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Entrevista a Miguel Baumgartner

Motor da Europa em modo "economia de guerra". Como vai ser a Alemanha de Merz?

11 abr, 2025 - 23:29 • José Pedro Frazão

Em entrevista à Renascença, o analista luso-alemão Miguel Baumgartner explica que o novo chanceler tem um plano com um impacto mais forte que a própria reunificação alemã. Uma "revolução" económica e uma "economia de guerra" com forte investimento em defesa e infraestruturas e uma viragem – mais dura e extremada – face às históricas políticas migratórias de Merkel.

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São mais de 140 páginas que demoraram seis semanas a fechar entre os dois principais partidos alemães, CDU e SPD. Um acordo para uma coligação que salva a Alemanha da chegada da extrema-direita ao poder, apesar de, poucas semanas depois das eleições de fevereiro, a Alternativa para a Alemanha (AfD) já liderar as sondagens.

Em entrevista à Renascença, o analista luso-alemão Miguel Baumgartner fala sobre o plano do novo chanceler, Friedrich Merz, para reanimar a economia da Alemanha, com forte investimento em defesa e infraestruturas, e nas medidas com mais restrições à imigração, para tentar travar o avanço da extrema-direita.

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O que lhe parece mais relevante no programa da coligação CDU/SPD neste tempo desafiante para a Alemanha?

Antes mesmo de discutir as políticas apresentadas no acordo de Governo, é importante desde logo analisar os ministros escolhidos. Lars Klingbeil, co-líder do SPD, não era a primeira escolha de Friedrich Merz para as Finanças, que queria um ministro mais liberal, porque prometeu durante a campanha um investimento brutal na economia alemã, cuja necessidade é imperativa. Foi também por essa razão que, antes do último Parlamento encerrar e este novo Parlamento tomar posse, houve uma votação da alteração da cláusula constitucional que impedia um investimento maior na economia.

Este é um Governo forte, mas espero que ao longo da sua existência consiga entender-se porque Merz queria alguém muito próximo de si e diferente de Klingbeil como ministro das Finanças, mas estava convencido de que até dia 20 de abril conseguiria negociar este ponto.

Mas os acontecimentos, nomeadamente a guerra de tarifas entre os Estados Unidos e a Europa e os problemas nos mercados, levaram a que várias empresas e a indústria automóvel tenham entrado em contato com o Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, a defender a importância de um "gesto público" pela CDU e pelo SPD a apontar para conversações em torno de uma estrutura de Governo, com nomes incluídos. É importante relevar que foi o Presidente que obrigou a que a coligação fechasse o acordo o quanto antes, como um gesto político para acalmar os mercados, a população em geral e os empresários.

"Merz quer uma 'economia de guerra' que acabe por puxar os outros países europeus"

Parece-me também extremamente importante sublinhar que o possível ministro dos Negócios Estrangeiros, Johann Wadephul, é alguém muito influente na CDU, grande defensor de uma postura firme face à Rússia e, ao mesmo tempo, próximo do espírito atlântico. Portanto, quer cooperar com os Estados Unidos, quer fortalecer a NATO e é uma das pessoas que apoiam uma política europeia comum de defesa, ainda que próxima da NATO.

O putativo ministro do Interior, Alexander Dobrindt, é outro nome importante, que reforça o que considero ser um governo de combate, porque é isso que a Alemanha precisa. O ministro do Interior é uma personalidade "o mais à direita possível" entre as pessoas que Merz poderia ter escolhido. É da ala mais conservadora, conhecido pelas suas posições duras em temas como a imigração, a segurança interna e mesmo a identidade cultural. E sempre foi um crítico das políticas migratórias do SPD. Este nome muito forte foi ali colocado também para travar a subida da extrema-direita.

Boris Pistorius, do SPD, continuará como ministro da Defesa. Friedrich Merz já tinha dito que queria contar com ele e falava-se até na última semana em Berlim da possibilidade de Pistorius ser o vice-chanceler, o que não aconteceu.

