19 out, 2024 - 08:00 • Susana Madureira Martins e Beatriz Pereira (Renascença) e Maria Lopes (Público)
Um dia depois de ter assumido que vai propor a viabilização da proposta de Orçamento do Estado da AD à sua direção, o líder do PS deu uma entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público onde avisa o Governo que na especialidade os socialistas não irão encetar qualquer negociação. Esse é um processo que, diz, está “encerrado”.
Pedro Nuno Santos avisa mesmo que o facto de o PS viabilizar o Orçamento do Estado não significa que aceite tudo o que o diploma contempla. Isto implica que uma medida como a descida do IRC, considerada essencial pelo Governo, pode estar em risco e ser chumbada pelos socialistas na fase de discussão na especialidade.
A Renascença sabe que essa é uma possibilidade que Pedro Nuno Santos não descarta, considerando-se “livre” para votar como achar melhor, tendo em conta que não houve acordo com o Governo.
Nesta entrevista, Pedro Nuno Santos dá o benefício da dúvida ao executivo sobre as metas orçamentais e avisa que o eventual regresso do país ao défice será uma “falha” do Governo.
Justificou esta quinta-feira a abstenção do PS no OE como facto de o país ter tido eleições há sete meses e de não haver evidência que novas legislativas trouxessem um resultado substancialmente diferente. Parte do argumento existe há meses. Não era possível ter anunciado a posição do PS há mais tempo?
É claro que não, pela simples razão de que a opção do PS foi encetar um processo negocial que tivesse também consequências do lado do Governo, nomeadamente nas suas propostas. Portanto, se nós tivéssemos anunciado há vários meses que iríamos viabilizar o Orçamento, não tínhamos dado uma oportunidade à negociação. E nós quisemos negociar. Para mim, era sempre claro que o PS não podia passar cheques em branco. E, portanto não pode, pelo menos com a minha liderança, viabilizar um Orçamento sem que haja recuo por parte do Governo em matérias que são importantes para nós.
O Governo recuou e aceitou o IRS Jovem há cerca de duas semanas. Não poderia ter tomado essa decisão nessa altura?
Tenho ouvido muitas análises com muito interesse, mas o Orçamento foi entregue na semana passada. Independentemente da negociação e da nossa decisão, nós não anunciamos um sentido de voto antes de conhecermos um Orçamento de Estado.
Mas era isso que ia fazer...
Não era, claro que não. Mesmo que chegássemos a acordo, nós tínhamos de esperar que o Orçamento fosse entregue. Eu fui ministro e cheguei a ser surpreendido no Conselho de Ministros pelo Orçamento que era apresentado.
Há outra dimensão que também é relevante. Nós fizemos a ponderação de um conjunto de valores e de realidades, mas era uma decisão complexa para a qual não havia saídas óbvias. Isso implica tempo, a auscultação do partido, reflexão. O timing é definido pelo PS, e por mais ninguém. E, para nós, este era o momento certo.
Para se antecipar ao congresso do PSD?
Não temos medo que digam mal de nós no congresso do PSD, é o normal. Entendi que a importância da decisão merecia ser solenemente anunciada ainda antes da comissão política nacional. E decidi fazê-lo na quinta-feira porque, por respeito, para com o PSD, achava errado fazer na sexta, no sábado ou no domingo.
Em setembro disse que preferia perder eleições a abdicar das convicções. O que mudou? Ou de que convicções teve de abdicar?
Eu faço política com convicção e com convicções e acho isso muito importante. Este não é o Orçamento do PS. Nós nunca apresentaríamos um orçamento igual a este. Este é um orçamento que é a tradução financeira de uma política da qual discordamos profundamente, na área da saúde, da educação, em várias áreas da governação.
E foi com esse argumento que começou por dizer que era ‘praticamente impossível’ a viabilização.
Mas nós não somos intransigentes, nem inflexíveis. Temos o cuidado de olhar para o país, de sentir os anseios da nossa população, de saber ler e ter a capacidade para, interpretando a realidade, ajustar as nossas posições. Não se é um bom político, nem se faz bem o seu trabalho, se não temos a flexibilidade para ler a realidade e sabermo-nos ajustar a ela. Sem que isso signifique que se abandone a matriz essencial de valores do PS. Isso não podemos fazer. Mas, obviamente que há um espaço de flexibilidade. E não podemos ignorar que as eleições foram, de facto, há pouco tempo.
Ficou com medo de poder ser derrotado nas urnas?
Não, não foi isso que eu disse. Maioria estável para um lado ou para o outro. Independentemente de quem vence essas eleições.
Sente que podia haver uma derrota eleitoral para o PS?
