23 set, 2022 - 07:55 • Pedro Valente Lima
Na contagem decrescente para as eleições gerais em Itália, do próximo domingo, as previsões apontam para um desfecho inédito na história do país: pela primeira vez uma mulher pode liderar o Governo.
No entanto, uma eventual vitória de Giorgia Meloni poderá também significar o regresso da extrema-direita à liderança do executivo italiano desde a queda de Benito Mussolini, no final da II Guerra Mundial. "Il Duce" é uma inspiração e "um bom político" para a líder dos Irmãos de Itália.
Mas afinal, como é que a Itália chegou até aqui? Com uma pitada de traição política, alianças à direita e a ascensão meteórica da romana Giorgia Meloni.
A renúncia de Giuseppe Conte do cargo de primeiro-ministro, no início do ano passado, levou a que Sergio Mattarella, Presidente da República italiana, procurasse uma solução imediata, face à crise motivada pela pandemia da Covid-19.
Foi desse modo que, em fevereiro de 2021, Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu entre 2011 e 2019, foi convidado a formar um Governo de união nacional. O executivo formado por Draghi viria a contar com elementos de partidos de todo o espectro partidário, da direita à esquerda.
Perante os membros do Senado e do Parlamento italianos, a equipa montada por Mario Draghi viria a ser aprovada com uma grande maioria, à exceção dos votos contra do Irmãos de Itália (FdI), partido de extrema-direita liderado por Giorgia Meloni.
Durante ano e meio, o novo Governo viria a gozar de relativa estabilidade. Aliás, a sua resposta à crise da Covid-19 foi louvada internacionalmente, ao ponto de ser um dos fatores de peso para que a Itália fosse escolhida como o "País do Ano de 2021" pela publicação "The Economist".
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Contudo, um pouco à semelhança do caso português, o executivo de Draghi viria a perder o apoio de três partidos de peso a julho deste ano.
Mais concretamente, os populistas de direita do Movimento 5 Estrelas (M5S) rejeitariam uma moção de confiança ao Governo italiano, numa tentativa de recuperar o apoio do eleitorado, que se sentiria "traído" pelo partido "anti-sistema" fazer parte da solução governativa do país.
No seguimento desta opção do M5S, a Liga (L), assim como o atual partido de Silvio Berlusconi, Força Itália (FI), também viriam a retirar o seu apoio a Mario Draghi.
O posicionamento pró-NATO e pró-Ucrânia convicto do então primeiro-ministro também poderá ter entrado em choque com os partidos de Salvini e de Giuseppe Conte, os quais tinham laços próximos com o regime de Putin.
Sem maioria parlamentar, o Governo de Mario Draghi viria a apresentar a sua demissão, que, depois de avanços e recuos, foi aceite pelo Presidente italiano, Sergio Mattarella. Desde então, o primeiro-ministro demissionário tem governado interinamente até às eleições antecipadas deste domingo.
As eleições gerais antecipadas, a realizar este domingo, 25 de setembro, contemplam as escolhas de milhões de eleitores para o Parlamento e Senado italianos. O Governo que daqui sair será o 70.º desde a Segunda Guerra Mundial, um indicativo da habitual instabilidade dos executivos em Itália.
Fruto das alterações à lei, em 2018, as regras serão ligeiramente diferentes este ano. O número de deputados será mais reduzido, passando dos 630 para 400 lugares no Parlamento, enquanto que no Senado baixará dos 315 para os 200 representantes.
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Um terço dos candidatos, para ambas as câmaras parlamentares, serão eleitos por um sistema maioritário de first-past-the-post. Isto é, o partido que obtiver mais votos do que todos os outros, independentemente de chegar aos 50%, garante a totalidade dos lugares em disputa num dado círculo eleitoral.
Os outros dois terços seguirão o método um método mais familiar aos portugueses: a representação proporcional, que elege os deputados em função da percentagem de voto conquistada pelos partidos.
No entanto, ao contrário do que é usual nos sistemas de representação proporcional, a conquista de 40% dos votos não garantirá uma maioria automática.
À cabeça, surge logo um nome que, há um par de anos atrás, seria imprevisível. O Irmãos de Itália, partido de extrema-direita liderado e co-fundado por Giorgia Meloni, nasceu em 2012, fruto de dissidentes do partido de centro-direita O Povo da Liberdade, na altura presidido por Berlusconi.
O início de vida deste novo grupo político foi algo tímido, pelo que nem há quatro anos reunia apenas 4% das intenções de voto dos italianos.
Contudo, nos últimos tempos, o partido tem gozado de uma ascensão apoteótica, conquistando eleitorado aos partidos da direita, como o Movimento 5 Estrelas, o Liga e o Força Itália, aliciando os eleitores com propostas eurocéticas, anti-LGBT e anti-imigração.
Atualmente lidera as preferências dos italianos, com cerca de 25% nas últimas sondagens, realizadas a 9 de setembro (em Itália, é proibido realizar este tipo de inquéritos nas duas semanas semanas que antecedem as eleições).
