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Instagram, Facebook e Threads

Liberdade de expressão ou desinformação? Zuckerberg “tenta agradar” Trump, mas “põe em causa a democracia”

17 jan, 2025 - 14:31 • Salomé Esteves

Facebook deixa de ter verificação de factos. Medida só afeta os Estados Unidos, mas já preocupa milhões de utilizadores no mundo. À boleia de uma onda de retórica de direita radical, Zuckerberg está a “tentar agradar o novo Presidente”, revertendo políticas de moderação, diversidade e inclusão, uma decisão “nada saudável para a democracia”, diz especialista em populismo.

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Joe Biden lançou o alerta: há uma oligarquia a crescer na América que pode pôr em causa a democracia. No seu discurso de despedida da Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos referia-se, sem nunca dizer nomes, a “um punhado de pessoas ultra-ricas”, onde Mark Zuckerberg, Elon Musk ou Jeff Bezos estão incluídos. Se houvesse dúvidas, Biden foi mais claro: "as redes sociais desistiram de verificar factos", gerando o risco de uma "avalanche de desinformação que facilita o abuso de poder".

Se o X de Elon Musk já vinha a preferiri as chamadas "notas de comunidade" em vez de verificação de factos certificada, o Facebook de Zuckerberg recorria a uma vasta equipa mundial de fact-checkers credenciados e independentes. Mas isso acabou. A 7 de janeiro, o CEO da Meta disse querer “regressar às origens” e acabou com a verificação de factos. Por enquanto, a decisão só é válida nos Estados Unidos.

Zuckerberg pode estar a testar as águas de uma liberdade de expressão “sem limites”. Essa é a convicção de Susana Salgado, investigadora principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, entrevistada pela Renascença. Ao mesmo tempo, o fundador do Facebook esconde que as suas redes sociais “têm algoritmos que favorecem conteúdos divisivos e partidários versus os conteúdos verificados de órgãos de informação”.

A democracia está em risco, como alerta Biden? Na opinião da especialista em populismo, comportamentos odiosos online e desinformação, está. Susana Salgado nota que “há uma inversão sobre o status quo” porque “a direita radical e a extrema-direita acabavam por ser estigmatizadas até há algum tempo e, agora, há uma espécie de promoção dos valores” mais conservadores, reacionários e, em alguns casos, até autoritários.

Acontece que os homens à frente destas grandes plataformas - como Mark Zuckerberg e Elon Musk – se veem “como equalizadores de todo o discurso que acreditam que deve existir, independentemente das consequências”, mesmo que as suas motivações sejam diferentes.

E, conclui Susana Salgado, “tudo isso põe em causa a democracia”.

“O que está aqui em causa não é o direito de cada pessoa à sua opinião, é a forma como as pessoas expressam essas opiniões”

A moderação dos conteúdos, a verificação de factos e a restrição de algum conteúdo e linguagem existe - e existia na Meta, na América - para proteger os utilizadores e mitigar a desinformação.

Susana Salgado alerta que “algumas opiniões são nocivas e podem potenciar discurso de ódios e ter, eventualmente, consequências offline”, especialmente quando abordam temas particularmente sensíveis, como a imigração, os direitos humanos ou as alterações climáticas.

“Algumas opiniões são nocivas e podem potenciar discurso de ódios e ter, eventualmente, consequências offline

E já assistimos a exemplos bem concretos de como as redes sociais podem influenciar eventos políticos. De acordo com o The New York Times, o Governo e o exército do Myanmar utilizaram o Facebook para disseminar propaganda anti-Rohingya durante anos. Na sequência de uma forte campanha online, combinada com décadas de discriminação, mais de 700 mil pessoas Rohingya fugiram para o Bangladesh em agosto de 2017, num êxodo que as Nações Unidas classificaram como “limpeza étnica”. No mês seguinte, reporta a BBC, cerca de 6700 foram mortas.

Nesse mesmo mês de agosto, lê-se na Reuters, o Facebook admitiu que tinha sido “muito lento a prevenir desinformação e discurso de ódio” anti-Rohingya.

Parte destas partilhas e campanhas aconteceu após a Meta ter introduzido o programa de fact-check, em 2016. A alteração na política aconteceu depois das eleições presidenciais de 2016, nos Estados Unidos, em que se provou interferência russa através de uma ação sistemática de desinformação, feita tanto com anúncios como com conteúdo orgânico.

Mas Susana Salgado lembra que “a moderação que estava a ser feita não estava a funcionar propriamente”, ou seja, que “na prática, os limites eram quase nenhuns” e que “em termos de desinformação e discurso de ódio, conseguia-se disseminar facilmente, apesar daquilo que diziam ser os cuidados de moderação”.

A associação GLAAD - ‘Gay and Lesbian Alliance Against Defamation’ -, o maior grupo de defesa das pessoas LGBTQIAPN+ para a comunicação social, concluiu, num estudo, que a Meta não removia publicações anti-trans que violavam a conduta de ódio no Facebook, no Instagram e no Threads.

O Human Rights Watch também acusou a Meta de “silenciar vozes de apoio à Palestina e aos direitos humanos dos palestinianos no Instagram e no Facebook” após as hostilidades que começaram com o ataque do Hamas a Israel a 7 de outubro de 2023.

