Siga-nos no Whatsapp

Renascença em Kiev

Três anos, três vozes da guerra. "O futuro da Ucrânia passa apenas por nós"

24 fev, 2025 - 08:00 • José Pedro Frazão

Três anos depois, o futuro e presente da guerra passam por três vozes ucranianas. As de um soldado do batalhão Azov que foi prisioneiro de guerra durante quase todo este tempo. De uma mulher amputada numa perna que quer voltar a combater. Ou de uma jovem de 26 anos que acaba de se alistar ao terceiro ano de guerra.

A+ / A-
Reportagem "Três anos, três vozes da guerra"
Ouça a reportagem do jornalista José Pedro Frazão Fotomontagem: Rodrigo Machado/RR

Iryna teria gostado de ver uma passadeira ocupada em silêncio por mulheres anónimas. O trânsito parado sem buzinas, a polícia associando-se à emoção num cruzamento discreto de Lviv. São nove da manhã e desde que Iryna "Cheka" Rush lançou o minuto de silêncio pelos mortos da guerra, pouco interessa onde o recolhimento se cumpre.

Mariana, 26 anos, assume ela agora o eixo da via num cruzamento de Lviv. Empunha um cartaz que evoca a paramédica Cheka, que partiu para o outro lado do silêncio. Recortou ainda as faces de Roman Ratushny, "Da Vinci", Yuri Ruf, poetas, ativistas e combatentes que a guerra levou para a lenda.

Ninguém parece esquecido ao cabo de três anos. " É importante lembrar toda a gente. É uma memória coletiva que moldamos na nossa cultura". Aos mortos célebres no cartaz azul-amarelo, Mariana juntou os conhecidos de casa. " Aqui, por exemplo", aponta, " está o meu amigo que nasceu na mesma aldeia, dois anos mais novo que eu". Todos os dias são, no fundo, dias de "nove da manhã".

Mobilizar e ser mobilizada

Mariana, que quer ser paramédica militar ou piloto de drones, defende que o destino da guerra só depende dos ucranianos. "Mais do que nunca, acredito que devemos mobilizar todos os nossos recursos e todas as nossas forças. Porque infelizmente estamos a perder o apoio que existia em 2022". A pergunta era sobre o tapete estrangeiro que parece agora ser puxado aos pés ucranianos. "Devemos unir-nos aos países que honram os mesmos valores que nós".

Nascida a oeste nos Cárpatos, crescendo a leste em Luhansk até a guerra estalar em 2014, Mariana prepara uma nova mudança de ares a partir de Lviv. "Estou num processo de candidatura num centro de recrutamento no sentido de me alistar nas Forças Armadas da Ucrânia", anuncia depois do minuto de silêncio. Acredita que os ucranianos devem dar exemplos de que são fortes quando unidos " não interessa o que Trump e todos os outros digam sobre nós".

Entre 62 mil a 68 mil mulheres estão ao serviço das Forças Armadas na Ucrânia, incluindo 5 mil em zonas de combate - era o caso de Cheka, a fundadora dos mais recentes minutos de silêncio na Ucrânia. Uma lei aprovada em Janeiro permite treino militar básico para mulheres, se assim o desejarem. A mobilização feminina para a guerra é também voluntária.

"Devemos mobilizar todos os nossos recursos e todas as nossas forças"
Mariana, 26 anos, em protesto num eixo da via num cruzamento de Lviv Foto: José Pedro Frazão/RR

"Este é um desejo meu, voluntário, que queria ter concretizado em 2022. No entanto surgiram algumas 'nuances', fui adiando esta decisão e fazendo voluntariado. Mas isto não é suficiente. As pessoas têm que ser rendidas e quem senão nós existem para as render?", questiona Mariana que diz querer "aprender o que não se ensina na internet".

O recrutamento para a guerra é um dos temas sensíveis da sociedade ucraniana. Pulularam as denúncias de mobilizações forçadas de rapazes, algumas com recurso comprovado à violência em 2023, a par da saída de milhares de homens em idade de combate em esquemas de corrupção e de evasão às autoridade.