A reforçar o favoritismo do Irmãos de Itália, surge a coligação montada com outros partidos de direita, a centrodestra ("centro-direita", em português).
Sendo assim, esta "geringonça de direita" é composta ainda pela Liga, o Força Itália e ainda o mais desconhecido Nós, Moderados. Em conjunto, a coligação poderá garantir 48% dos deputados, de acordo com as sondagens.
Esta união de esforços poderá ser uma 'boia de salvação' para a Liga, de Matteo Salvini. O partido de extrema-direita chegou a desfrutar de elevada popularidade em Itália, especialmente pelas suas posições nacionalistas, eurocéticas e anti-imigração.
No entanto, a proximidade ao regime de Vladimir Putin e a censura ao executivo de Draghi terão custado caro, tendo sido um dos partidos 'culpados' pela instabilidade governativa sentida em Itália.
A Liga terá perdido muito do seu eleitorado para o Irmãos de Itália, estacionando agora nos 13% das intenções de voto - uma queda de metade em relação ao final de 2019.
A completar a tríade de ataque está o Força Itália, do antigo primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O partido de direita liberal, refundado em 2013, será aquele que mais se afasta dos ideais populistas e de extrema-direita, defendendo um compromisso com os valores da União Europeia e da NATO
O Força Itália acaba por ser aquele que amealha menos intenções de voto, com apenas 7%. Aos 85 anos, o antigo primeiro-ministro Berlusconi 'acusa' o Irmãos de Itália de lhe ter roubado eleitorado.
De fora da centrodestra ficou o Movimento 5 Estrelas, encabeçado por Giuseppe Conte. O partido populista, apesar de oficialmente não admitir um posicionamento esquerda-direita, é muitas das vezes associado à direita nacionalista, dadas as suas posições eurocéticas e anti-imigração.
Tal como o Liga, o M5S foi também um dos penalizados pela opinião pública italiana, aquando da queda do Governo de Draghi. Contudo, e curiosamente, o partido tem reconquistado as preferências dos eleitores desde a dissolução do Parlamento, contando agora com 13% das intenções de voto.
Por último, e talvez o único rival capaz de fazer frente a Giorgia Meloni, o Partido Democrático quer evitar que a Itália sucumba à extrema-direita.
Liderado por Enrico Letta, também ex-primeiro-ministro italiano, o partido social-democrata e de centro-esquerda receia que as relações do país mediterrânico com a Europa e os aliados do Ocidente seja afetada pelo aparente rumo de extrema-direita que está a tomar.
Ainda entre os meses de julho e agosto, o Partido Democrático tentou formar uma aliança com parceiros ao centro e à esquerda, mas esta viria a colapsar apenas uma semana depois, deixando as hipóteses de futuras coligações em dúvida.
Nas últimas sondagens, segue imediatamente atrás do Irmãos de Itália, com 22%.
Olhar para as propostas do Irmãos de Itália e dos aliados do centrodestra é uma tarefa difícil, dada a postura camaleónica de Giorgia Meloni. Sob o mote "Itália Primeiro", a líder do Fratelli d'Italia não consegue esconder o programa típico da extrema-direita europeia, com um ideário xenófobo e eurocético.
Aliás, as raízes do partido confundem-se com o passado de Giorgia Meloni no Movimento Social Italiano. A candidata chegou a integrar, aos 15 anos, a juventude deste movimento neofascista, fundado imediatamente após a Segunda Guerra Mundial por seguidores do ditador Benito Mussolini.
É também por força deste passado que o Irmãos de Itália é apelidado de partido "neofascista" ou "protofascista". Meloni diz que "já se livrou dos elementos fascistas", afirmando este verão que "há décadas que o fascismo já é história".
Para não espantar e assustar o eleitorado do centro, a líder de 45 anos terá dado indicações ao partido para que os membros evitassem declarações mais extremas, menções à ideologia fascista ou fazerem em público a “saudação romana”, gesto esse semelhante à saudação nazi.
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No entanto, os valores promovidos acabam por não esconder a natureza do partido, como o combate à imigração, a rejeição do casamento homossexual. defesa dos "valores da famílias", assim como a defesa do enfraquecimento da autoridade europeia sobre a soberania nacional de Itália. "A Europa faz menos, mas faz melhor", defende o partido.
Remontando até a declarações da deputada num congresso em 2019, Giorgia Meloni chega mesmo a proferir um conhecido slogan da ditadura do Estado Novo, em Portugal, ao afirmar os pilares do partido: "Deus, Pátria e Família". Outro "mantra" da candidata é: "sou mulher, mãe, cristã e italiana".
Entre os seus principais apoiantes estão, por exemplo, negacionistas da Covid-19 e eurocéticos, especialmente motivados pela crise humanitária dos migrantes do Mediterrâneo. A opção de o Irmãos de Itália ter ficado de fora da solução governativa de Draghi deverá garantir mais votos "anti-sistema".
O Irmãos de Itália pertence, inclusivamente, ao grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus, que, apesar do nome mais amigável, é formado por partidos de direita populista e radical do continente, como o polaco Paz e Justiça (PiS).