Nas Filipinas, condena a Amnistia Internacional, as autoridades recorrem ao Facebook para denegrir ativistas pelos direitos humanos, em operações descritas como “red-tagging”.

“Uma forma de tentar agradar o novo Presidente”

A alteração à política de verificação de factos, à edição do código de conduta e a eliminação das políticas de inclusão e diversidade nas plataformas da Meta acontece imediatamente antes da tomada de posse de Donald Trump. Mas não só. Surge meses depois de o recém-eleito Presidente dos Estados Unidos ter ameaçado prender Mark Zuckerberg para a vida, caso o dono da Meta influenciasse o resultado das presidenciais de novembro passado.

Agora, o fundador do Facebook estará presente na tomada de posse de Trump, juntamente com Elon Musk, que até pertencerá à nova administração, ficando à frente do novo departamento de “eficiência governamental”. Jeff Bezzos, o dono da Amazon e do jornal americano The Washington Post, também estará presente.

Mas a relação entre os dois sempre foi atribulada. Em fevereiro de 2023, Trump escreveu na rede social Truth Social que Zuckerberg tinha aldrabado as eleições de 2020, depois de uma doação de dois milhões de euros ao colégio eleitoral da Georgia. Antes disso, Trump foi barrado de utilizar o Facebook depois do ataque ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, mas esta proibição acabaria por ser levantada no início de 2023.

Susana Salgado lembra que “Trump não gostava muito” de Zuckerberg mas, neste momento, o fundador do Facebook - “que sempre teve esta tendência de estar próximo de quem está no poder” - “precisa dos favores de Trump para uma série de coisas”, como, por exemplo, desenvolver certos produtos de inteligência artificial.

“Obviamente, isto não é inocente"

Um estudo de 2024, publicado na revista Nature, concluiu que existe uma “correlação significativa entre ser conservador e a partilha média de afirmações incorretas”. A investigação debruçou-se sobre publicações feitas no antigo Twitter durante as eleições presidenciais de 2020, na América.

Os dados tratados pela equipa revelam que os utilizadores de redes sociais com uma inclinação política para a direita conservadora – definidos como republicanos votantes em Donald Trump - “partilham mais informação com menos qualidade – de acordo com a avaliação de fact-checkers e leigos de centro” do que utilizadores liberais ou com tendência política de esquerda.

Além disso, a investigação também concluiu que utilizadores com ideais de direita conservadora também “partilharam URLs significativamente mais imprecisos do que utilizadores que se estimam serem progressistas” e que “as elites conservadoras partilham mais desinformação do que as elites progressistas”.

Apesar disso, o estudo também refere que a suspensão de contas está mais relacionada com a partilha de informação incorreta, a utilização de linguagem tóxica, apelos à violência e a classificação da conta como um bot do que com a inclinação política à direita per se.

Para a investigadora Susana Salgado, estas diferenças assentam na maneira como o ambiente informativo de esquerda e de direita se tem desenvolvido nos últimos anos. A investigadora explica que os grandes órgãos de comunicação dos Estados Unidos “parecem estar mais à esquerda” e que grupos de direita conservadora, direta radical e extrema-direita começaram a criar meios de informação alternativos que “não seguem as mesmas regras do jornalismo profissional”.

A criação destes novos canais e a disseminação de informação falsa através deles é facilitada pelas redes sociais, especialmente quando não há “nenhum tipo de entrave”.

Nos últimos anos, particularmente a partir de 2016, tanto Mark Zuckerberg como Elon Musk alimentam, segundo Susana Salgado, a perceção de que algumas vozes estão a ser silenciadas por meios de comunicação de esquerda em relação a temas sensíveis, como a imigração ou as alterações climáticas. A especialista em desinformação e teorias da conspiração acrescenta que, “obviamente, isto não é inocente".

Tanto Elon Musk como Mark Zuckerberg acreditam que, não sendo as redes sociais órgãos de informação, não têm de ser regidos pelos mesmos princípios. Foi nessa lógica que Zuckerberg acusou, nas mensagens que tem disseminado desde a alteração das políticas a 7 de janeiro, as entidades responsáveis por verificação dos factos de terem tendências políticas que influenciavam as suas decisões.

Antes de abandonar o cargo, Joe Biden também refletiu sobre o estado da imprensa livre e sobre o peso das redes sociais na disseminação de informação no discurso de despedida, ao notar que "a verdade está manchada de mentiras, contadas em troca de poder e de lucro" e sublinhar que "temos de responsabilizar as redes sociais" pelas consequências das suas decisões.

Para já, as alterações ficam-se pelos Estados Unidos. Mas a decisão repentina de Zuckerberg gerou ondas de preocupação por todo o mundo, especialmente em zonas mais suscetíveis a desinformação, cujas organizações de verificação de factos funcionam quase exclusivamente com os pagamentos da Meta.

Segundo o independente South China Morning Post, muitas empresas dessas regiões podem ser obrigadas a despedir pessoal ou, mesmo, a encerrar se a nova política de Zuckerberg transbordar para o mundo.

Tendo em conta que grande parte destes territórios entram na chamada “maioria global” -- zonas de elevada densidade populacional, como a Ásia, África e América Latina -- milhões de utilizadores podem perder o acesso à verificação de factos, especialmente aqueles que já se encontram sob governos autoritários.

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