A Ucrânia passou o ano de 2024 a tentar manter o dispositivo humano de guerra e aprovou a diminuição da idade de mobilização de homens de 27 para 25 anos. A exaustão dos contingentes acelerou o debate para a redução da idade até aos 18 anos. Para evitar uma perda geracional ainda mais alargada, Zelensky pondera criar um contrato especial de mobilização para jovens entre os 18 e os 24 anos, que inclui treino militar e vocacional, um prémio de 24 mil dólares e um salário mensal de 3 mil dólares, para além de isenção de juros em créditos à habitação e educação gratuita.

Cansados de quê?

O discurso da unidade esconde fissuras na sociedade ucraniana. Não há apenas os que combatem versus os que desertam. Mykhailo pertence não apenas aos que combatem, como aos que contestam os argumentos da exaustão dos combatentes.

"Mas estão cansados de quê? Olhe à sua volta", desafia-nos numa rua de lojas, pastelarias e restaurantes de Lviv. " Veja, temos aqui café, luz, descontos, tudo parece funcionar. Mas então de que estão cansados?". A mira, veremos mais à frente, estará também apontada à classe política.

Mikhailo, sempre de olho inquieto nas pessoas que passam, já não coloca as mãos atrás das costas como fez no início da pequena entrevista. Já as tirou das luvas, as mãos começaram a ferver. Está sempre em posição de combate.

"Mas estão cansados de quê? Tudo está partido em mim, o meu corpo está queimado. Estive dois anos e meio em cativeiro. E muitos camaradas meus ainda estão". As mãos de Mikhailo respondem à argumentação de defesa com um ataque digital sem luvas. Aproveitando a tradução de uma frase, tira o telemóvel e mostra-nos duas imagens. "Antes do cativeiro", é a senha para mostrar um rapaz bem nutrido na praia. "Depois do cativeiro", antecede a imagem de uma silhueta esquelética.

"Se tivessem guerra com Espanha, talvez entendessem". Soldado Azov não aceita cansaço dos ucranianos
Foto: José Pedro Frazão/RR

Mikhailo pertence à 12ª brigada Azov, cuja passagem para as mãos dos russos a 20 de maio de 2022, após o cerco a Azovstal em Mariupol, só terminou a 13 de Setembro de 2024. A sua libertação decorreu da libertação simultânea de presos russos capturados na ofensiva ucraniana em Kursk.

Sobre o cativeiro que ocupou a maioria destes 3 anos de guerra, não quer falar. "Ainda há soldados nossos na prisão. Falar muito pode prejudicá-los". Há uma atitude especial contra os soldados Azov, sustenta Mikhailo. "Somos provavelmente uma unidade mais motivada e por isso os russos querem fazer-nos mal de todas as maneiras". Ele é um dos 1358 presos de guerra libertados em 2024, cujo total ascende a mais de 4 mil desde o início da invasão russa de larga escala.

A possibilidade de um cessar-fogo que redunde em mais libertações de prisioneiros de guerra é olhada com desconfiança por Mikhailo. " Eles [russos] vão mantê-los em cativeiro até ao fim como moeda de troca. Podem trocar alguns quando acontecer um cessar-fogo, mas não todos. Há muitos civis que não constam sequer das listas". E mais não diz sobre o assunto.

Um país sempre em guerra

Regressando às alegações de exaustão, o militar - agora em férias antes de voltar ao combate - é duro com o poder político. " Estão cansados de quê? Os meus camaradas ainda estão em cativeiro, estão a lutar por este país. Porque nós somos cidadãos deste país e ele pertence-nos, não aos governos que vão e vêm. Nós é que escolhemos este governo".

Segue-se uma explicação sobre a constante luta pela Ucrânia contra Moscovo. "Veja quantas vezes já lutámos contra a Rússia, em territórios com nomes diferentes: o Império, Rus... tanto faz". Pergunta-nos de onde somos para explicar o que é ser vizinho de um país imperial. "Portugal também levou a capital para o Rio de Janeiro e fez do Brasil uma colónia. É a mesma coisa. Eles consideram que somos parte do seu império, mas fomos nós que chegámos primeiro, que lhes trouxemos a civilização".

