Cortes nas ajudas: "Clamor dos pobres implica protesto mais forte da Igreja"

26 set, 2025 - 22:45 • José Pedro Frazão

A Igreja deve usar uma voz mais forte para protestar contra os cortes de verbas que afetam o combate à pobreza. O apelo é de Bernd Nilles, o novo presidente da CIDSE - a Aliança Internacional de Organizações Católicas na Área do Desenvolvimento, numa entrevista registada em Lisboa à margem da comemoração dos 35 anos da FEC - Fundação Fé e Cooperação.

A+ / A-
Cortes nas ajudas. "Clamor dos pobres implica protesto mais forte da Igreja"
Cortes nas ajudas: "Clamor dos pobres implica protesto mais forte da Igreja", diz Bernd Nilles, em entrevista à Renascença

Sessenta anos após a sua fundação, a organização que congrega as organizações católicas na área de desenvolvimento está também mobilizada para a Conferência da ONU sobre o Clima agendada para novembro no Brasil. Em entrevista à Renascença, o novo presidente da CIDSE, Bernd Nilles, espera que o impulso dado à agenda climática não esmoreça num tempo em que são as verbas da área da cooperação que estão a deixar marcas profundas nas ajudas internacionais.

Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui

Em vários locais do mundo, as tragédias são demasiado grandes para ser enfrentadas. O que sugere como um caminho a seguir nesta situação?

Antes de mais, precisamos de reconhecer as grandes conquistas que alcançámos graças à cooperação e à ajuda para o desenvolvimento.

Em todo o mundo, nos últimos 10 a 20 anos, tivemos uma grande história de sucesso. Pessoas a enfrentar menos fome, mais pessoas com educação e literacia - todos estes foram desenvolvimentos muito positivos. E depois em 2024 e 2025 houve um culminar de decisões políticas que questionaram esta história de sucesso.

Vimos o governo dos EUA sob o governo Trump, mas, muito para além disso, vimos e vemos a França, os Países Baixos, o Reino Unido, a Suíça, a Alemanha, e muitos países europeus a cortar a ajuda, a cooperação para o desenvolvimento ou a transferir a ajuda dos países pobres do hemisfério sul para a reconstrução da Ucrânia. Esta é a situação que temos. Os países pobres perderão, entre 2024 e 2025, 26% da ajuda ao desenvolvimento. E teremos muitas instituições multilaterais a lidar com refugiados, saúde e direitos humanos, que perderão acesso a enormes quantidades de dinheiro. Isso também terá impacto nas pessoas. É uma situação que vai levar muito mais pessoas a passar fome. As pessoas morrerão, ninguém cuidará de certos refugiados, de certos conflitos, não haverá ajuda, etc., etc.

Quando, em apenas dois anos, um quarto da ajuda ao desenvolvimento desaparece, isso tem impacto nas pessoas

Só por via do corte dos fundos?

Sim, cortando nos fundos, porque todas as infraestruturas para ajudar as pessoas, especialmente no setor humanitário, mas também na cooperação a longo prazo, sofrerão um impacto significativo. Quando, em apenas dois anos, um quarto da ajuda ao desenvolvimento desaparece, isso tem impacto nas pessoas. Isto tem impacto nas pessoas porque pudemos ver de antemão o impacto positivo. Quando acabar, teremos um impacto negativo.

Está a falar da USAID ou do financiamento para as agências da ONU?

Estamos a falar do financiamento para as organizações internacionais da ONU. Este corte é feito principalmente pelos Estados Unidos, mas também de vários países europeus num período de tempo muito curto, que ascendem a milhares de milhões. É dinheiro que deixará de ser alocado às agências de ajuda humanitária, aos países pobres, às comunidades locais.

E porque é que isso vem também da Europa?

Há razões diversas. Há governos e parlamentos que querem transferir mais dinheiro para as despesas militares e retiram-no de todo o tipo de orçamentos, incluindo o do desenvolvimento. E há governos que estão a transferir dinheiro dos países pobres para ajudar a Ucrânia. Sou totalmente a favor de ajudar a Ucrânia, mas isso requer dinheiro adicional e novo.

Então, respondendo à sua primeira questão, a minha primeira recomendação é que precisamos de falar. Precisamos de levantar a nossa voz também como sociedade civil. Precisamos de falar sobre este desastre, sobre esta tremenda mudança, esta 'dessolidariedade' que estamos a viver. Isto não é algo que nós, enquanto sociedade civil, devamos aceitar.

