20 mar, 2025 - 17:32 • José Pedro Frazão
O forte domínio do inglês, a que não é alheia a sua passagem pelo Reino Unido, transformaram naturalmente Lesia Vasylenko num rosto internacional do Parlamento ucraniano. Eleita em 2019 pelo partido Holos (“Voz”, em ucraniano) é membro da delegação permanente da Ucrânia na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e na União Interparlamentar. Em entrevista à Renascença, registada no centro de Kiev, a deputada defende que ao cessar-fogo deve suceder a imediata saída das tropas russas dos territórios ucranianos ocupados.
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O Parlamento aprovou uma resolução sobre as eleições. Sabendo que as eleições são ilegais ao abrigo da lei marcial, porque é que decidiram redigir esta resolução?
Na verdade, a resolução era sobre o fortalecimento dos processos democráticos na Ucrânia. Não se tratava tanto de eleições. Ela afirma que a Ucrânia está dedicada ao seu caminho democrático, mas que num momento em que temos lei marcial, as eleições não são possíveis.
Mas têm a constituição para esse efeito, não precisam de uma resolução para isso. E em segundo lugar, o Parlamento defende que deve haver paz antes de qualquer tipo de eleições. Para efeitos de paz, consideram o cessar-fogo ou apenas um grande e abrangente acordo com ambas as partes?
Sim, temos uma constituição e uma lei sobre as eleições, que é muito clara: em estado de guerra, durante a lei marcial ativa, a Ucrânia não pode ter eleições.
Na verdade, esta regulamentação não é apenas típica da Ucrânia, mas de qualquer país. A maioria dos países tem essas disposições nas suas leis básicas e nas suas constituições.
No entanto, devido ao momento e à arena internacional, quando alguns dos nossos parceiros começaram a perguntar porque é que não há eleições na Ucrânia, nós, como parlamentares, decidimos deixar isso claro aprovando não uma lei, mas uma resolução, que é basicamente uma declaração política sustentando exatamente o que está aqui a acontecer.
Quanto à segunda parte da sua questão, haver um cessar-fogo, depois uma eleição e só depois assinar um acordo de paz, é um formato completamente inaceitável para a Ucrânia.
Precisamos, claro, de um cessar-fogo. Este é um ponto do plano de paz do Presidente Zelensky, sobre o qual ele tem falado inúmeras vezes com muitos líderes mundiais. Um cessar-fogo é um ponto importante do processo, mas o segundo ponto é a desocupação do território ucraniano pela Rússia, a retirada das tropas russas que atualmente controlam o território ucraniano. E depois poderemos sentar-nos e discutir todos os tipos de acordos de paz.
Haver um cessar-fogo, seguido de eleições pressuporia outro acontecimento muito importante entre os dois eventos, que seria o levantamento da lei marcial.
Se a lei marcial for levantada, as fronteiras da Ucrânia ficarão abertas. Isto significa que o país fica significativamente enfraquecido em termos de defesa e segurança. E isto também significa que a Rússia tem acesso para interferir fortemente nas eleições ucranianas.
Não podemos ter isso. Não podemos aceitar isso. Os dois cenários que se desenvolveriam a partir de então significariam uma completa eliminação da Ucrânia da face da Terra.
Portanto, no cenário de um cessar-fogo, lei marcial suspensa, realização de eleições com o aparecimento de um candidato russo, imagine que um partido pró-russo vence na Ucrânia. Como seria um acordo de paz? Seria entregar toda a Ucrânia à Rússia, tornando-a vassala dos russos, parte do império russo. Seria uma vitória para a Rússia.
Numa segunda opção, no cenário de um cessar-fogo, ambas as partes respeitam o cessar-fogo, a lei marcial é suspensa, as fronteiras são abertas, as eleições realizam-se, o candidato ucraniano ganha.
Imagine que o candidato ucraniano não concorda com um acordo de paz em que sejam entregues territórios ucranianos ou em que haja concessões significativas à Rússia que signifiquem essencialmente a ‘russificação’ da Ucrânia. Putin não concordaria com este acordo. O que aconteceria depois?
