03 jul, 2025 - 01:32 • José Pedro Frazão
"Não prestamos atenção suficiente ao que acontece na China". O alerta é da investigadora em relações internacionais da Universidade Nova de Lisboa, Raquel Vaz Pinto. Numa conversa com a Renascença registada no Encontro Fora da Caixa no Funchal, a especialista analisou a agenda internacional chinesa, as mudanças na América, os desafios para a Europa e para Portugal.
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Quando olhamos para o mundo, geralmente olhamos para o peso do continente norte-americano no mundo. Estaremos a ver mal o mundo nessa perspetiva?
Um dos maiores desafios que nós professores, jornalistas ou analistas temos é a sensação de estarmos submersos em informação, em desinformação e em contra-informação. Estamos cansados, exaustos e essa sensação acaba por também nos fazer concentrar a atenção nos polos a que estávamos mais habituados, ou seja, leia-se os Estados Unidos e não só.
Há aqui um elemento que os jornalistas conhecem muito bem, que é o da proximidade. Preocupo-me muito mais com o que acontece em Portugal e depois na Europa, do que aquilo que acontece no Turquemenistão. Mas nós não prestamos atenção suficiente ao que acontece na China.
Enquanto temos muita informação de um lado - e no caso dos Estados Unidos atuais, é exasperante - do outro lado, também porque a China é a ditadura mais sofisticada deste mundo, com uma estratégia clara, nós temos muito pouca informação. E é neste contraste que nós estamos.
Quando olhamos para o mundo, devíamos estar mais atentos àquilo que acontece fora do que eram as nossas zonas de conforto, e não o fazemos. Há uma forma de fazer política internacional, uma "âncora" internacional que está a morrer, se é que já não está quase enterrada. Tivemos décadas que foram ótimas para a Europa Ocidental, a partir da Segunda Guerra Mundial e até há pouco tempo- Essa forma de fazer política, essa "âncora", esse nosso mundo, está infelizmente a morrer.
Virá uma nova, qualquer coisa a seguir, mas a resposta mais honesta é que não sabemos como é que vai ser. Tenho cada vez mais dúvidas e menos certezas face àquilo que vou analisando todos os dias. Estamos numa fase de transição e não sei se o mundo vai ser bipolar, se vai ter dois polos e a União Europeia vai conseguir acertar o passo entre as estruturas da sua União e a prosperidade, a competitividade e a felicidade dos seus cidadãos e dos estados-membros. Não sei o que é que vai acontecer à Rússia e por aí fora.
Portanto, não prestamos atenção suficiente ao resto do mundo, que é cada vez mais importante a nível internacional. É a China, a Índia, temos a Coreia do Sul - um país que tem uma economia com uma vitalidade e uma capacidade de imaginação e de tecnologia extraordinária - temos o Japão que tem imensos problemas internos e que continua a ser também um país importante.
Temos que ser menos eurocêntricos na forma como lemos o mundo, porque o mundo, também ele próprio, já não é, ou é cada vez menos eurocêntrico.
E o que é que a China quer do mundo, na verdade?
A China quer aquilo que todas as grandes potências querem do mundo. E tem feito o trabalho de casa nesse sentido.
Primeiro, há uma noção histórica: a China não é uma potência emergente. Regressa a um lugar onde esteve durante séculos, embora mais limitado, não ao mundo como um todo, mas ao que era o seu mundo. A China quer desenvolver um conjunto de políticas que lhe permitam manter a supremacia naquilo que a China considera ser a sua "esfera de influência", uma expressão terrível, mas a que infelizmente temos que voltar.
A China tem uma política externa muito clara relativamente ao Ártico. Ou face à inteligência artificial, porque hoje não consigo ter uma conversa sobre inteligência artificial sem incorporar o que a China tem hoje em termos de entusiasmo, de impacto do ponto de vista tecnológico.
A China quer ter aquilo que os Estados Unidos tiveram - e ainda têm - durante muito tempo: uma hegemonia. Aí não é diferente das outras grandes potências.
Mas muitas vezes ouvimos dizer que há uma nova 'ordem mundial', uma ideia em que a China lidera um pelotão com a Índia ou com a Rússia, por oposição aos Estados Unidos. Desafia essa ideia?
Desafio por completo. Hoje fala-se muito na ideia dos BRIC. Não há BRICs do ponto de vista geopolítico e estratégico. Não é possível ter no mesmo espaço um país que tem essa expressão como a China e um outro país como a Índia, de que não falamos tanto, e que joga em vários tabuleiros. Está no QUAD com os Estados Unidos, a Austrália e o Japão e tem uma posição muito interessante na sua zona regional. Mas o seu maior rival, aquele país que lhe dá dores de cabeça para além do Paquistão, é a China. E ainda hoje toda aquela fronteira nos Himalaias não está delimitada entre os dois.