Bruxelas pode mudar a sua posição em relação aos cortes na ajuda e cooperação europeia? Vê sinais de esperança?

Tenho sempre alguma esperança. Acho que depende da mobilização agora para falar sobre esta ameaça. Na UE há alguns governos que querem que o desenvolvimento já não esteja tão no topo da lista de prioridades. Mas também há outros governos que, por exemplo, querem enfraquecer as obrigações de direitos humanos para as empresas europeias. Querem enfraquecer a diretiva europeia sobre a diligência prévia (due dilligence) em matéria de direitos humanos. Existem também propostas para enfraquecer as metas climáticas da UE.

Neste momento, muitas destas políticas de desenvolvimento, ambiente, etc., estão sob pressão de certos governos, pelo que existe um risco. É preciso uma decisão maioritária, mas estas políticas estão sob pressão. Isso é muito arriscado, porque são conquistas muito importantes da União Europeia nos últimos 10 anos. Fizemos muitos progressos na Europa e existe agora o risco de perdermos a coragem de continuar nesse caminho.

Portugal, também na UE, pode desempenhar um papel muito importante na defesa destas importantes conquistas

Está a afirmar que há um grande risco de reverter ou interromper o ímpeto das políticas ambientais no ambiente. O Pacto Ecológico e muitos processos conexos não deveriam estar em "velocidade de cruzeiro"?

Não consigo imaginar que isto vá parar, mas há pelo menos a ambição de alguns políticos de o diluir. Acreditam que a economia pode crescer melhor quando as empresas têm menos obrigações, menos regras. Eu acredito no contrário. Acredito que quando temos regras claras para todos na Europa, as empresas também podem confiar nas decisões políticas. Sabem que vamos eliminar gradualmente a produção de carros movidos a combustíveis fósseis e reduzir as emissões de carbono.

Penso que estávamos no bom caminho. Os políticos não devem desistir. E Portugal, também na UE, pode desempenhar um papel muito importante na defesa destas importantes conquistas, porque se Portugal, por exemplo, disser que não quer reduzir as nossas emissões climáticas, não quer cortar na ajuda, então também não será assim tão fácil conseguir que uma maioria na Europa o enfraqueça.

Um país pequeno pode fazer a diferença?

Sim, um país pequeno pode ter um grande impacto na Europa e seria um sinal muito importante. Penso que, neste momento, Portugal está firme e forte. Portugal não está a seguir o exemplo dos EUA de cortar a ajuda ao desenvolvimento, o que é muito importante porque podemos ver organizações portuguesas como a FEC e outras, também a nível internacional, que fazem um trabalho fantástico e precisam do apoio público para esse trabalho. Não é um trabalho fácil, elas trabalham em regiões muito conflituosas e difíceis, onde as pessoas são realmente marginalizadas, onde há guerras e conflitos. Por conseguinte, precisamos de reconhecer que estas organizações precisam do apoio público, não apenas a curto prazo, mas também a longo prazo, para que possamos ter um impacto realmente positivo.

O Papa Francisco, com a sua encíclica "Laudato Si", tentou demonstrar, é que estes conflitos sociais, a paz e o ambiente estão ligados

Os europeus não estão a colocar o clima no topo da lista de prioridades das sociedades, pelo menos não com tanta força como há alguns anos. É o momento de uma nova onda da sociedade civil em relação ao clima?

Com certeza. A sociedade civil, também os governos, todos estão conscientes de que a crise climática está hoje no nosso dia a dia. Sofremos com ondas de calor, escassez de água, etc. Imaginando que isto se tornará muito mais grave e muito pior, é claro que precisamos de estar muito preocupados. Estes acontecimentos estão também relacionados com certos conflitos e tensões que vemos quando ligamos a televisão. Muitas vezes, têm a ver com os recursos naturais, o acesso à água. Também vemos mais conflitos e mais migrações por causa das alterações climáticas. A situação está a piorar, passo a passo.

É por isso que acredito que cada organização e cada governo que colocam as alterações climáticas em alta prioridade estão também a ajudar a ultrapassar a fome, a combater a pobreza, a ajudar as pessoas a terem uma vida digna no seu ambiente doméstico e a não fugirem. Por isso, acredito que essas ligações são importantes. E também quando observamos, por exemplo, o que o Papa Francisco, com a sua encíclica "Laudato Si", tentou demonstrar, é que estes conflitos sociais, a paz e o ambiente estão ligados.

