Hora da Verdade

"Não vejo sequer um vislumbre de reforma do Estado": IL prepara voto contra o Orçamento

16 out, 2025 - 07:00 • Tomás Anjinho Chagas e Helena Pereira (Público)

Mariana Leitão lamenta que o Orçamento do Estado do PSD "não mexe a agulha" em relação ao PS. Sobre as autárquicas, estabelece uma linha vermelha nas coligações em Lisboa e no Porto. Líder da Iniciativa Liberal critica o primeiro-ministro por “não ter coragem” de mexer na Função Pública.

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Hora da Verdade com Mariana Leitão
Hora da Verdade com Mariana Leitão

A líder da Iniciativa Liberal (IL), Mariana Leitão, revela que, "à partida", o partido vai votar contra o Orçamento do Estado para 2026 (OE2026).

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, Mariana Leitão lamenta que o Governo tenha apresentado um documento "pouco ambicioso" e, por isso, não vê grande possibilidade de um voto a favor, nem sequer de uma abstenção.

Em agosto, Mariana Leitão defendeu o despedimento de "quem está a mais na função pública". Agora, a presidente da Iniciativa Liberal lamenta que as suas palavras tenham sido "deturpadas" e clarifica que quer criar sistemas de avaliação para os trabalhadores do Estado.


Estamos em vésperas da discussão da proposta de Orçamento do Estado. Disse nas últimas semanas que este documento apresentado pelo Governo é pouco ambicioso. Está mais inclinada para um voto contra, como aconteceu no ano passado?

Este orçamento continua a ter vários problemas, continua a ser pouco ambicioso para os portugueses, para o país, e é essencialmente um orçamento ganancioso. Continua a manter impostos altos; a classe média, apesar de pequenos ajustes, é profundamente fustigada pela carga fiscal. Por outro lado, continuamos a ver que a despesa do Estado continua a aumentar e, portanto, mais uma vez, nunca é o Estado a fazer qualquer tipo de sacrifício: é sempre o sacrifício a ser posto em cima das pessoas. Este orçamento também não dá resposta às questões da habitação.

À partida, é muito difícil aprovar, ou mesmo abster-se, relativamente a um orçamento que não resolve os problemas do país e que não resolve os problemas das pessoas.

É preciso uma descida significativa dos impostos sobre o trabalho

E que propostas tem a Iniciativa Liberal, por exemplo, para essas duas áreas que referiu: habitação e diminuição da carga fiscal?

As nossas propostas para a questão da carga fiscal não vão ser muito diferentes das que já temos apresentado no passado. É preciso uma descida significativa dos impostos sobre o trabalho para aliviar as famílias que, neste momento, sentem o peso do custo de vida. No âmbito da habitação, é preciso insistir na urgência de baixar o IVA da construção e na urgência de baixar os impostos sobre as rendas.

A redução do IVA da construção foi anunciada pelo Governo.

Mas com um conjunto alargadíssimo de limitações, restrições e burocracias que fazem com que a medida, em si mesma, não vá ter qualquer impacto. O problema da habitação só se resolve com mais construção. Nós, cada vez mais, construímos menos casas.

O facto de o PS ter anunciado a abstenção no Orçamento do Estado dificulta a colaboração com a Iniciativa Liberal neste orçamento?

Não dificulta em nada, porque nós nunca nos vamos inibir de apresentar as nossas propostas, seja qual for o cenário final do orçamento.

É normal que o PS não tenha grandes problemas com este orçamento

Houve uma reunião do Governo com os vários partidos, incluindo a Iniciativa Liberal. Houve alguma abertura da parte do Governo para contemplar algumas propostas da Iniciativa Liberal no orçamento?

Houve uma primeira reunião do orçamento, que foi uma reunião muito preliminar. Houve abertura para o diálogo, mas não só não está lá — na proposta de OE entregue na semana passada na Assembleia da República — nada, como é um orçamento que não vai alterar muito em relação aos orçamentos passados. Portanto, é normal que o PS não tenha grandes problemas com este orçamento.

Acha que o Governo desenhou assim este orçamento precisamente porque queria aprová-lo com o PS?

