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Renascença na Ucrânia

​Nobel da Paz ucraniana denuncia: "Pessoas estão a ser esquecidas" nas discussões sobre o fim da guerra

28 fev, 2025 - 16:39 • José Pedro Frazão , enviado especial à Ucrânia

Em entrevista à Renascença em Kiev, Oleksandra Matviichuk assume que está a usar o Nobel da Paz para “salvar vidas”. A advogada está no epicentro da recolha de provas de crimes de guerra contra Putin neste conflito. Para a jurista, a Europa tem que acordar para a realidade, porque o plano da Rússia é conquistar território.

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"Pessoas estão a ser esquecidas" nas discussões sobre o fim da guerra
"Pessoas estão a ser esquecidas" nas discussões sobre o fim da guerra

A ucraniana Oleksandra Matviichuk, galardoada com o Nobel da Paz em 2022, recebeu a Renascença no seu gabinete num contexto em que se procuram saídas para a guerra enquanto o Presidente russo, Vladimir Putin, continua atacar Kiev com vagas noturnas de "drones".

O comportamento de Putin impede a possibilidade da paz, defende esta especialista em direitos humanos do Centro para as Liberdades Cívicas.

Vivemos numa situação muito complexa e muitos pensam que este pode ser o último ano de guerra. Está otimista?

Não, infelizmente não. Putin começou esta guerra em larga escala não porque quisesse ocupar apenas uma parte do território ucraniano ou bombardeá-lo. Não. Putin começou esta guerra em larga escala porque queria ocupar e destruir toda a Ucrânia. E vai mais longe, pensa na restauração forçada do Império Russo. Sonha com o seu legado.

O problema é que, mesmo depois de três anos de guerra alargada e 11 anos de guerra como um todo, apesar de todas as perdas humanas, ele não se recusa a perseguir o seu objetivo, porque a vida humana é o recurso mais barato do Estado russo. Portanto, se queremos obter uma paz sustentável, temos de conceber garantias de segurança, que tornem impossível a Putin alcançar o seu objetivo, e não apenas adiá-lo no tempo.

"Quando falamos de garantias de segurança, não é apenas para os ucranianos. Falamos do nosso futuro europeu comum"

Que tipo de garantia de segurança? Essa é a expressão mais recente que ouvimos aqui em Kiev. Acha que a Ucrânia tem realmente de contar com o apoio americano para isso?

Permitam-me que responda assim. A Rússia é um império. Um império tem um centro, mas não tem fronteiras. Um império tenta sempre expandir-se. As pessoas na União Europeia têm de compreender que só estão seguras porque os ucranianos continuam a lutar.

Portanto, quando falamos de garantias de segurança, não é apenas para os ucranianos. Falamos do nosso futuro europeu comum. E há várias opções.

A primeira, e mais preferível, é a adesão à NATO. A Ucrânia será não só um beneficiário, mas também o mais forte contribuinte para a segurança da Aliança. E não são apenas palavras. Nós provamo-lo no campo de batalha. Temos o maior exército da Europa. Um exército com uma verdadeira experiência militar para lutar com os russos, que pode impedir os russos e Putin de fazerem todas estas coisas erradas.

Os nossos parceiros internacionais, não apenas a Rússia, acharam que não tínhamos hipótese de resistir e apenas a base na Ucrânia seria ocupada. Mas, devido ao cenário tão difícil do ponto de vista político, temos de pensar noutra alternativa.

Outra variante das garantias de segurança pode ser um complexo de medidas coletivas abrangentes de dissuasão e reação, de diferentes países- não só para a Ucrânia, mas para a sua própria segurança - que terá o mesmo impacto que o artigo 5.º do Tratado de Washington.

Mas isso significa que a Europa tem de estar realmente na vanguarda desta realidade. Pensa que a Europa está disposta a ocupar este lugar?

Será que a Europa tem alguma hipótese de não o fazer? Entrevistei centenas de pessoas que sobreviveram ao cativeiro russo. Disseram-me que os russos veem o seu futuro assim: primeiro, ocuparemos a Ucrânia e, depois, juntamente convosco, iremos conquistar outros países. O processo de mobilização forçada de ucranianos para o exército russo ao longo dos anos está a decorrer nos territórios ocupados.