Além disso, também é público o apoio de Giorgia Meloni e do seu partido ao Governo de Viktor Órban, primeiro-ministro da "democracia iliberal" da Hungria, nas palavras do próprio chefe do executivo.
Meloni, assim como os aliados do Liga, criticam fortemente a União Europeia, acusando os burocratas de Bruxelas de serem "elites niilistas guiadas pelos interesses financeiros internacionais".
Ainda assim, a candidata aparenta ter adotado uma postura mais moderada e convergente nos últimos tempos.
A líder do Irmãos de Itália compromete-se em respeitar o rumo europeu e transatlântico reforçado por Mario Draghi, especialmente no posicionamento pró-Ucrânia e na defesa das sanções económicas à Rússia. Matéria na qual a Liga, um dos aliados, se mostra mais ambígua.
Em Bruxelas, quando foi presidente do partido Conservadores e Reformistas Europeus, Meloni tornou-se o rosto da extrema-direita europeia no exterior, ganhando legitimidade ao envolver-se com instituições da UE, em vez de rejeitar a integração europeia.
De acordo com Nathalie Tocci, em declarações ao jornal "Financial Times", Giorgia Meloni é uma "eurocética de alma e coração". "Mas o contexto não dá muita margem para experiências, a não ser que queria levar o país à falência", acrescenta a diretora do Instituto Italiano de Relações Internacionais.
Por outro lado, a candidata também promete respeitar as diretrizes fiscais deixadas pelo Governo de Draghi, tentando demonstrar uma liderança responsável da economia.
"Querem ser percecionados como um partido com o qual podes negociar e governar um país", aponta Lorenzo Codogno, antigo diretor-geral do Tesouro Italiano, em declarações ao "Financial Times".
Por estas razões, assim como pela liderança na corrida ao executivo, Meloni e o seu partido serão os expectáveis líderes da coligação centrodestra.
Face à crise social, económica e energética motivada pela Guerra na Ucrânia, a coligação encabeçada por Giorgia Meloni propõe a redução da carga fiscal nos bens essenciais e na energia.
Neste sentido, a coligação quer renegociar o plano de recuperação da Covid-19 da União Europeia, que foi fixado em quase 200 mil milhões de euros, tendo em conta o escalar do preço dos combustíveis.
A centrodestra também defende o corte de impostos nos salários e mostra o desejo de extinguir o "salário do cidadão", subsídio à pobreza implementado pelo governo italiano em 2019. Contudo, defende a canalização de verbas para subsídios e pensões.
Por outro lado, a proposta de Governo passa ainda pelas intenções de reforma do pacto de estabilidade europeu e pela introdução de um sistema de eleição direta do Presidente italiano.
Enrico Letta diz que os italianos enfrentam apenas duas alternativas nas eleições de domingo: "Ou ganha a Europa comunitária, do [programa] Next Generation EU, do Erasmus e da esperança, ou ganha a Europa [do Presidente húngaro, Viktor] Órban, do [partido espanhol] Vox e da [líder da extrema-direita francesa] Marine Le Pen".
"A primeira divisão significa Bruxelas, Alemanha, França, Espanha, os grandes países europeus, os fundadores, como nós. A segunda opção é sermos relegados para a segunda divisão, com a Polónia e a Hungria, opondo-nos a Bruxelas", salientou o candidato do Partido Democrático, num fórum económico este mês.
Apesar da coligação falhada inicialmente, o Partido Democrático irá mesmo concorrer em conjunto com múltiplos partidos de centro e de esquerda, de menor dimensão: o Mais Europa (ME), a Aliança Verde (AV), a Sinistra Italiana (SI) e o Compromisso Cívico (CC).
"A Europa sairá do centro da Europa", receia Enrico Letta.
As propostas do Partido Democrático passam pela aposta nas energias renováveis e no fornecimento de eletricidade gratuita - ou pelo menos a baixos custos - proveniente destas fontas às famílias com maiores dificuldades.
O partido também planeia um corte nos impostos sobre os salários das classes média e baixa e introduzir o salário mínimo de 9 euros à hora. Também promete facilitar a obtenção de cidadania italiana aos filhos de pais imigrantes.
Entre outras medidas, o Partido Democrático também deverá agravar as penas por violência ou discriminação anti-LGBT, legalizar a canábis e reduzir a idade de voto, dos 18 para os 16 anos.
Sem grandes hipóteses de formar Governo, e intenções de se aliar à centrodestra, o partido liderado por Giuseppe Conte corre sozinho às eleições gerais de Itália.
A saída de muitos dos seus membros para o Compromisso Cívico também enfraqueceu a pujança de um partido que chegou a ser parte fulcral do executivo de Draghi.
Numa posição mais modesta desta vez, o M5S mantém-se firme nas suas convicções, propondo a criação de um fundo de recuperação energética europeu e a revisão do pacto de estabilidade da UE.
Por outro lado, também defende a redução dos impostos nos salários dos trabalhadores, apresentando medidas muito similares às do PD em questões sociais.