05 fev, 2025 - 15:46 • André Rodrigues
A intenção dos Estados Unidos de assumirem o controlo da Faixa de Gaza configura “um profundo desrespeito pelo Direito Internacional”, alerta o embaixador Francisco Seixas da Costa.
Em entrevista à Renascença, o diplomata considera ainda que o facto de Donald Trump querer sobrecarregar a Jordânia e o Egito com mais refugiados palestinianos é algo que nenhum dos países tem capacidade para aceitar e que o mundo não pode acomodar, sob pena de se instalar “a lei da selva”.
Perante tudo isto, Seixas da Costa estranha a ausência de uma reação global da comunidade internacional ao que classifica como um “atropelo” da ordem internacional.
Donald Trump quer que os Estados Unidos assumam o controlo da Faixa de Gaza e admitiu que o território tem um grande potencial para vir a ser uma Riviera do Médio Oriente. É uma afirmação para levar a sério, ou será um excesso verbal do Presidente norte-americano?
Diria que, vindo Trump, hoje já nada nos surpreende. Isto é, Trump garante-nos uma espécie de happening da possibilidade de tudo acontecer e de as decisões mais surpreendentes poderem aparecer com a maior naturalidade, envolvidas naquela linguagem de suposta simplicidade.
A declaração de Gaza segue-se a uma declaração do seu genro, Gerald Kushner, que já tem alguns meses e em que ele dizia que Gaza seria excelente para se fazer dali uma espécie de Cote D’ Azur, uma Riviera no fundo, porque, de facto, o território tem condições e praias fantásticas. Depois, há esse pormenor – que, pelos vistos, é um pouco despiciendo – de viverem ali cerca 1,8 milhões de pessoas, fora aquelas que já morreram, particularmente no último ano. Isso é algo que configura, por parte do Presidente americano, um profundo desrespeito relativamente ao Direito Internacional.
Apesar de tudo, Gaza é um território que vive sob uma tutela Internacional, que tem a ver com a circunstância de ser a terra onde vivem, onde nasceram, milhões de pessoas. Supostamente, essas pessoas teriam o legítimo direito de ali viver.
Há uma opção que Trump faz, não explícita, no sentido de privilegiar o interesse e a segurança da população de Israel face ao interesse e à segurança da população da Palestina.
O que me surpreende, devo confessar, é a circunstância de que, com exceção de algumas pequenas vozes, não ter havido uma reação global, da comunidade Internacional face àquilo que é pura e simplesmente o atropelar do Direito Internacional, num país que acha que tem uma espécie de direito de saque relativamente aos outros. Estamos a voltar um pouco à Idade Média.
Seixas da Costa. "Acha-se normal que dois milhões de pessoas saiam da terra onde nasceram?"
O Presidente norte-americano fala, inclusive, em reconstrução de Gaza depois da reinstalação dos palestinianos noutros locais, insistindo que a Jordânia e o Egito devem aceitar mais refugiados. Existe nesses países a capacidade para assumir esse encargo?
Há fatores cruzados nesta situação. Temos de ter em conta, em primeiro lugar, que a Jordânia é um país altamente dependente, muito frágil. Portanto, a vontade jordana será fácil de dobrar.
Mas, se reparar bem, aqui há dias, Donald Trump disse que parava toda a sua ajuda Internacional, exceto a dos países: Israel e Egito.
A ajuda militar dos Estados Unidos ao Egito manteve-se desde os tempos de Mubarak, passando por todo o período de tentativa democrática dentro do Egito, até ao regresso do general al-Sissi. Nunca a ajuda americana a foi completamente quebrada. Houve um momento em que foi atenuada, mas nunca foi quebrada.
O Egito também é um país altamente dependente. Dito isto, a vontade egípcia nesta matéria em relação a Gaza tem sido muito claramente expressa e nunca o Egito abriu a mais pequena possibilidade.
Porque, no dia em que abrir essa possibilidade, no dia em que deixar que a parte Norte do Sinai seja ocupada por palestinianos, e isso vai criar uma tensão no seu próprio território, difícil de controlar.
Nós sabemos a história dos refugiados palestinianos, sabemos do Setembro Negro nos anos 70; sabemos o que se está a passar no Líbano, que é atualmente o pasto desse efeito de saída dos palestinianos para o Líbano, com os impactos que isso teve no tecido económico e humano do país.
Além disso, há aqui um problema: acha-se normal dois milhões de pessoas saiam da terra onde nasceram? Se o mundo se acomoda a isto, é a lei da selva.
Existe relação entre estas afirmações de Donald Trump sobre Gaza e as que o Presidente norte-americano proferiu, nomeadamente sobre a Gronelândia, o Canal do Panamá, o México e o Canadá?
Na realidade, os Estados Unidos tentam sublinhar, através das palavras de Trump, a primazia dos seus interesses face aos interesses dos outros, sendo que considera que os interesses dos outros são claramente de segunda linha.