É interessante sermos críticos em relação à nossa forma de fazer política, de olhar para os desafios internacionais, mas também temos que fazer o mesmo para o outro lado. Podemos dizer que há um conjunto de críticas e até de um certo ressentimento que pode ser característico. Agora, a heterogeneidade é tão grande dentro deste grupo que muito honestamente tenho sérias dificuldades em perceber os BRIC, porque para existir uma estratégia, tem que haver uma liderança. E nos BRIC o máximo que podemos dizer é que a China, que é aqui o principal motor, é fundamental, mas não é de todo consensual.
Completamos o primeiro semestre da Administração Trump. O que é que mudou realmente na posição norte-americana no mundo?
Pessoal e fisicamente, parece-me que estes 6 meses já levam 2 anos, no mínimo. Estamos cansados, mas isso é uma tática, faz parte da forma de fazer as coisas. O que é que mudou? Se conseguirmos separar o estilo e a linguagem desta administração, há questões de fundo que são consensuais e em que há continuidade: Indo-Pacífico, em detrimento do Atlântico e uma forma unilateral de olhar para o mundo - agora com mais reforço, sobretudo a nível das taxas aduaneiras - mas os Estados Unidos têm há muito tempo dificuldades em lidar com tribunais internacionais ou qualquer hipótese de retirar soberania a si próprio, como é o caso do Tribunal Penal Internacional, entre outras instâncias. Isso também não é novo.
Aquilo que é novo é a questão de não entender a democracia liberal e o chamado 'soft power', a ideia dos valores, do exemplo. Não entende que esta dimensão de poder, mas também a própria democracia liberal tem um valor em si mesma e é benéfica em termos da política externa para os Estados Unidos no mundo.
E articula-se este movimento 'trumpista' ou este Partido Republicano, e, por exemplo, olhar para a Europa e escolher uns europeus de que gostem, como Viktor Orban ou o líder da AFD na Alemanha. Essa é uma grande diferença para mim.
A segunda grande diferença é o facto de o mapa mental e a forma como Donald Trump olha para o mundo é pré-1945, se não mesmo do final do século XIX. Entende que o 'hard power' é muito mais forte, a ameaça de coerção é muito mais importante do que os amigos.
Não consigo compreender como é que os Estados Unidos, que continuam a ser a superpotência - e sem equívoco - conseguem levar a bom porto esta estratégia de manter o domínio sem terem aliados ou amigos. Porque a China também tem imensos problemas internos. Não é uma democracia, mas do ponto de vista económico interno, tem imensos problemas.
Destacaria um aspeto onde, para mim, toda esta discussão é quase absurda.
A China, e sobretudo a liderança de Deng Xiaoping - que foi o homem que verdadeiramente revolucionou e trouxe a China ao mundo - pensou: ' onde é que nós podemos fazer a diferença? O Golfo Pérsico tem petróleo, nós, chineses, temos as terras raras. E é nisso que vamos apostar'.
Ou seja, nós, europeus e os próprios Estados Unidos, só agora começam a acordar para esta realidade das terras raras e outras matérias-primas críticas.
As terras raras são fundamentais para a indústria automóvel, para a indústria de defesa - não se consegue só olhar para um caça F-35, pois temos 350 mil componentes fundamentais - para as turbinas eólicas, carros elétricos ou um telemóvel.
Penso que é mais ou menos consensual que o Canadá não é propriamente um país que criou uma ameaça existencial aos Estados Unidos. Quando Trump foi eleito, começou a conversa do Canadá como o estado número 51 dos Estados Unidos, e as sondagens e os eleitores viraram radicalmente. Há muito tempo que não via em termos de escolha de líderes políticos uma pessoa com um currículo tão impressionante como o do atual primeiro-ministro do Canadá. O Canadá é para mim uma escolha, às vezes no meio de tantas notícias difíceis com que nós temos que lidar. É uma boa escolha, com esperança.
Vamos transitar para a Europa. Durante algum tempo muitos falaram sobre reforçar o pilar europeu da NATO. Como vê a Europa neste contexto?
A Europa vive um momento particularmente difícil, porque chegamos a 2025 com três missões impossíveis.
Primeiro, menos Estados Unidos, sobretudo do ponto de vista da defesa. Menos China, ou seja, continuar o caminho de fazer a diversificação a nível internacional, o que não é fácil e para alguns países é dramático. E depois, fazer isto, não contando com a Rússia.
E depois, para também 'ajudar imenso', fazer isto, tendo em conta a estrutura da União Europeia e ao mesmo tempo ir conseguindo falar com os vários Estados-membros, de maneira a que entremos todos no mesmo barco.
Focava-me, talvez, na questão da defesa. Uma das frases muito faladas na Cimeira da Nato em Haia veio do líder espanhol, que está a atravessar um momento muito difícil 'dentro de casa', que insistiu numa mensagem errada e muito perigosa: ' não vou investir mais em defesa por causa do Estado Social'.