Não sei se houve esse nível de antecipação. Acho que o Governo, nesta matéria, estava mais ou menos à vontade, certo de que o PS ou o Chega acabariam por viabilizar o orçamento. E é por isso que este orçamento também é muito pouco ambicioso.

Como é que a economia se vai revitalizar verdadeiramente quando só se baixa um ponto percentual no IRC às empresas?

Não estava à espera que este Governo de direita privilegiasse mais a sua direita do que a sua esquerda? Sente-se defraudada com isso?

Não, não me sinto defraudada, porque eles negociam com uns e com outros. O Governo é que sabe com quem é que negocia, e a nós compete-nos avaliar os resultados disso. Sinto-me defraudada é quando este Governo fez um conjunto de promessas eleitorais pela segunda vez consecutiva e continua a não ir ao encontro das suas próprias promessas. Nós não podemos cair no absurdo de dizer que baixámos impostos sobre o trabalho, quando aquilo que baixámos são dois ou três euros por mês. Como é que a economia se vai revitalizar verdadeiramente quando só se baixa um ponto percentual no IRC às empresas? Portanto, andamos sempre aqui em loop, sem resolver os problemas das pessoas.

Acha que pode ser uma oportunidade perdida este Governo do PSD?

Não tenho dúvida nenhuma de que, nestas matérias, tem sido uma oportunidade perdida. Percebo algumas das limitações da conjuntura na Assembleia da República, mas há muitas matérias em que, se quisesse, o Governo podia ir mais além — nomeadamente nas descidas de impostos, de forma mais transversal e garantindo a descida significativa que era preciso ter.

Porque é que acha que isso acontece?

Porque nunca se mexe verdadeiramente na despesa do Estado. Como não se quer mexer em muita coisa, acaba por não se fazer praticamente nada.

Despedimentos na função pública?

Precisamente sobre essa despesa do Estado, no final de agosto defendeu o despedimento de quem está a mais na função pública, remetendo uma proposta mais concreta para este Orçamento do Estado. O que é que pretende exatamente, o que é que vai cortar?

Não é uma questão de cortar. Perguntámos ao Governo quantos funcionários públicos é que temos, onde é que estão, em que áreas estão alocados, quais são os seus vencimentos — e o Governo não sabe. Portanto, há aqui uma ausência de informação, de dados concretos, que torna muito difícil perceber a adequação dos meios às necessidades.

Houve um aumento, nos últimos dez anos, de mais de 100 mil funcionários, sem que se vissem melhorias no serviço público decorrentes desse aumento. Eu não faço ideia, nem o Governo faz, se há mais ou se há menos. Porquê? Porque não há dados. Não pode também haver portugueses de primeira e de segunda: pessoas que trabalham em qualquer entidade são avaliadas — se forem muito boas, são recompensadas; se não forem, muitas vezes são dispensadas. Ora, isto não se verifica na função pública, nem quanto à valorização, nem quanto à consequência de uma má atuação. É fundamental que na função pública também haja uma lógica de valorização e de reconhecimento do mérito.

Mas como é que essa mudança se opera?

Para já, é preciso percebermos qual é a realidade na função pública e, depois, é preciso mudar um bocadinho a cultura. É preciso haver um sistema de avaliação. Em última instância, alguém que está completamente desadequado e, após várias tentativas de enquadramento dessa pessoa, se ela de facto não serve, poder ser dispensada.

Em agosto disse que ia apresentar uma proposta na altura da discussão do orçamento. Em que termos, então, é que pretende fazê-lo?

É preciso saber a realidade. Eu já perguntei inúmeras vezes ao Governo qual é a realidade, e o Governo não sabe responder. Muito pelo contrário: o Governo, não só não sabe responder, como diz taxativamente que não vai mexer nos funcionários públicos. O problema da administração pública e o problema do Estado não assentam nos funcionários públicos. Muito pelo contrário, os funcionários públicos são uma parte fundamental da administração pública. Há muitas áreas onde era preciso mexer, mas é preciso perceber a realidade.