Não estou certo disso. Nós não nos guiamos por sondagens e elas valem o que valem, mas a última dava o PS à frente. Por muito pouco, mas dava. E nós não estivemos seis meses a fazer acordos e a dar destino à margem orçamental que o Governo do PS deixou. Não fomos nós, foi o Governo. Aquilo que seria expectável era que o Governo, ao fim destes seis meses, ainda não tendo o desgaste da governação, pudesse ter descolado, disparado até. E isso não aconteceu.
Este processo fragilizou-o como líder do PS? Criou-se a perceção de alguma desorientação e de falta de estratégia?
Este processo seria sempre difícil para nós, fosse qual fosse a decisão, e sempre alvo de críticas. Eu não tive duas posições sobre o nosso sentido de voto no orçamento. ‘Praticamente impossível’ não é impossível. Eu nunca disse que íamos chumbar, nunca disse que íamos viabilizar. E, portanto, estávamos num processo negocial. Quando nós dissemos o que íamos fazer, que foi ontem [anteontem], levámos a sério. Não andámos de trás para a frente como outro partido faz em Portugal. A posição do PS no orçamento não é errática.
Vai ter uma comissão política substancialmente mais fácil, tendo em conta as posições que diversos dirigentes nacionais foram tendo?
Não sei. A comissão política nacional tem mais 70 membros do que os cinco ou seis que falam em público. Portanto, eu não sei retirar essa conclusão. Reuni com o grupo parlamentar e a divisão era clara; nas reuniões com os presidentes de federação também havia opiniões para todos os gostos. Diferença de opinião dentro do PS não significa divisão do ponto de vista do poder interno do PS. São coisas diferentes. O partido não ficou dividido por causa disto. O partido tem, com diferentes militantes, opiniões diferentes sobre o tema.
Está a dar conta das posições que Francisco Assis, Fernando Medina, José Luís Carneiro, por exemplo, foram tendo sobre este processo?
Com todo o respeito que tenho por esses militantes, estou a falar de um partido que tem dezenas largas de milhares de militantes. Não estou a falar da pessoa A, B, C, D ou E. Estou a falar de um partido. E não posso, como secretário-geral do PS, até por respeito para todo o meu partido, reduzi-lo a cinco pessoas ou quatro pessoas.
Agora… quando estamos no meio de um processo negocial, é importante que todos tenhamos consciência de que as nossas declarações têm consequências e que há afirmações que, num determinado sentido, fragilizam a posição negocial do PS.
Conversou com Fernando Medina para tomar uma decisão?
Fernando Medina faz parte da comissão política nacional e teve a oportunidade de intervir.
Falou, por exemplo, com o António Costa sobre este processo? Aconselhou-se com ele?
Não. Nos últimos tempos, não.
A decisão que tomou afasta-o da restante esquerda, quer do PCP, do Bloco. A relação com essa esquerda quebrou-se e pode colocar em causa futuras aproximações, por exemplo, nas eleições autárquicas?
Como é evidente, e com naturalidade, respeito a opinião do PCP, do Bloco de Esquerda, espero que também respeitem a do PS. Nós temos a obrigação de ter boas relações e de continuar a ter essas boas relações. Agora, o PCP, o BE e o PS não coincidem sempre em todas as matérias.
Colaram-no ao centro-direita e à direita.
Percebo a estratégia deles, mas não é credível, sinceramente, que o eleitorado que vote mais à esquerda ache que eu estou próximo do PSD. Ou que o PS está próximo do PSD. Isso não é credível e, portanto, parece uma estratégia errada, mas cada um segue aquela que entende.
Isto coloca em causa aquelas aproximações?
Espero bem que não. Há situações e há casos onde é preciso aliar esforços e nós devemos fazê-lo.
Afasta por completo uma crise política a partir desta decisão do PS de abster-se no OE ou o país pode ainda ter eleições antecipadas por outros fatores que, entretanto, ocorram?
Que fatores é que poderiam ocorrer? Não estou a antecipar nenhum. Espero que não haja nenhuma razão para se criar uma crise política em Portugal. Da parte do PS não será. Nós não conseguimos antecipar tudo e, portanto, é um exercício que não é muito útil na medida em que não dominamos nem controlamos a realidade que é sempre incerta.
O Governo tem mostrado receio sobre a possibilidade de o PS, na discussão do OE na especialidade, deixar passar propostas de alteração que comprometam as metas do Governo. Isso não vai acontecer?
Se estivermos a falar das metas orçamentais, não. Agora, a especialidade existe para alguma coisa. Às vezes fico um pouco preocupado com a forma como lemos o que é um Parlamento, sem maioria absoluta de nenhum partido. O que significa que, para se chegar a uma determinada posição, tem de haver negociação e cedências - uns conseguem passar umas coisas, outros conseguem passar outras. É assim a democracia. Que ninguém tenha a ambição de querer anular a especialidade. Nós não poremos em causa o saldo orçamental que o Governo decidiu que quer ter (0,3%). No quadro da nossa liberdade total, com esta restrição que nos impomos a nós próprios, nós vamos intervir; teremos que ver até onde podemos ir.
