferente. Se é da Síria é refugiada, se é refugiada é alguém que vale menos, ninguém quer ajudar. Este é o problema, sempre. Agora tenho sempre orgulho em dizer que sou portuguesa. Ainda não sou, mas digo sempre que sou portuguesa, não sou da Síria. Eu sei, ainda não falo português muito bem, mas sou de Portugal!

E em relação ao teu filho, como é que estão as coisas hoje? Já está mais integrado na escola onde anda? As coisas já melhoraram?

Sim, quando eu mudei de escola e ele passou a ter o apoio que a médica pediu, tudo mudou, graças a Deus: tem ambiente com uma boa pessoa, com um bom coração, muito aberto. Agora estamos mesmo no caminho certo, conseguimos sonhar também – o meu filho quer ser polícia no futuro, mas antes não havia nenhum sonho, queria só ficar em casa, dizia “eu não quero ir à escola, ninguém gosta de mim, ninguém quer apoiar-me”. Mas agora, graças a Deus, tudo mudou.

Daniah, falavas ainda há pouco do medo, quando perguntei sobre a nacionalidade. Imagino que também acompanhes a discussão que está a haver em Portugal sobre a nova lei dos estrangeiros. São mudanças que te preocupam?

Eu quero ser invisível, para que ninguém me diga “volta para o teu país, desculpa, vai demorar mais dois ou três anos”. Não, não, eu quero viver com paz e com calma. Graças a Deus, Portugal tem essas coisas.

Em 2023, foste uma das jovens que pôde cumprimentar o Papa durante a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.

Sim.

Como é que foi viver esse momento?

Naquele momento não conseguia acreditar no que estava a acontecer, de verdade. “Oh meu Deus, como assim?”. Também vi o presidente Marcelo… no meu país, não temos o direito de ver estas pessoas, elas não estão perto da população. Queria falar com ele, dizer-lhe alguma coisa, sim. Foi muito importante para mim, muito importante. Senti que tinha outro valor.

A Igreja Católica, as instituições da Igreja, têm lutado muito pelos imigrantes e pelos refugiados. Como é que vês esse papel, também aqui em Portugal?

Eu sou muito grata, porque na verdade os muçulmanos não querem fazer nada por alguém de outra religião, não vão fazer o que os cristãos fazem por nós. Eu sou muito grata, por tudo, porque olharam só para a nossa alma, olharam para nós como humanos, não como pessoas de uma religião, muçulmanos ou não.

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