Há centenas de institutos, de organismos, de comités, conselhos consultivos — uma panóplia deles, a maior parte com funções duplicadas com outros tantos —, e, portanto, era preciso fazer uma readequação destes organismos todos. Provavelmente extinguir muitos deles. Ora, a maior parte das pessoas que estão nestes organismos são funcionários públicos. É preciso perceber o que é que vamos fazer a essas pessoas, é preciso realocá-las, é preciso perceber onde é que faltam funcionários públicos, para se poder mexer em áreas que são fundamentais para fazer a tal reforma do Estado tão prometida pelo Governo. Mas, para isso, precisamos de saber a realidade.

Um funcionário público nunca é dispensado. Isto, culturalmente, tem de ser alterado

Mas falou também de despedimento.

Os despedimentos são uma questão cultural. Ou seja, se eu estiver numa empresa privada, estou sujeita a critérios relacionados com o meu desempenho: sou dispensada, promovida ou mantida, conforme o meu desempenho. Um funcionário público, não. Um funcionário público nunca é dispensado. Isto, culturalmente, tem de ser alterado.

Quais são os critérios que defende para serem despedidos?

A avaliação.

Então, pessoas com avaliação má?

Claro. Pessoas que, obviamente, não cumpram os objetivos e que, após se tentar... Imagine, uma pessoa pode ter uma avaliação má — não é automaticamente despedida. Não é assim que funciona. É exatamente igual como em qualquer outro sítio: a pessoa é avaliada, tem uma má avaliação, tenta-se perceber o que é que se passa — se é por uma questão de desadequação de funções, se é por uma questão de falta de formação. Formação profissional, em serviço, o que quer que seja. Após essas tentativas de, no fundo, realocar a pessoa a funções onde ela possa ter um melhor desempenho, se de facto nada funciona, então é óbvio...

Acha que a função pública é intocável e não devia ser?

É o mesmo país, mas há dois sistemas diferentes a funcionar: um para as pessoas em geral e outro para os funcionários públicos. É justo que uma pessoa que faz um trabalho mesmo muito bom esteja na cepa torta, sem ser progredida, sem ser aumentada, ou só o seja quando faz X anos de carreira? Dizem que nós queremos despedir. Não. O que eu quero é que os bons sintam que há uma diferença.

Este ministro [da Reforma do Estado] já está em funções há uns quantos meses e eu ainda não vi nada a ser feito

Este Governo tem um Ministério para a Reforma do Estado. Acha que fazer reforma do Estado sem tocar na função pública, na administração pública, é fazer reformas ou é a fingir?

Este ministro já está em funções há uns quantos meses e eu ainda não vi nada a ser feito. Nem sequer um vislumbre daquilo que vai ser feito. Eu vou-lhe dar vários exemplos, mas não é só uma questão de funcionários públicos. É o setor empresarial do Estado. O que é que vão fazer com o setor empresarial do Estado? O que é que vão fazer com as empresas que não apresentam contas há três e quatro anos? Estes organismos todos que existem e que há quatro, cinco, seis, sete — sei lá quantos — organismos para combate à corrupção, para combate a isto e àquilo: vamos olhar para isso e perceber. Nós não podemos ter organismos que só servem para lá pôr pessoas a trabalhar, para nomear pessoas porque é útil. O Governo vai ter coragem de mexer nisso? É que isto não é só os funcionários públicos. O Governo vai ter coragem de mexer nos boys e nas girls que nomeia?

Acha que o Governo está mais preocupado com medidas eleitoralistas e não tem coragem de tocar em certos setores?

Claro. Até porque mexer nestas coisas é mexer sempre com um conjunto de interesses instalados que já existem e que é, de alguma forma, útil ir mantendo.

Luís Montenegro fez do seu slogan aquela ideia de que é um fazedor e que vai reformar o Estado. Os portugueses serão os melhores juízes dessa análise ou dessa avaliação.

Qual é a sua avaliação?

A minha é que não. Ele pode dizer — como diziam — “Deixem o Luís trabalhar”, não é? Mas a verdade é que eu vejo muito pouca coisa a ser feita. A reforma do Estado, então, é gritante — quer dizer, nada foi feito ainda. Reforma do Estado não se pode resumir a digitalizar papéis e a mexer nos processos e torná-los informáticos.

E acha que isso não acontece porque a função pública é uma fatia do eleitorado que pode valer perdas eleitorais graves?