Mas, num quadro internacional em que há uma questão de confiança a manter com os aliados, a circunstância de Donald Trump dizer isto face a Israel e face a Gaza, no contexto global do Médio Oriente, configura o tipo de decisão autónoma que os Estados Unidos consideram poder ter no quadro internacional, por cima de interesses e de compromissos que possam existir.
Um alto dirigente do Hamas afirmava que o moviment(...)
Quando falamos do Canadá e do México, para além das questões de fronteiras e para além das questões de droga, há um acordo de livre comércio que foi estabelecido. Inicialmente, chamava-se NAFTA, agora tem outro nome. De qualquer maneira, são dois países, os dois únicos vizinhos terrestres dos Estados Unidos que tinham esse acordo.
Este bullying sobre esses dois países relevou algum recuo, quer por parte desses países, nomeadamente ao nível da colocação de forças militarizadas nas fronteiras, quer por parte dos Estados Unidos no recuo face a estas às tarifas que querem impor.
Significa isto que a força tem muita força. E os Estados Unidos sabem que têm essa força e querem utilizá-la por cima daquilo que sejam as relações de confiança, de amizade e aliança.
E a União Europeia no meio de tudo isto?
Falta-nos essa peça. Nós ainda não sabemos o que é que Trump planeia fazer relativamente à União Europeia e também não sabemos o que é que a União Europeia planeia fazer face a Trump.
Aliás, tendo em atenção aquilo que são as posições da senhora Meloni - que é uma espécie de extrema-direita recuperada -, as posições de Orbán – que é uma extrema-direita, já não recuperável -, tendo em atenção aquilo que são as preocupações securitárias dos países bálticos, da Polónia e, até, dos países nórdicos – que, provavelmente, prevaleceram sobre as preocupações de natureza comercial –, nós não estamos à espera de ver uma União Europeia completamente unida nas suas posições.
Além disso, a União Europeia tem uma característica que é difícil de definir. É uma entidade democrática, que são 27 países, com 27 governos que respondem perante os seus parlamentos e não necessariamente um único governo, como é o caso do Canadá ou o do México, que responde perante o seu Parlamento. Portanto, estamos aqui com uma realidade democrática diferente e vamos ver o que é que Trump vai fazer e vamos ver como é que a Europa se comporta.
Devo confessar que não estou muito otimista em que a Europa seja capaz de de ser firme face aos Estados Unidos.
"Trump gosta de lidar com líderes fortes. A Europa não tem líderes fortes"
Isso em termos comerciais. E em matéria de segurança e defesa?
Não tenho a certeza se, perante aquilo que é a dependência no aspeto securitário, tendo em atenção a situação na Ucrânia, vários países europeus não tenderão a ser mais moderados nessa mesma resposta e não tenderão a diluir um pouco essa resposta à provocação americana, como ela vier e na e na medida em que vier.
Os Estados Unidos sabem isso, sabem que podem pescar dentro da Europa e que podem dividir a Europa porque pressentem que há países que têm uma leitura divergente.
E Trump quer fazer isto rapidamente, antes de haver midterms, antes que haja uma reversão das condições de governabilidade no quadro do Congresso americano. Trump quer fazer uma ação muito rápida e impactante de surpresa, tanto quanto é possível ter essa surpresa com ele. E vai tentar garantir algum efeito imediato e, em particular, consegue sempre ter de facto alguma resposta acomodatícia.
Se reparar, ele tomou decisões relativamente à China e a resposta chinesa foi uma resposta relativamente moderada. Trump gosta de lidar com líderes fortes. A Europa não tem líderes fortes.
Essa conjugação de fatores pode ser uma vantagem para Vladimir Putin?
Não sei. Porque não é muito clara a posição atual de Trump relativamente à questão ucraniana.
Nós já vimos posições muito diferentes por parte da administração e até antes da própria administração Trump estar em funções. Tanto nas declarações de JD Vance e do Conselheiro do Nacional de Segurança de Trump que disse, por exemplo, que agora está disposto a dar dinheiro à Ucrânia, desde que a Ucrânia lhe dê as chamadas terras raras, que é um conjunto de minerais essenciais para as indústrias de alta tecnologia. Ou seja, está a abrir caminho à possibilidade de que o fluxo de armas para a Ucrânia continue.
Portanto, neste momento, Putin está a esperar para ver. É muito curioso que Trump vá falar previamente com Xi Jinping. Putin estaria à espera de ser o primeiro interlocutor em relação a isso.
A Rússia está a tentar crescer tão rapidamente quanto possível, em termos da invasão da Ucrânia, porque sabe que todo o projeto de acordo se fará com base nas posições no terreno.
Esses avanços russos estão a ser muito penosos em termos de recursos humanos, porque a Rússia está a perder muitos soldados para avanços que são muito curtos. Não me parece que, apesar de tudo, a Rússia deva estar neste momento muito satisfeita com a posição de Trump.
Aliás, há uma declaração de há poucas horas de Sergei Lavrov sobre a situação na Palestina, que demonstra um afastamento. Houve, inclusivamente, uma linguagem diferente daquela que vinha de Moscovo quanto às expectativas relativamente a este mandato de Trump.