E depois, para tentar dar a mão aos mais jovens, foi escolhida Dorothee Bär como ministra da Educação. É uma das vozes mais jovens e modernas da CDU-CSU, e tem um foco particular em novas tecnologias, inovação, administração pública, mas vem trazer mesmo um toque de juventude. Houve a necessidade de que estes três ou quatro primeiros nomes fossem ministros "de combate" para os grandes desafios que a Alemanha vai enfrentar.

Vamos então às políticas. Há aqui um forte impulso económico. Podemos chamar-lhe uma autêntica "resposta de guerra" por parte da Alemanha no contexto atual?

Sim. Friedrich Merz e Angela Merkel são os dois delfins de Helmut Kohl. Ela conquistou o partido primeiro e, portanto, ele retirou-se e deixou-a governar e nunca lhe fez um ataque interno. Mas Merz voltou com dois pontos importantes marcados no seu discurso, que é dar um impulso brutal em termos económicos na Alemanha e tornar a Alemanha no grande motor da Europa.

Merz quer que a Europa não dependa mais economicamente do exterior. Quer mesmo fazer uma economia que acabe por puxar os outros países europeus. Uma "economia de guerra" porque ele quer que a Alemanha, pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, tenha capacidade militar. Isto não vai acontecer num ano nem em dois. Espera-se que dure por um período de 10 a 15 anos.

Merz quer ter duas coisas nos próximos três anos. Defende um número mínimo de soldados que não sejam voluntários, mas sim contratados, profissionais. E pretende reindustrializar a área militar, o que antigamente era sempre visto como algo negativo.

Quer "arrasar" a história ou retirar a era de Merkel da história. Foi uma era de estabilidade, mas em que a Alemanha estagnou económica e socialmente. Merz quer fazer aqui uma revolução. Faz lembrar a revolução económica e social que Margaret Thatcher trouxe ao Reino Unido, no final da década de 70. Diria mesmo que, depois da II Guerra Mundial e da reconstrução, nem a unificação da Alemanha terá sido tão forte quanto aquilo que é a ideia de Friedrich Merz para a Alemanha.

Acredito que, se ele conseguir conter alguns impulsos mais à esquerda do SPD, e se os primeiros 100 dias correrem bem, ele vai reconquistar o eleitorado e que as sondagens vão começar a ser mais positivas.

Há ainda dois pontos essenciais. Trata-se da questão do salário mínimo, que o SPD considerou condição "sine qua non" para entrar; e da não subida dos impostos. O SPD incluiu no acordo que os subsídios - quer de desemprego, quer de integração social - não poderiam sofrer cortes e deveriam ser aumentados. Isto é normal para partidos de centro-esquerda, de política mais subsidiária e muito menos liberal, face aquilo que será a política de Friedrich Merz.

Uma das medidas centrais é o levantamento do chamado "travão da dívida". Basta colocar isto no programa ou terá obstáculos ainda pelo caminho?

Vai ter obstáculos. Passou no Bundestag [câmara baixa do Parlamento] e depois no Bundesrat [câmara alta ou o Senado]. O Governo Federal pode utilizar esse aumento de endividamento, dentro do Orçamento do Estado. Mas a Alemanha é um Estado Federal e os estados têm de incorporar isso também nas suas Constituições.

Isto representou uma agitação nas últimas semanas em Berlim. Como Friedrich Merz "desapareceu" e durante uma semana e meia ninguém o viu ou ouviu, os presidentes dos governos regionais não sabem muito bem como é que vão incorporar isso nas suas Constituições. Na maioria dos estados não existe uma maioria, o que significa que ou a AfD [Alternativa para a Alemanha] se abstém ou vota a favor.

Como a AfD é totalmente contra esta alteração da Constituição, não quer o rearmamento nem defende uma postura quase ofensiva contra a Rússia, vai ser muito complicado integrar esta disposição nas Constituições estaduais. Este é o grande desafio.