Temos em territórios ocupados 1,6 milhões de crianças ucranianas que foram doutrinadas e militarizadas pelos russos. Aos 14 anos, estas crianças receberão passaportes russos. Aos 18 anos, estas crianças serão recrutadas à força para o exército russo.

Portanto, a Europa não tem hipóteses. A Europa tem de acordar. Estamos a falar de segurança e não apenas para as pessoas na Ucrânia.

"Trump? Ouvimos falar de minerais naturais, da NATO, de possíveis concessões territoriais, mas não de pessoas"

Parece uma corrida contra o tempo.

Não temos tempo. Porque a Rússia estava a preparar-se para isto há longos anos. Acabámos de chegar aos últimos oito anos de negociações de paz. Tivemos dois acordos de paz com a Rússia. Tivemos um cessar-fogo, que a Rússia violou diariamente. E as pessoas estavam a morrer. Como é que a Rússia usou esses oito anos de guerras anteriores?

Olhando, então, todo esse processo no momento, não parece assim tão otimista...

Olho para o futuro com otimismo. Mas vivemos tempos desafiadores, que exigem a expressão de uma verdadeira coragem, de uma verdadeira responsabilidade, de uma verdadeira liderança.

O que pode prevenir outra violação do cessar-fogo?

Mais uma vez, temos de sair da zona de conforto e conceber garantias de segurança coletiva. Porque os russos costumam discutir na TV russa qual o próximo país que vão atacar. A Europa não tem tempo.

O quadro anterior, com a OSCE ou a ONU, já não se aplica a este tipo de situação?

Lamento dizê-lo, mas a ordem mundial está a desmoronar-se diante dos nossos olhos. O mundo dos Conselhos de Segurança está paralisado. Agora, temos os Estados Unidos com uma nova presidência. As lideranças europeias não estão confiantes se os EUA vão ou não permanecer na NATO. Tomaram a sua segurança como garantida durante décadas. O tempo passou. Têm de assumir a responsabilidade pela sua própria segurança.

Como comenta o facto de o Presidente dos Estados Unidos falar de forma pouco áspera sobre Putin, aquele que acabou de descrever como um grande ditador? Isso compromete a possibilidade de processar Putin?

Não sei qual é o interesse do Presidente Donald Trump nesse processo. Mas compreendo muito claramente qual é o interesse dos ucranianos e o interesse da União Europeia neste processo. O nosso interesse é parar Putin na Ucrânia, não permitir que ele vá mais longe.

Mas falar com Putin não é a melhor maneira de lidar com alguém que chama de ditador...

A melhor maneira de falar com Putin não é sem a Ucrânia e sem a União Europeia. Porque Putin começou esta guerra não em fevereiro de 2022, mas em fevereiro de 2015, quando o regime autoritário na Ucrânia entrou em colapso após a "Revolução da Dignidade" e a Ucrânia teve a oportunidade de fazer uma transição democrática e aderir à União Europeia. Assim, pelo senso comum, a Ucrânia e a União Europeia têm de estar sobre a mesa quando discutimos o nosso futuro europeu. É a nossa casa.

Atua na área dos direitos humanos. Falando sobre pessoas, não pensa que o que estamos ouvindo de Trump e dos Estados Unidos é menos sobre pessoas e mais sobre acordos, minerais, economia?

Mas eles não discutem as pessoas, de todo. Ouvimos falar de minerais naturais, da NATO, de possíveis concessões territoriais, mas não de pessoas. Tenho muitas perguntas como advogada em matéria de direitos humanos. O que será das 20 mil crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia? Estas crianças foram separadas dos pais. O campo de erradicação russo de Putin disse-lhes que eles não são ucranianos, que são crianças russas, que os seus pais os rejeitaram e que serão adotados por famílias russas que os criarão na Rússia.

O que acontecerá com milhares e milhares de civis detidos ilegalmente e prisioneiros de guerra, sujeitos diariamente a tortura e ultraje? Falei com centenas de pessoas que sobreviveram ao cativeiro russo. Contaram-me como foram espancadas, violadas, esmagadas em caixas de madeira, cortaram-lhes os dedos, arrancaram-lhes as unhas, aplicaram choques elétricos na genitália. Nestas circunstâncias, uma parte das pessoas não têm qualquer hipótese de estarem vivas até ao final destas conversações.