Isso também fazia parte da agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que nós criámos. Conseguimos perceber isso dentro mas também fora da Igreja. Percebemos que todas estas coisas andam juntas. E isto é algo que precisamos de ter a coragem de continuar, de ligar os pontos que ligam a exploração petrolífera, por exemplo, às alterações climáticas. E que as alterações climáticas estão ligadas à migração. Precisamos de aprender e construir melhores políticas.

Não podemos deixar que os governos tomem decisões que são muito prejudiciais para os pobres. Este é um momento em que a Igreja precisa de se manifestar

Acha que os líderes da Igreja, os bispos e outros estão a falar alto o suficiente para abordar a situação?

Sobre a justiça climática, sobre as alterações climáticas, sim. À medida que o Papa Francisco criava um impulso, também proporcionou um ambiente de ensinamentos católicos que permitia aos bispos trabalharem realmente nesta importante questão. Assim, por exemplo, agora os bispos de África, Ásia e América Latina têm uma declaração muito forte sobre a COP30 em Belém este ano, para as negociações climáticas. Dirigiram-se ao Secretário-Geral das Nações Unidas, incentivando-o a ter a coragem de reunir os chefes de Estado para tomar decisões mais ousadas e ambiciosas. Sinto que a Igreja está a fortalecer-se em relação às alterações climáticas.

O que me desilude um pouco é que o clamor dos pobres, como disse o Papa Francisco, e por causa de todos os cortes na ajuda ao desenvolvimento agora, implica um protesto da Igreja que poderia ser mais forte. Porque a fraternidade, o amor ao próximo e a solidariedade são valores importantes dos cristãos. E sinto que não podemos deixar que os governos tomem decisões que são muito prejudiciais para os pobres. Este é um momento em que a Igreja precisa de se manifestar, e quero vê-la a falar mais alto, tão alto como por exemplo em relação às alterações climáticas.

Está a falar dos bispos europeus, da Santa Sé ou o Papa?

Espero que todos tenham lidado um pouco com o choque de todos estes cortes vindos de um país para outro. Espero, por isso, que as conferências episcopais europeias se manifestem cada vez mais. Espero também que o Santo Padre aborde esta questão com mais destaque no futuro. Mas também espero muito que o Papa Leão XIV adote também este pensamento holístico do Papa Francisco e fale sobre a pobreza, a injustiça social, mas também sobre a injustiça ambiental. E por isso espero muito que ele possa, por exemplo, aceitar o convite dos bispos brasileiros para ir à COP30.

Há sempre uma grande expectativa em torno das COP climáticas. O que espera da COP30? Acha que o processo de decisão climática pela ONU está em rutura?

O processo da ONU é lento, também porque conta com todos os países deste planeta, incluindo os produtores de petróleo, que têm muito pouco interesse em agir rapidamente. Tentam proteger o seu negócio principal. Além disso, os nossos governos tentam frequentemente esconder dos cidadãos quantos subsídios ainda concedem à indústria dos combustíveis fósseis. Existem também relatórios muito interessantes da Climate Action Network e de outras organizações que documentam todos estes subsídios com muito cuidado. Por isso, o progresso é lento, também devido aos interesses de certos governos. Deve-se também ao facto de as últimas três COP terem sido realizadas em países produtores de petróleo, num cenário muito difícil. Quando um país produtor de petróleo preside às negociações, tudo ficou bastante lento.

O Brasil também tem indústria petrolífera.

E tem a floresta tropical desmatada. Mas parece-me que o governo brasileiro quer realmente dar um grande passo em frente e aumentar a ambição. Mas também - e isto é muito bom para nós enquanto organizações de desenvolvimento - quer que os governos ouçam os povos indígenas, as comunidades que já sofrem com as alterações climáticas, mas que também têm soluções para viver de forma diferente.

O que vai acontecer em Belém é entusiasmante, porque não haverá apenas negociações governamentais; Em Belém, vamos assistir a uma grande mobilização da sociedade civil e popular, que se designa por Cimeira dos Povos. E, paralelamente às negociações oficiais, haverá milhares de pessoas em Belém a protestar, a realizar workshops, conferências, a apresentar as suas próprias propostas. Agrada-me muito que a Igreja Católica esteja a apoiar isto e que a Igreja Católica do Brasil tenha organizado workshops e conferências por todo o país para se preparar para esta COP30.

