12 jun, 2025 - 07:00 • Pedro Mesquita
Quarenta anos após a assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), Durão Barroso recorda, em entrevista à Renascença, o "antes e depois" da abertura de Portugal à Europa, para concluir que "foi uma das datas mais importantes da história de Portugal no século XX".
A 12 de junho de 1985, Barroso ainda não tinha exercido funções governativas e estava longe de sonhar que viria a ser, um dia, presidente da Comissão Europeia.
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Mas há datas que ficam para sempre na memória: "Com certeza que recordo muito bem. As pessoas às vezes esquecem, mas Portugal estava muito, muito atrasado. Por exemplo, em questões de saneamento básico. A minha família vem de Trás-os-Montes. A maior parte das casas da nossa região não tinha, por exemplo, água canalizada".
Quarenta anos depois, o antigo primeiro-ministro sublinha que, em alguns aspetos, este é hoje "um país irreconhecível para melhor, quando comparado ao Portugal anterior à adesão à Comunidade Europeia".
Portugal mudou muito nas últimas quatro décadas, admite Durão Barroso, mas poderia ter crescido mais no plano económico. Desde logo, porque há reformas estruturais que continuam por fazer.
"Deve-se a questões de política interna ou de falta de políticas públicas, falta de vontade das reformas. Tem havido instabilidade, muitas vezes, no nosso país ou então governos minoritários que não têm o necessário apoio para promover essas reformas", analisa.
Como viveu este dia há 40 anos, quando Portugal aderiu formalmente à CEE, a atual União Europeia?
Vivi esse momento com grande alegria, com grande esperança. Eu não estava ainda no Governo, viria a estar pouco tempo depois, aliás nos 10 anos dos governos do professor Cavaco Silva. Mas nessa altura, não estando no Governo, acompanhei com intensidade esse momento e, aliás, eu já acompanhava muito as questões europeias porque tinha feito depois da minha licenciatura em Direito em Lisboa, tinha ido lá para fora para estudar questões de Ciência Pública e questões europeias, precisamente. E, portanto, esse dia foi muito importante para mim, pessoalmente, mas eu diria que para todos nós. Acho, aliás, que se pode dizer que a data da nossa assinatura ou da nossa adesão à Comunidade Europeia foi uma das datas, seguramente, mais importantes da história de Portugal no século XX.
Recorda-se bem do tecido social de Portugal naquela altura?
Com certeza que recordo muito bem. As pessoas às vezes esquecem, mas Portugal estava muito, muito atrasado. Por exemplo, em questões de saneamento básico. A minha família vem de Trás-os-Montes e a maior parte das casas da nossa região não tinha, por exemplo, água canalizada.
Uma das grandes vantagens da nossa adesão à União Europeia foi o investimento em infraestruturas, não só as autoestradas - que às vezes as pessoas até criticam - mas estruturas fundamentais para a saúde pública, como são as estruturas de saneamento básico ou tudo o que foi infraestruturas de educação, por exemplo.
Posso dizer que, graças em grande parte à Comunidade Europeia, Portugal avançou muito no aspeto económico e, sobretudo, no desenvolvimento social e no espeto cultural, e é hoje um país muito mais moderno, em alguns aspetos é um país irreconhecível para melhor, quando comparado ao Portugal anterior à adesão à Comunidade Europeia.
"Portugal estava muito atrasado. É hoje um país irreconhecível para melhor"
Portugal foi, nos primeiros anos, como dizia o professor Cavaco Silva, um bom aluno de Europa. Teve essa evolução que assinala mas, nos últimos anos, foi ultrapassado pela direita pelos países de Leste, no plano económico. Como é que se explica isso? É a falta de reformas que são continuamente adiadas?
A minha opinião é exatamente essa. Deve-se a questões de política interna ou de falta de políticas públicas, falta de vontade das reformas. Tem havido instabilidade, muitas vezes, no nosso país ou então governos minoritários que não têm o necessário apoio para promover essas reformas. A verdade é que a responsabilidade disso não está na União Europeia, porque com a mesma União Europeia outros países, como disse e bem, países da Europa Central e de Leste, na sua maioria, têm vindo a ultrapassar-nos, ainda que haja alguns que ainda estão atrás de nós.
Mas, com as mesmas políticas europeias, há alguns países que estão a fazer mais e há outros países que estão a fazer menos. Portugal, de facto, nos últimos anos, embora continuando a crescer, com aqueles problemas que houve da crise financeira e soberana, que é um problema que nos afetou imenso, tivemos praticamente numa situação de falência ou de insolvência quase total. Mesmo depois disso, há países que estão a crescer mais do que Portugal, o que mostra que há questões internas que devemos analisar. Mas graças à União Europeia, apesar de tudo, foi possível ter um progresso económico e social que de outra maneira não teríamos obtido.
"Falta de vontade das reformas" e "governos minoritários" travam economia portuguesa
Portugal nos últimos anos não aproveitou essa aceleração da União Europeia e a Europa agora, por força do contexto internacional, está a perder relevância no contexto geopolítico mundial. Como é que Portugal pode ser afetado por isto?