Existe uma possibilidade de o chanceler autorizar alguns aumentos "ad hoc" e isto vai ser assim em alguns estados onde seja necessário, embora nunca nos valores que estariam disponíveis se fizessem essa integração na Constituição estadual.

Outra questão crucial passa pela fração de dinheiro público que vai ser injetado. A Alemanha vai abrir os cordões à bolsa e também em regime público-privado.

E não se trata apenas da defesa, mas das infraestruturas. Pontes, caminhos de ferro, estradas, hospitais, serviços públicos que são também essenciais numa economia de guerra. O investimento pode chegar até aos 10%. A ideia é fazer uma parceria com as maiores empresas e com alguns bancos alemães, em que parte seria dada pelo Estado e a outra parte seria quase um empréstimo da sociedade civil, para que, efetivamente, a juros especiais, o Estado não tenha de desembolsar tudo de uma forma imediata.

A indústria automóvel já deu o sinal de que essa parceria é para fazer. A BMW foi a primeira empresa a dizer que teria todo o interesse em reativar algumas fábricas no sul de Munique, para começar a montar novos motores em camiões militares.

Outra empresa extremamente importante da área tecnológica, a Siemens, também veio dizer que estaria disposta a entrar nessa parceria público-privada. Não existe ainda o desenho da medida, é algo que o próximo ministro das Finanças e o chanceler vão ter ainda de apresentar. E este também foi um problema que levou à ultrapassagem da CDU-CSU pela AfD nas sondagens.

Não foi realmente explicado às pessoas de onde vem todo o dinheiro, como é que vai ser utilizado, em que circunstâncias, e em que tempo; se vai ser utilizado todo, em um, dois ou três anos, ou se será, efetivamente, numa década ou década e meia.

Esta quinta-feira, a imprensa alemã noticiava que o comissário europeu do Comércio esteve reunido com o ministro do Comércio chinês, e, em cima da mesa, estão as negociações para a abolição das tarifas europeias à importação de carros elétricos chineses. E agora, o que vai acontecer à indústria automóvel alemã?

Essa notícia que caiu que nem uma bomba no sul da Alemanha. Os carros elétricos alemães têm sofrido algumas barreiras em algumas partes da Europa, nomeadamente pelo facto de que os carros chineses hoje são muito mais baratos. Há cerca de quatro meses na Alemanha, um anúncio publicitário de uma empresa chinesa dizia que por 15 mil euros poderia trazer o seu carro elétrico da China, já com impostos incluídos, quando hoje, por exemplo, um carro fabricado pela BMW ou mesmo pela Volkswagen, ronda sempre os 40 a 45 mil euros.

Durante a campanha, Friedrich Merz quis sempre diminuir a opção pelos carros elétricos como uma solução. Durante a campanha foi ventilado que a orientação que Olaf Scholz deu durante muito tempo para a diminuição da produção de motores de combustão a partir de 2035 e 2036 seria alterada.

Para as empresas montadoras de automóveis, a notícia caiu como uma maravilha, porque ganham muito mais dinheiro na produção de carros a diesel. Creio que, com esta ideia de economia de guerra, o carro elétrico vai perder um pouco o élan que estava a sofrer.

Por outro lado, uma das primeiras medidas que Friedrich Merz vai tentar conseguir na Europa é a criação de algumas barreiras de proteção, não só à indústria automóvel chinesa, mas também a sul-coreana - que na Alemanha, aliás, tem um peso muito maior do que a chinesa, nomeadamente pela Hyundai, que tem uma fatia de mercado muito grande, e sempre muito criticada durante as campanhas pelos presidentes das empresas automobilísticas.

Esta questão das tarifas representaria uma oportunidade para a indústria automóvel alemã?