Admite fazer avançar medidas em que o Governo esteja contra?
O grupo parlamentar ainda tem de decidir aquilo que quer levar à especialidade e por isso não quero fazer nenhuma antecipação.
Em torno de política fiscal, por exemplo?
Não quero antecipar nenhum tema para não cometer qualquer erro.
E em termos de estratégia? Poderá fazer propostas com algumas contrapartidas?
Nós não vamos entrar em nenhuma negociação na especialidade. Não quero que subsista nenhuma dúvida. Nós vamos fazer a nossa avaliação. Concluiremos, muito provavelmente, que há espaço para apresentarmos algumas propostas. No momento certo serão comunicadas ao país, mas não vamos entrar em mais nenhum processo negocial.
Este episódio para mim está encerrado e, como eu disse, para não criar sequer um tabu, não há diferença entre o nosso voto na generalidade e na votação final global. Obviamente, sempre com a ressalva de que não estamos à espera de nenhuma surpresa que resulte de uma aliança à direita.
Então como compagina isso com a ideia de que o PS parte para a especialidade “com toda a liberdade”?
Significa que não estamos obrigados a votar tudo o que o Governo ou o PSD apresentam ou obrigados a chumbar tudo aquilo que os outros partidos apresentam, ou obrigados a não apresentar propostas. Estamos livres. Vamos avaliar as propostas que vão ser apresentadas, como se faz em todos os processos de especialidade.
Ter assumido a votação final não coarta essa liberdade?
Não. O que eu não queria era que o país estivesse mais um mês em suspenso sobre aquilo que pode acontecer. Para nós era claro que a decisão que nós tomássemos para a generalidade seria a mesma decisão para a votação final global. Com a ressalva de que não haja grandes transformações face à proposta do Governo, nomeadamente de potenciais alianças à direita para aprovar algumas coisas. Nós temos essa margem, mas o nosso espírito, a nossa vontade, o nosso compromisso é viabilizar o orçamento de Estado.
Fica confortável com questões, por exemplo, em áreas fundamentais para o PS, como é a saúde, com propostas como os benefícios fiscais para os seguros de saúde, o que é uma transferência de investimento do público para o privado?
Nós somos contra. Não estamos a viabilizar este orçamento porque consideramos que o seu conteúdo é bom; vamos viabilizar este orçamento por outras razões, nomeadamente para evitar uma crise política quando tivemos umas eleições já há tão pouco tempo. A nossa crítica ao orçamento continua. Este orçamento não é do PS, nunca será do PS e terá a oposição do PS.
Então como é que vai votar os seguros?
Nós somos contra. Não votaremos a favor, com certeza, votaremos contra.
Também vota contra a construção de quatro hospitais em PPP?
Vamos avaliar as propostas e depois anunciaremos. Vemos na estratégia do Governo uma desvalorização do SNS e um desvio de recursos para o setor privado. Aliás, é a estratégia política deste Governo para as mais diversas áreas, desde logo, por exemplo, para a comunicação social, na forma como pretendem tratar a RTP.
Já disse que só falará do orçamento de 2026 quando entrar no Parlamento. É reconhecer que o processo deste ano foi um erro?
Não. Este processo seria sempre único. Porque estamos próximos das últimas eleições; nós aceitámos negociar, quisemos dar uma oportunidade de viabilizar. Agora, fazemos uma avaliação diferente do próximo ano da que fazemos deste.
A partir de agora não irá negociar mais nada com Luís Montenegro exceto questões que, como diz, ponham em causa a democracia?
Nas áreas de soberania há um espaço enorme onde deve haver trabalho em conjunto com o PSD. Por isso, há matérias para as quais é essencial que haja estabilidade no tempo, previsibilidade, e isso deve ser trabalhado entre o PS e o PSD. Nós nunca excluímos que em matérias de soberania se deva promover entendimentos.
Na justiça, por exemplo?
Obviamente, na justiça, na defesa, política externa, segurança interna. Qualquer mudança nas áreas de soberania exige um consenso alargado da sociedade portuguesa. Nas áreas económicas e sociais, a distância do PS face ao PSD é enorme. Vemos o Governo muito mais próximo da Iniciativa Liberal e do Chega.
No dossier da TAP há caminho para se fazer conjunto?
O PS não defende a privatização da maioria do capital. Antes, pelo contrário. E eu, sinceramente, não vejo que o Governo tenha Parlamento para privatizar a maioria do capital da TAP. Abrir o capital da TAP a privados, eu sempre defendi.
Em que pé é que estão as suas relações com o primeiro-ministro?
São boas. O PS e o seu líder têm uma relação institucional com o Governo.
Eu perguntava-lhe as suas.
As minhas são boas.