Isto é uma falácia em termos pedagógicos, em termos políticos, e daquilo que pode ser esta nova fase das nossas vidas. As indústrias de defesa passam cada vez mais pela produção de aplicações duais ou duplas, militar e civil. Por exemplo, os drones, podem servir para entregar mercadorias como podem servir como têm feito na Ucrânia. Há aqui uma junção de três pilares: economia, tecnologias- universidades - ciência, e depois, reforçando um pilar da nossa soberania, que são as Forças Armadas.
Pensem na extensão da plataforma continental, na riqueza que é o mar para Portugal. Quem é que vai fiscalizar esse mar? Quem é que vai ajudar a conseguir retirar os recursos desse mar? Não conseguimos fazer isso se não introduzirmos esta ideia das indústrias de defesa, mas também uma compreensão abrangente daquilo que nos torna a nós, portugueses, diferentes e especiais.
O mar é um trunfo que nós temos. Mas esse trunfo tem que ser aproveitado e tem que ser um trunfo português dentro do contexto europeu. E portanto, para mim, é das mensagens mais perniciosas possíveis, porque é absolutamente populista.
Dou o exemplo da Tekever , uma empresa portuguesa que já tem um conjunto de operações fora de casa e que também está relacionada com o elemento dos valores europeus. A Tekever fornece drones à Ucrânia e tem sido importantíssima, não fornece, por razões éticas, drones à Rússia.
Portugal tem que ser mais criativo e reformular também algumas alianças, formais ou informais, até mesmo dentro da própria União Europeia, tendo em conta o que está a acontecer na Alemanha e na frente Leste, com um alargamento à vista e uma faixa de países muito mais preocupados?
Quando não se é uma grande potência, não temos de ter um plano A, um plano B ou um plano C. Nós temos de ter um plano até ao Z. Porque uma grande potência pode cometer asneiras e a grande potência europeia teve duas guerras mundiais.
Nós não temos essa rede, não temos um território não temos uma economia robusta. Temos mesmo que pensar de forma flexível e estratégica. Nós somos de facto muito bons a 'fazer pontes', a falar com outras partes do mundo, justamente porque não somos uma grande potência, portanto, não incomodamos nesse sentido. E fruto da história, temos uma presença global, Quanto mais globais formos, mais fortes somos do ponto de vista europeu, porque temos essa relevância.
Em segundo lugar, também temos diplomatas extraordinários. Nos próximos anos temos que estar ainda mais atentos à realidade dos 27 dentro da União Europeia. Um país pequeno, no sentido da sua população, como a Finlândia, percebeu que o que nos faz diferentes face à ameaça existencial russa nas fronteiras, são as nossas pessoas, são os finlandeses. E, portanto, foram buscar os melhores das faculdades, apostaram na educação, na instrução das suas crianças e dos seus jovens. Isto tem um retorno, a nível de curto, médio e longo prazo, absolutamente extraordinário.
Por outro lado, também, temos que estar ainda mais atentos à Alemanha, que deu um salto tremendo. Falta fazer muita digitalização, mas a Alemanha é um colosso em termos de indústria e, como podemos ver, em termos de indústrias de defesa, que ninguém tenha dúvidas, que a Alemanha vai ser ainda um colosso maior nos próximos anos.
Depois, também temos que ser capazes de não jogar apenas nas 'cartas do costume', e procurar outros países dentro da própria União Europeia, que sintam os mesmos problemas que nós.
Espanha perdeu a grande parte final do seu império no final do século XIX, derrotados pelos Estados Unidos. Isso ficou. E depois teve a ditadura franquista e Espanha, ao contrário de Portugal, só entrou na NATO em 1982.
É um país que tem uma dualidade mediterrânica e atlântica. Nós temos uma boa parte mediterrânica mas somos sobretudo um país atlântico. E, portanto, este momento que Espanha neste momento vive, difícil e complexo, é uma oportunidade para Portugal.
Precisamos de ser capazes, como temos feito em momentos muito difíceis da nossa história, de achar uma boa estratégia e depois, ao mesmo tempo, de não perdermos o horizonte do que é o mundo para nós.
E uma conversa, por exemplo, com os polacos dentro da União Europeia, é , em termos globais, totalmente diferente. Porque, pela sua história, a Polónia não tem essa expressão global. Tem uma diáspora importante, sem dúvida, mas não tem essa expressão global.
Portanto, esse é um trunfo grande de Portugal. E acabo com esta ideia, não do mar do ponto de vista romântico, mas o mar da nossa realidade. E, sobretudo, é uma peça que tem que ser gerida com estratégia de forma integrada. É identidade, com certeza, é economia, é estratégia, é defesa e é, ao mesmo tempo, uma possibilidade de reforçar o papel de Portugal dentro do que é a Europa. É um trunfo que nós temos.