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Cinema

"Ainda Estou Aqui". Uma história de silêncios

16 jan, 2025 - 09:10 • Redação

O filme "Ainda Estou Aqui" explora questões de memória, resistência e identidade. A Renascença falou com um professor do Brasil, para explicar o contexto histórico da obra.

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Depois de ter sido visto por mais de três milhões de espetadores no Brasil, o filme “Ainda Estou Aqui”, realizado por Walter Salles, chega em Portugal esta quinta-feira. É baseado no livro com o mesmo nome, de Marcelo Rubens Paiva, onde o autor conta a história da sua família — passando pelo desaparecimento do pai, o político Rubens Paiva, durante a ditadura militar e pela doença de Alzheimer da mãe.

Quase 50 salas de cinemas vão receber a longa-metragem que deu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama a Fernanda Torres — e que reúne boas hipóteses de ser nomeado como Melhor Filme Internacional nos Óscares.

Rubens Beyrodt Paiva, era um político brasileiro que, em 1971, foi preso por ter contactado o guerrilheiro Carlos Lamarca. Dado como desaparecido, a família nunca aceitou essa justificação.

A esposa, Eunice Paiva, lutou durante anos para provar o assassinato do marido, mas só em 2014 a Comissão da Verdade emitiu um parecer a confirmar que Paiva foi "morto e desaparecido quando o mesmo se encontrava sob a guarda do Estado brasileiro".

Para saber mais sobre o período em que se passa o filme, a Renascença conversou com João Teófilo, investigador brasileiro com vasta obra publicada sobre o período da ditadura militar e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

O golpe de 1964 e os primeiros anos

Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob o domínio de uma ditadura militar que marcou profundamente a história política, social e cultural do país. Este período iniciou-se com o golpe militar que depôs o presidente eleito João Goulart (Jango), sob o argumento de uma eminente ameaça comunista.

“Foi um golpe construído a partir de uma coligação civil-militar, porque englobou tanto as forças armadas quanto alguns setores muito importantes da sociedade brasileira, como a imprensa”, afirma o professor João Teófilo.

Eleito como deputado em 1962, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Rubens Paiva autoexilou-se após o seu mandato ser anulado em 1964, mas, ao voltar para o Brasil, manteve contacto com exilados, o que mais tarde levou à sua prisão.

Caracterizado por repressão política, censura, tortura e um controlo rígido sobre as instituições democráticas, ainda só se conhece uma pequena parte dos acontecimentos. João Teófilo sublinha que haverá ainda mais de 200 pessoas desaparecidas até hoje.

"E um dos problemas mais evidentes é justamente a questão dos desaparecidos políticos. Onde estão os restos mortais desses desaparecidos políticos? Quem matou? Quem mandou matar? São respostas que a sociedade brasileira, e, sobretudo, as famílias desses desaparecidos, não conseguiram obter até hoje”, destaca o investigador.

João Teófilo lembra ainda que o poder foi consolidado com a edição de Atos Institucionais (AIs), sendo o mais notório o Ato Institucional nº 5 (AI-5). “Instaurado em 13 de dezembro de 1968, entre outras coisas, fechou o Congresso Nacional, suspendeu 'habeas corpus', direitos políticos e outras garantias individuais, além de ter intensificado a censura”.

Censura e repressão

Durante os chamados “anos de chumbo” (1968-1974), o Brasil foi palco de perseguições, torturas e desaparecimentos forçados. O que culminou, ao longo de 21 anos, na morte de milhares de pessoas. Entre elas estava Rubens Paiva.

“E o filme do Walter Salles - o Ainda Estou Aqui - mostra, justamente, como a ditadura afetou a vida de famílias brasileiras. Porque a violência do Estado destruiu famílias, perseguindo mesmo aqueles que não eram propriamente comunistas, como foi o caso do deputado Rubens Paiva.”, afirma João Teófilo.

A ditadura militar implementou uma ampla censura a qualquer grupo que contestasse o regime e “atingiu muito além daqueles que se envolveram na luta armada", sustenta o professor da UEMG. "Tanto é que atingiu indígenas, camponeses, a população LGBTQIA+”, conta.

Mais de 60 mil militares — do Brasil e de outros 22 países da América Latina — tinham passado pela Escola das Américas, no Panamá, onde aprenderam a torturar durante longos períodos, sem provocar a morte da vítima. João Teófilo enfatiza que estes métodos foram usados durante a ditadura, não como um "excesso isolado", mas como política de Estado, praticada de forma sistemática.

Excerto do filme "Os Advogados contra a Ditadura", de Silvio Tendler


O fim do regime e a transição democrática

Em 1970, os grupos de guerrilha começaram a manifestar-se. Com armas simples e falta de conhecimento bélico, a principal tática destes jovens era raptar figuras importantes. O ato de maior destaque foi o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, em troca de 15 presos políticos.

A partir dessa altura, o regime começou a enfrentar pressões internas e externas. A crise económica, aliada à mobilização da sociedade civil — como o movimento das Diretas Já —, e a amnistia política de 1979, contribuiu para a abertura política. Em 1985, o regime acabou, com a eleição indireta de Tancredo Neves.

“O processo de transição que levou à democracia, foi bastante complexo, porque, a diferença de outros países, como a Argentina, o que prevaleceu aqui foi essa impunidade. Os militares deixaram o poder sem ser punidos por seus crimes, porque estavam protegidos pela lei de anistia.”, afirma o investigador.

A Importância da Memória

Na opinião de João Teófilo, uma parte significativa da sociedade brasileira atual, que não viveu esse período, não tem presentes os factos históricos. "O filme 'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles, tem cumprido um papel importante ao relembrar esses eventos", afirma. O filme, que retrata a história de uma família atingida pela repressão, tem gerado debates amplos sobre os impactos da ditadura na sociedade brasileira.

A obra, que alcançou não apenas o público brasileiro, mas também uma audiência internacional, desempenha um papel crucial, considera o investigador: "O filme ajuda a combater o esquecimento e os discursos que tentam apresentar a ditadura sob uma ótica positiva." Para Teófilo, a contribuição do cinema é essencial na construção de uma memória histórica coletiva, pois mostra as consequências da ditadura de forma sensível e acessível.

Numa entrevista ao programa Roda Viva, Marcelo Rubens Paiva conta como é reviver momentos de atentados a democracia. Para si, era algo que desde o princípio do governo de Jair Bolsonaro era evidente, os indícios de uma tentativa de golpe não foram escondidos e já vinham sendo vinculado na mídia.

"Eu nunca pensei que a democracia no Brasil fosse tão robusta, sempre achei que há um grupo que detêm o poder que não consegue enxergar o país como um país de cidadão.", afirma.

O passado que não passa

Olhando para o Brasil de hoje, João Teófilo identifica ainda marcas da ditadura. A luta por justiça é um processo inacabado, que continua a exigir atenção e reflexão, afirma o investigador. Filmes como "Ainda Estou Aqui" desempenham um papel fundamental neste processo, ajudando a manter a memória viva e a combater as tentativas de distorção da história.

"Não podemos amadurecer democraticamente sem enfrentar o nosso passado", conclui o autor. "E uma das perguntas ainda sem resposta é onde estão os desaparecidos políticos e por que ninguém foi responsabilizado por essas mortes".

Comentários
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  • Maria jose
    16 jan, 2025 Baependi 21:03
    Texto excelente. Mto esclarecedor para quem viu o filme é não tem conhecimento da epoca

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