Creio que o povo brasileiro está bastante bem preparado para a chegada de todos estes governos. Portanto, sim, tenho a impressão de que esta COP pode ser um impulso também de esperança e de mudança, até porque todos percebemos hoje que a crise climática está presente e vemos um progresso lento. Espero que Belém se torne um ponto de viragem para negociações mais rápidas.

Não creio que em Belém consigamos tudo o que desejamos, mas acredito que pode ser um momento de mudança. A partir daí, tudo pode caminhar melhor e mais depressa.

Falamos sempre da Europa, mas a CIDSE também inclui ONGs norte-americanas. Como vê a situação atual do outro lado do oceano?

Temos membros dos EUA e do Canadá. Nos EUA, é evidente que a situação é devastadora e frustrante para a sociedade civil. Quase não têm acesso ao governo, que não os está a ouvir. Todos estes espaços estão a diminuir. Mas a sociedade civil nos EUA é forte, as pessoas estão organizadas. E, por exemplo, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, todas as organizações da sociedade civil se reunem e promovem a ambição em relação ao clima. Nem todos nos EUA estão satisfeitos com o que o governo está a fazer neste momento. Portanto, é uma situação muito difícil e é assustador para as pessoas.

Além disso, as pessoas têm receio, por exemplo, de comunicar nas redes sociais, etc. Isto pode ter um impacto negativo na sua organização e nas suas liberdades pessoais.

Há medo de se expressarem?

Sim. As pessoas têm medo, mas também têm coragem. E por isso ouço falar não só de depressão. A sociedade civil nos EUA está a organizar-se. E tenho a certeza de que usarão as próximas eleições para criar impulso. Muitos dizem também que este governo não está a falar por eles, nem por todos os americanos. Precisamos de lidar agora com este governo. Ele é como é. Mas também não devemos desistir da ideia de que poderá haver um ambiente político diferente daqui a alguns anos.

É agora presidente do CITSE, quando a organização faz 60 anos. Este é um ano de celebração. Qual é a grande prioridade a curto prazo para a CIDSE aos 60 anos?

É envelhecer bem. Talvez seja como um bom vinho ou queijo, por vezes demora alguns anos...

A CIDSE está a trabalhar de forma muito profissional. Como muitas organizações, começou com uma abordagem leiga. E hoje estamos muito bem organizados. Temos equipas especializadas compostas por organizações-membro e especialistas, e temos prioridades muito importantes para todos no Sul Global, bem como no Norte Global. São elas: a segurança alimentar, as alterações climáticas, os direitos humanos. São questões em que trabalhamos juntos e em que também coordenamos o nosso trabalho de desenvolvimento para nos fortalecermos em conjunto. O grande desafio é que, quando os governos cortam na ajuda ao desenvolvimento e também reduzem o apoio às ONG e às organizações de desenvolvimento como as membros da CIDSE, a rede terá também menos financiamento, menos apoio. Portanto, existe o risco, claro, de ficar mais fraca.

É por isso que precisamos de unir forças e criar espaços para aprendermos uns com os outros e também para criar eficiência quando temos menos financiamento para lidar com a nova situação. Mas também para aprendermos uns com os outros como podemos escapar dela. E depois observo que em diferentes países, as coisas acontecem em diferentes momentos e diferentes membros já tiveram experiências.

Por exemplo, quando um governo está a cortar na ajuda, onde se podem encontrar novas fontes de financiamento? Onde podem encontrar apoio? Como podem comunicar ao público que estão com eles? Sinto que o aniversário surge num momento muito difícil, em que o mundo está no meio de uma espécie de turbulência com todos estes conflitos e dificuldades.

Mas quando vemos o nosso trabalho - e é nesse momento que começo a sorrir - quando visito os nossos programas em África, Ásia e América Latina, vejo pessoas fantásticas a criar mudanças concretas. Por isso, acredito que, no futuro, devemo-nos concentrar também no excelente trabalho das comunidades locais e não apenas nas grandes manchetes dos jornais e nas mensagens devastadoras. Na prática, há muita coisa a acontecer e continuaremos a apoiar, e é isso que a CIDSE tentará fazer também no futuro.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+