Numa travessa de Lviv, Mikhailo começa a desfiar história comparada. " Se Portugal estivesse constantemente - não apenas por 5 vezes - em guerra com Espanha, talvez conseguissem perceber o que são estes vizinhos". Enumera então os diferentes países limítrofes da Ucrânia: Federação Russa, Polónia, Bielorrússia, Eslováquia, Hungria e Roménia. " Estivemos em guerra o tempo todo. O nosso território e etnicidade mudaram constantemente devido à densidade da nossa própria sociedade".

Drones, drones, drones

O soldado Azov em férias diz que os ucranianos têm "um código genético que espera permanentemente uma guerra de alguém". Olhar para os países vizinhos, explica Mikhailo, é escolher com quem se guerreia a cada momento. "Quando eles fecham os olhos e nos dizem que está tudo bem, não vai certamente acontecer nada de bom". A Rússia não é de fiar, conclui. "Simplesmente não confiamos neles. Adormecem-nos com a assinatura de um documento, mas não o fazem de verdade. Nunca haverá paz".

E o destino a curto prazo da guerra, com as interrogações que a América vai trazendo desde Trump? "Somos os únicos que fazemos aqui o nosso futuro", responde de pronto. Não serão americanos nem europeus a lutarem pela Ucrânia, explica em rajada.

" Deem-nos armas e o dinheiro das contas russas e é tudo. Nós saberemos o que fazer por nós mesmos". O pedido é simples, a Ucrânia precisa de drones e mais drones. "Como dizem os historiadores, começamos as guerras com as armas do passado e acabamos com ela usando as armas do futuro". Não é por acaso que uma das principais ações da sociedade civil ucraniana é a recolha de fundos para aquisição de drones e de mecanismos de defesa anti aérea nos veículos militares.

"Como soldado, perdi muitos camaradas, em número extraordinário"
Nastia, mulher amputada que quer voltar a combater Foto: José Pedro Frazão/RR

Do lado de cá, no que é civil mais do que militar está agora Fenix, nome de guerra de uma mulher chamada Nastya. No dia 28 de Novembro de 2023, uma explosão atingiu o seu corpo, obrigado a uma amputação parcial da perna esquerda. O marido, também militar, sofreu uma lesão ainda mais grave.

Ambos estão agora no contingente de 380 mil feridos de guerra, nas estimativas do Presidente da Ucrânia. Zelensky apenas admitiu um total de 46 mil mortos, mas vozes americanas têm sussurrado um total de 70 mil baixas ucranianas na frente de batalha.

"Como soldado, perdi muitos camaradas, em número extraordinário. Ao lado de muitos deles, sentei-me na mesma mesa, ri-me com eles, zanguei-me e discuti". Nastia vai falando e contendo a emoção ao mesmo tempo. "Agora percebo que isso não vaio acontecer outra vez. E que agora tenho apenas a memória deles no meu coração". E desfaz-se em lágrimas.

Elas que tudo podem na guerra

Sim, precisam de mais armas, confessa. Mas mais importante é saber as razões pelas quais se combate, diz Nastia, emocionada e enrolada numa bandeira ucraniana. " Quando um soldado passa à vida civil, não vê a guerra à sua frente. Vai ao café ou ao restaurante e olha para tudo como um absurdo. Não percebem porque estão ali. E a motivação vai caindo. E é por isso que precisamos de os apoiar. A guerra acontece aqui no nosso país".

Nastia apela a mais ajuda militar externa para conter as forças russas. "Os nossos soldados precisam de munições. Entendam que a Ucrânia é apenas o campo de batalha entre vocês e a Rússia. Eles não vão parar aqui". O coração de Nastia ficou claramente nas trincheiras. Procura há vários meses que a aceitem de volta, com a sua prótese, nas fileiras.

"Embora tenha uma pequena amputação, posso também pegar numa arma, levar a munição que sempre tive. Tenho força suficiente para continuar a combater. Porque há muitas pessoas pelas quais vale a pena lutar". Voluntária ou não, Nastia é de um género que não verga. Uma mulher pode fazer tudo na frente de batalha, garante-nos. " Pode ter a intuição mais valiosa, ser mais inteligente que um homem. E isso pode ser decisivo na frente de batalha".

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+