A luta recomeçaria, mas num formato totalmente diferente para a Ucrânia, que estaria muito pior. Muitos dos nossos recursos humanos de combate teriam partido, porque, recordo, a lei marcial teria sido suspensa, logo as fronteiras estariam abertas.
As sanções seriam provavelmente levantadas pelos países parceiros. Seria provavelmente mais difícil mobilizar esforços de apoio à defesa e à segurança. E mais importante, a Rússia teria a hipótese de se reagrupar, reorganizar-se e reforçar a sua capacidade militar para lançar outro ataque total à Ucrânia.
Qual é a vossa proposta alternativa?
A nossa alternativa é pública há mais de um ano com o plano de paz do Presidente Zelensky. Nós somos as vítimas, estamos sempre a lembrar isso.
Não gosto da palavra vítima, é um sinal de fraqueza. Mas o caso é este, a Ucrânia é vítima da agressão da Rússia. A Rússia é o Estado agressor.
Aqueles que se autointitulam Estados parceiros - da União Europeia, de fora da UE, do outro lado do Atlântico, de África, da Ásia, o que quer que seja - são também Estados parceiros da democracia, dos direitos humanos, da ordem mundial internacional que foi estabelecida após a Segunda Guerra Mundial.
E é do nosso interesse, ucraniano e global, manter esta ordem mundial, que permite aos países coexistirem como vizinhos pacíficos, como Estados independentes, soberanos e pacíficos.
É do nosso interesse geral, neste caso, lutar contra a agressão de um crime internacional e proteger a vítima, para garantir que o crime é travado e que não há mais crimes como estes a acontecer.
O plano para o fazer está estabelecido no plano de paz do Presidente Zelensky.
Mas este plano de paz fala sobre a saída do exército russo do Donbass, das zonas ocupadas. Só poderia haver um acordo de paz apenas nesta condição de todos os militares russos saírem deste Donbass controlado pela Rússia neste momento? Essa é a única opção ou existe a opção de tolerar essa presença aí?
Tolerar essa presença ali é uma ‘bomba-relógio’ que vai explodir nos próximos anos, talvez décadas.
Não estou a dizer isto por causa da teoria, mas devido à prática. Em 2014, a Rússia iniciou a sua guerra contra a Ucrânia. O que aconteceu em 2022 é apenas uma escalada e uma continuação da agressão russa, que foi fixada no mês de fevereiro de 2014.
Em fevereiro de 2015, foi assinado um segundo acordo de Minsk, apelando a um cessar-fogo. Mas essencialmente isto significou que o conflito ficou ‘congelado’ exatamente em redor da região de Donetsk e Luhansk - a área chamada Donbass - e em redor da Crimeia. O resto do país na Ucrânia seguia com a sua vida normal.
Em 2022, a Rússia escalou o conflito e era apenas uma questão de tempo até que a Rússia intensificasse esta situação. Desde 2015 que a Rússia não respeita um cessar-fogo por um único dia.
E um acordo de paz, que volte a ‘congelar’ a situação, não é aceitável para a Ucrânia?
Não, porque isso vai reiniciar de novo uma guerra, daqui a alguns anos, daqui a alguns meses. É provável que a Rússia exija que este ‘congelamento’ aconteça. A Rússia exigirá que a Ucrânia desmobilize o seu exército, que talvez reduzamos o número de unidades militares que temos. Isto é também inaceitável para a Ucrânia. Precisamos de algum tipo de garantia de segurança.
Como podem forçar os russos a sair do Donbass?
É exatamente esse o ponto. A Ucrânia precisa de um exército forte, apoiado por exércitos fortes e de uma capacidade reforçada de defesa e segurança de todos os nossos parceiros, especialmente europeus.
Os países da UE, tal como os que não são membros da UE, - alguns dos países nórdicos e o Reino Unido - também precisam agora mesmo de repensar imediatamente os seus orçamentos de defesa e de segurança.
Mas defendem que não haverá acordo de paz sem que estas forças da Rússia se retirem desta área.
Isso é muito claro. Esta é a posição preferida pela Ucrânia e pelo resto do mundo, se quisermos olhar para o longo prazo e para a paz justa.