Eu não diria que estamos a perder relevância. Eu acho que a Europa continua muito relevante. O que se passa é que há problemas que levam a que os países que podem decidir mais rapidamente, que são países, não são uniões de países. Nós somos 27 países na União Europeia. Por definição, por natureza, é mais difícil reagir a certos problemas. Em temos da competição global entre Estados Unidos e China, e a agressão da Rússia contra a Ucrânia, mas a verdade é que ninguém está a resolver esses problemas. Não é só a Europa. Eu acho, até pelo contrário, que esta situação é uma grande oportunidade para a Europa. Acho que finalmente os europeus entendem, pelo menos a nível das lideranças, que é necessário deixarmos a nossa adolescência geopolítica.
Se queremos contar no mundo, não podemos ser apenas um espaço económico, temos também de ser uma potência diplomática e uma potência no domínio da defesa. E acho que isso é um caminho que se vai fazendo, mas naturalmente pela própria natureza da União Europeia demora mais tempo na Europa. Eu acho que a Europa tem, nestas circunstâncias, uma grande oportunidade para a sua afirmação.
Diminuindo o excesso de regulação de que tantos falam, fazendo o quê? Já foi presidente da Comissão Europeia. Qual seria, do seu ponto de vista, o caminho, neste momento?
O caminho, para já, em termos europeus, é completar o mercado interno, evitar esta coisa estranha de termos, por exemplo, 27 mercados de capitais, quando os Estados Unidos têm um. Portanto, há uma facilidade de financiamento às empresas nos Estados Unidos, há uma profundidade de mercados de capitais, que não existe na Europa. Agora, aliás, é a comissária portuguesa - Maria Luís Albuquerque - que tem essa responsabilidade, no âmbito da Comissão Europeia. Eu acredito que vai haver progressos nessa matéria.
Finalmente, porque nós não podemos competir com os Estados Unidos, ou com a China, nós não temos a dimensão que eles têm. Há uma questão de escala. O relatório Draghi aponta muito claramente isso. É necessário beneficiar da escala europeia, em todos os domínios do mercado interno, também de serviços, no mercado de capitais, nas reformas que têm de ser feitas também a nível europeu.
Há de facto problemas, que eu assinalei, de sobrerregulamentação que estão, de certa forma, a limitar a inovação. Por exemplo, nas novas tecnologias, na inteligência artificial, nós estamos a perder posições relativamente aos Estados Unidos, à China e a outros países. Portanto, penso que há aqui - hoje em dia - uma urgência, uma chamada de atenção para que a Europa faça o seu trabalho de casa. Não é por falta de diagnósticos, de bons diagnósticos. É, muitas vezes, por falta de vontade política dos governos europeus, na execução dessas políticas.
Não vamos ser os Estados Unidos da Europa"
Com tanto nacionalismo, crescente, deixou de se falar de federalismo. O federalismo entronca no caminho que aponta para o futuro da União Europeia?
Bom, essa palavra federalismo é um bocado controversa e polémica.
Na Europa, na realidade, já há muito de elementos federais: Comissão Europeia, independente. Banco Central Europeu, independente. Tribunal de Justiça, independente, o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional, a eleição direta dos deputados europeus. Tudo isso são elementos próprios dos sistemas federais e, às vezes, até em alguns domínios mais avançados do que nos sistemas federais.
Por exemplo, o Banco Central Europeu tem hoje, no âmbito europeu, relativamente mais poder do que a Reserva Federal, nos Estados Unidos da América. O poder, por exemplo, de supervisão dos bancos é maior aqui na Europa do que nos Estados Unidos.
"O caminho é completar o mercado interno na UE"
Em muitos aspetos já temos competências federais. Mas nós não somos e, a meu ver, não vamos ser - no futuro previsível - os Estados Unidos da Europa, porque os europeus não querem. Em democracia nós temos de respeitar isso.
Os europeus, na sua maioria, apoiam a União Europeia. É o que mostram, por exemplo, os Eurobarómetros. Querem uma União Europeia, mas é uma união de Estados, de Estados que mantêm também a sua própria soberania, a sua própria independência, mas que partilham essa soberania.
Portanto, é um sistema híbrido, é um sistema às vezes difícil de entender, mas é o sistema que as condições da nossa opinião pública permite. Eu acho que vai ser aí que vamos estar, no futuro previsível. Não vamos ser uma organização, como outras organizações em que praticamente nada se faz conjuntamente, que são organizações intergovernamentais, organizações que estão completamente bloqueadas, por exemplo, as Nações Unidas, em que os poderes de veto de uns travam qualquer decisão importante. Não somos uma organização clássica, mas também não somos um Estado, nós não somos um país. A União Europeia é uma união de Estados e de cidadãos, com alguns elementos federais.
Eu pessoalmente apoio avanços de natureza federal - é o meu ideal europeu e eu sou convictamente europeísta - mas ao mesmo tempo sou também realista e sei que nós temos de fazer as coisas em democracia, com o ritmo próprio, e sempre com o apoio dos nossos cidadãos. Senão é uma construção artificial, que se afasta da maioria dos povos europeus.