Claro que sim. As empresas automobilísticas contactaram de um modo mais formal ou informal o Presidente alemão, muito preocupadas com o mercado americano, que consome muitos carros alemães. Mas, ao mesmo tempo, estas tarifas aplicadas à China poderiam surgir aqui como um élan para que, enquanto os Estados Unidos aplicam estas tarifas à China, negociar de uma forma a que comprem à indústria alemã.

Mas há um outro problema. Infelizmente a Europa, não só a Alemanha, deixou a terceiros alguma produção tecnológica para o fabrico dos automóveis. E hoje acontece que há inúmeros chips e outras peças tecnológicas que são produzidos na China e, sem elas, os carros alemães não conseguem funcionar.

Na questão da defesa, há uma intensificação da aposta, até com a proposta de um serviço militar voluntário. Fica definitivamente para trás tudo aquilo que aprendemos sobre a Alemanha pós-guerra?

Sim, completamente. Durante a campanha, Merz disse que a Alemanha, 80 anos depois, teria que deixar para trás tudo o que se tinha aprendido sobre a Alemanha, sobre a questão militar, até sobre a "desnazificação" que foi feita depois. Este discurso até foi muito próximo do discurso de Elon Musk e na altura foi criticado, bem no início da campanha.

Ele deixou isto bem vincado. E nós na Europa vamos ver isto mesmo. Vai ser uma Alemanha a apostar na sua capacidade militar, não só comprando aos Estados Unidos ou à Turquia, onde a Alemanha compra grande parte do seu material militar, mas principalmente produzindo. Obviamente que não dá para fazer uma analogia, mas vamos voltar aos anos 30, quando a industrialização militar alemã sofreu uma intervenção enorme e ‘explodiu’ completamente.

Só há um problema: o jovem alemão não está disponível para fazer o serviço militar obrigatório e, portanto, a solução vai ser profissionalizar o Exército, a Marinha e a Força Aérea.

O que se tem visto nas sondagens e mesmo em alguns debates na televisão, é que os jovens querem proteção e segurança, acham muito bem que se deva combater a Rússia e que a invasão da Ucrânia não é aceitável, mas depois não estão disponíveis para pegarem em armas.

"Vamos ver uma Alemanha, talvez, mais próxima de algumas políticas que ouvimos serem defendidas por André Ventura"

Por fim, na questão das migrações, Merz afasta-se do legado que Merkel deixou numa altura muito crítica do debate migratório na Europa. A Alemanha vai passar a alinhar na União Europeia, por exemplo, com as posições mais duras anti-imigração de outros parceiros europeus, como a Hungria?

Sim. Essa foi uma grande discussão e era algo que também estava a atrasar o acordo da coligação. Mas vamos ver políticas muito fortes na questão da imigração. Vou-lhe dar um exemplo. Qualquer imigrante que viesse para a Alemanha, ao final de três anos, mesmo não tendo grande capacidade de falar alemão, poderia pedir a nacionalidade alemã. Esses três anos passaram a ser cinco anos e existe a obrigatoriedade de que a pessoa seja fluente.

Outra situação que já acontece em alguns países europeus, nomeadamente em Portugal, é os vistos não serem dados à entrada, mas nos consulados alemães dos países de origem. Toda a gente não documentada que quer entrar será deportada e todos os processos de pedido de asilo político serão analisados. A ideia é que sejam analisados em não mais do que 90 dias para que seja dada uma resposta.

A Alemanha retirou do seu programa de Governo a construção de centros de detenção e falava-se que poderia inclusive construí-los em países terceiro, embora não acredito que seja verdade.

Uma das coisas que Merz quer fazer é fortalecer o controlo fronteiriço. Não se sabe ainda muito bem como acontecerá, porque neste momento a fronteira terrestre existe nalguns pontos na Alemanha e é também aeroportuária.

Vamos ver uma Alemanha, talvez, muito mais próxima daquilo que são algumas políticas que, por exemplo, ouvimos cá em Portugal a serem defendidas por André Ventura.

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