A justiça é também um ponto-chave aqui. É a garantia de que a guerra não recomeçará. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi a razão pela qual fomos capazes de desfrutar de um período relativamente longo sem conflitos completamente globais, onde todos os países estariam envolvidos. Claro, houve algumas guerras regionais, mas não desta escala, porque a guerra que a Rússia está a travar contra a Ucrânia afeta toda a gente. Afeta países africanos, asiáticos, os preços globais dos alimentos e da energia. A forma como isto afeta a Europa representa uma escala totalmente diferente.
Estamos literalmente a constatar que neste momento temos aqui um conflito de efeito global. Por essa razão precisamos de uma paz justa e de longo prazo.
Na Segunda Guerra Mundial, não só os Aliados venceram, como as potências do Eixo, como a Alemanha ou o Japão, pediram desculpa pelo que fizeram. E pagaram um preço.
O pedido de desculpas faz parte do acordo de paz?
Deixe-me terminar o pensamento. Estes países pediram desculpas, pagaram um preço e, na sua sociedade, há um conhecimento profundo, transmitido de geração em geração, de que algo de errado foi cometido. É por isso que as guerras não recomeçaram.
Estes países tornaram-se os guardiões seguros das convenções e da Carta da ONU, cuja base é prevenir guerras, prevenir agressões, impedir qualquer tipo de comportamento agressivo de um país em relação a outro.
Ora, é muito improvável que a Rússia o faça. E se isso acontecer, sobretudo se conseguirem manter alguns territórios, haverá sempre tensões nesta região.
Não aceitariam que a Rússia ficasse com algum território?
Pessoalmente, não aceito. Compreendo que é um enorme sacrifício que o nosso país teve de fazer nos últimos 11 anos - e não 3 anos - neste século XXI. Mas a Ucrânia luta contra a Rússia há centenas de anos.
A Crimeia é diferente da região do Donbass?
Não é diferente. É a fronteira internacionalmente reconhecida da Ucrânia. Em 1991, quando a União Soviética se desintegrou, a Rússia reconheceu as fronteiras de todos os Estados-membros.
E depois a Rússia violou essa fronteira na primeira oportunidade, quando teve suficiente força política, peso internacional, força militar. Quebraram a sua própria promessa, o seu próprio acordo.
Em 1998, a Rússia foi também cossignatária do Memorando de Budapeste. Como a Ucrânia desistiu das suas armas nucleares, a Rússia disse: nós vamos garantir a segurança. E o acordo foi quebrado.
Qual poderá ser o formato do cessar-fogo? Já existiram linhas de contacto. Houve muitas violações de ambos os lados. Esta zona-tampão será controlada por tropas europeias de manutenção da paz? É isso que propõem?
É o que foi proposto pela França, pelo Reino Unido. Mas, ao mesmo tempo, estes são apenas dois países que ofereceram algumas das suas tropas para estarem presentes na Ucrânia.
Em que linhas, em que territórios, onde, como e em que tipo de formatos? qual será o mandato destas tropas de manutenção da paz? Nada disto está claro.
Além disso, a situação e o estado das forças de defesa e segurança em toda a Europa são muito maus. Não há capacidade, por exemplo, para o Reino Unido enviar para cá 30.000 homens e mulheres.
Não têm fardas, não têm capacetes. A Ucrânia não é o Reino Unido. Aqui temos um inverno com temperaturas negativas. Nas áreas onde decorrem combates, a temperatura desce para -15. Têm os uniformes adequados?
E qual é a estimativa das forças de manutenção da paz para isso?
Não sou especialista militar. Posso falar sobre relações internacionais ou direito internacional, tem de falar com os militares. O que posso dizer é que esta é a nossa mais longa fronteira.
E mesmo a Ucrânia, com a sua capacidade de centenas de milhares de soldados - não quero entrar em números exatos - é incapaz de cobrir toda a extensão da fronteira.
Refere-se apenas a forças de paz europeias ou exclui a participação dos americanos?
Acho que é uma pergunta difícil de responder neste momento. Seria preferível, naturalmente, que existisse um contingente totalmente internacional na Ucrânia e que existissem tropas de diferentes países no local.
Mas duvido que haja qualquer hipótese de os americanos enviarem tropas para o terreno.
Diria que os americanos são ‘menos amigos’ da Ucrânia face há seis meses?