Quando levantei a questão da função pública, o meu objetivo sempre foi mostrar que, de facto, estes dois sistemas não faz sentido manterem-se, até porque penalizam os bons na função pública. E o ministro, a primeira vez que apareceu em público a seguir, foi para dizer: “Não, não, não vamos despedir absolutamente ninguém.”

Viu nessa resposta o quê?

Das duas uma: ou ele fez uma avaliação criteriosa — e era essa avaliação que eu gostava de ter acesso, já agora —, que lhe permita fazer uma afirmação dessas, ou, se ele continua sem saber de nada, como nos respondeu a nós que não sabia, nunca poderia fazer uma afirmação dessas de forma séria.

Rescaldo das autárquicas

Vamos falar sobre as eleições autárquicas que decorreram no último domingo. A Iniciativa Liberal tem criticado várias vezes a classe política por falta de ambição. Os objetivos estabelecidos para estas autárquicas, que foram cumpridos, não foram pouco ambiciosos?

Não, pelo menos do lado da Iniciativa Liberal. É o segundo ato eleitoral autárquico onde marcámos presença; triplicámos o número de eleitos que tínhamos em relação a 2021. O facto de termos conseguido eleger em Castelo Branco e em Braga, em listas próprias, mostra que não somos um partido muito urbano, muito do litoral — estamos a conseguir ir mais para o interior.

A Iniciativa Liberal é sempre comparada com o Chega porque foram eleitos para o Parlamento pela primeira vez ao mesmo tempo. Mas o Chega voltou a eleger muito mais autarcas do que a Iniciativa Liberal.

O Chega tem o percurso que tem, muito graças ao desespero em que as pessoas vivem, e eu, na Iniciativa Liberal, não me importo que o caminho seja mais lento; o que quero é fazê-lo pelas razões certas. E as razões certas são garantir que damos esperança às pessoas e que lhes resolvemos os problemas, e não que nos alimentamos do desespero delas. Portanto, enquanto o país não der soluções às pessoas, é óbvio que os partidos que se alimentam do desespero e de pôr uns contra os outros vão continuar a crescer.

E, em algumas autarquias — o caso de Lisboa e do Porto — o PSD pode ser obrigado, e até agora ainda não excluiu essa possibilidade, a entender-se com o Chega. Está confortável com essa possibilidade?

Daquilo de que me apercebi durante a campanha, todos eles já tinham excluído essa possibilidade. Compete ao presidente da Câmara arranjar as condições de governabilidade. As câmaras também se governam em minoria e consegue-se chegar a bom porto sem necessidade de haver acordos posteriores. Votar um orçamento é muito diferente de fazer um acordo de governação, e é diferente de dar pelouros a partidos da oposição.

Essa é uma linha vermelha?

Claro que é. Isso foi completamente excluído em ambas as candidaturas.

Presidenciais

A candidatura de João Cotrim de Figueiredo tem, para já, nas sondagens, números residuais. A Iniciativa Liberal admite a possibilidade de vir a desistir e apoiar um candidato à direita, como Luís Marques Mendes, ou isso está fora de questão?

Para já, é uma decisão que compete, obviamente, a João Cotrim de Figueiredo e não a mim ou à Iniciativa Liberal. Agora, uma coisa que lhe posso dizer é que duvido muito — conheço bem o João Cotrim de Figueiredo — e, portanto, duvido muito que ele desista. Não acho que isso seja uma opção.

Enquanto líder, preferia ter um candidato a ir a votos na primeira volta?

Sempre.

Comentários
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  • Nem vai dormir
    16 out, 2025 a pensar nisso 18:13
    E o PSD nem vai dormir esta noite a pensar no teu voto contra... Estes partidozecos a armar em gente... Já o Livre também tem a maia de mostrar uma força que está longe, muito longe, de ter. E pelos visto, é contagioso.
  • reativar
    16 out, 2025 coisas de outros tempos 11:11
    Populismo de Direita e uma tentativa mal disfarçada de reativar a guerra Públicos contra Privados. O pior é que o pessoal já percebeu que o que os funcionários públicos perderam, eles não ganharam, e no fim isso virou-se contra eles. Por alguma razão a IL não descola nem tem votação de jeito

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