Há seis meses, chamávamos-lhes o nosso principal parceiro estratégico. Neste momento, diria que são o parceiro menos confiável. Tal como nas cartas, quando se tem um joker pode ir para qualquer lado e assumir qualquer tipo de papel.
Não são um aliado fiável?
Não são, porque não sabemos o que esperar deles. É importante que a Ucrânia tenha uma ideia clara sobre isso.
Mesmo que, por exemplo, a estratégia do Presidente Trump seja dizer o que quer que tenha para dizer e colocar Putin numa sala e falar com ele, abrindo espaço para o diálogo, nós, na Ucrânia, gostaríamos de, pelo menos, compreender que ele tem os melhores interesses da Ucrânia em mente.
A Comissão Europeia esteve em Kiev a 24 de Fevereiro. Fizeram alguns anúncios sobre o sector nuclear e estão a preparar planos de defesa. Acha que a Europa poderia fazer mais?
Poderia fazer mais no domínio dos ativos congelados. A Ucrânia precisa de fazer uso do conjunto de ativos russos congelados em bancos europeus.
Os EUA retiraram a ajuda, pelo que cabe agora à UE intervir. Não pedimos isso aos contribuintes dos países europeus. Não deveriam ter de pagar, mas sim o agressor. Há muito dinheiro do país agressor por toda a Europa. Estamos a pedir para fazer uso do conjunto de ativos congelados. Isto é o principal que a UE pode fazer por nós.
Em segundo lugar, a UE precisa de levar a defesa e a segurança a sério. Os países dentro e fora da UE precisam de se unir numa coligação europeia, que incluiria a Ucrânia. Chamem-lhe coligação anti Putin, anti-imperialista, ou o que quiserem, mas precisamos de nos unir.
Precisamos de encontrar uma forma de integrar todos os sistemas militares, não apenas através da NATO, mas através de um sistema que inclua também a Ucrânia. A NATO teria a preferência da Ucrânia, por isso pressionamos para obtermos o estatuto de membro da NATO e também da UE.
Compreendemos que possa haver problemas com a NATO, mas é necessário haver uma coligação europeia mais ampla. Sabemos que o Presidente Trump defende que os países europeus precisam de aumentar as suas contribuições para a NATO e os seus orçamentos militares.
O eventual enfraquecimento da NATO a partir da posição americana não é uma ameaça para a Ucrânia?
É claro que sim. Por isso é necessário haver uma frente unida na Europa que leve a defesa e a segurança muito a sério, que aumente essas despesas orçamentais, que tenha a capacidade de integrar unidades militares com a Ucrânia, e que também comece a desenvolver a nova era da guerra, que é a tecnologia militar.
As guerras de hoje são intensas nas trincheiras, mas estas estão também a lançar drones. As granadas estão a ser transportadas por drones. Não existe nenhum país na Europa com este tipo de tecnologia militar?
Regressando ao tema inicial, é possível haver eleições em outubro? Muitos analistas falam deste mês. Porquê?
Todos os anos é a mesma coisa. Quando se analisa a constituição da Ucrânia, geralmente as eleições realizam-se em outubro. Esta é a data normal para as eleições parlamentares, e março é o período normal para as eleições presidenciais. Por isso continuamos a ouvir falar em outubro e março. Ouvimos isso todo o ano.
Há alguma ação a ser tomada sobre a preparação destas eleições?
Nem mais nem menos do que no ano passado.
Nem no plano da logística?
Há alguns movimentos muito fracos, que as pessoas estão a analisar. Nem mais, nem menos do que no ano passado.
Como vê o papel que neste momento está a ser desempenhado por outros possíveis candidatos presidenciais? Porque não estão a dizer nada no momento.
Voltando à sua questão anterior, é por isso que penso que não há tanta preparação para as eleições. Não vemos candidatos, não vemos novos partidos políticos a serem formados.
Com certeza que existem.
Bem, existem, porque foram medidos em inquéritos. Mas não é a mesma coisa do que as pessoas assumirem que estão a fazer campanha. Ainda não chegámos lá. Acho que algo está a acontecer, tem razão, e provavelmente os seus instintos estão a dizer-lhe que deve investigar mais.
As pessoas estão a começar a pensar nessa direção. Mas não diria que já começaram a mexer-se.