O que será das pessoas nos territórios ocupados em geral? Não têm ferramentas para se defenderem. A ocupação russa não é apenas mudar um Estado e levar a outro. A ocupação russa significa tortura, violação, negação da sua identidade, adoção forçada dos seus próprios filhos, campos de separação e valas comuns.

Vai avançar com este tipo de processo? Como está o processo legal nisto?

Estamos a documentar crimes desta guerra que a Rússia infligiu em grande parte à Ucrânia durante 11 anos. Temos na nossa base de dados conjunta mais de 81 mil episódios apenas dos últimos três anos de guerra em grande escala. E documentamos estes episódios não apenas para o Arquivo Nacional.

Tenho um enorme respeito pelo trabalho dos historiadores, mas sou advogada. Temos documentado para fazer justiça. Porque a justiça está condicionada à paz sustentável na nossa região, onde a Rússia durante décadas vem usando a guerra como uma ferramenta para alcançar os seus interesses geopolíticos e durante décadas usa os crimes de guerra como um método para vencer as guerras.

O sistema de justiça internacional está preparado para processar e lidar com toda esta quantidade de provas que vai carregar?

Não, este sistema está sob ataque. Porque quando toda a ordem internacional está colapsada, não pode ter um paraíso de justiça.

É impossível quando outra parte do sistema está a sangrar. Mas o que me dá esperança é compreender que os crimes internacionais não têm prazo de prescrição. O que significa que, se não formos capazes de processar Putin hoje, quando amanhã isso for possível, usaremos essa oportunidade.

E há mais do que Putin? Se Putin morrer, vão restar provavelmente muitos outros?

Infelizmente, não é apenas a guerra de uma pessoa. Com certeza, Putin é responsável pelo crime de agressão, pelos seus crimes de liderança. Mas toda esta violação, tortura e doutrinação de crianças ucranianas e separação das suas famílias é feita pelos chamados russos comuns. E Putin governa este país não apenas com repressão e censura, mas com um contrato social especial, como uma ideia que está enraizada na mente do povo russo.

É muito difícil de entender, mas o povo russo acredita que tem o direito de invadir outro país, fazer perder a sua identidade e matar pessoas, a fim de restaurar à força o império russo. Eles veem a sua glória na restauração forçada do império russo.

Houve erros cometidos num aspeto das minorias da Ucrânia? Houve ou não algum tipo de má gestão da situação em relação às minorias?

Não somos a democracia ideal. Desculpem-nos, mas há apenas 11 anos saltámos de um governo autoritário russo corrupto. Portanto, com certeza, há muitos problemas que têm de ser resolvidos. E estamos no caminho certo, estamos a fazer mudanças e reformas democráticas, mesmo durante a guerra, que é muito difícil. Mas não é a razão desta guerra.

Putin começou esta guerra porque não tem medo da NATO ou porque se preocupa com as minorias. É por ter medo da liberdade, que se aproximou das fronteiras russas.

Existe espaço na Ucrânia democrática para uma sociedade multiétnica com pessoas também russófonas?

Quando observa o exército russo, as pessoas que se estão a voluntariar primeiro, são as de língua russa de regiões orientais, porque estão a defender a sua casa.

Fale-me sobre as mulheres. O que está a ser feito do lado ocupado?

A Rússia desencadeou o terror contra civis nos territórios ocupados. É uma maneira muito cínica de garantir o controlo sobre a região. A violência sexual faz parte do plano, faz parte deste manual de crimes de guerra.

Como funciona? Através de um indivíduo concreto, os russos visam toda a comunidade. Porque os sobreviventes de violência sexual sentem vergonha. Os seus membros, nas suas famílias, muitas violações foram realizadas aos seus próprios olhos.

Eles sentem culpa, porque não conseguiram pará-lo. E outros membros da comunidade sentem medo, porque podem ser submetidos amanhã ao mesmo tratamento. Então, toda essa mistura complexa de sentimentos, vergonha, medo, culpa, diminui a conexão social entre as pessoas e a comunidade. E ajuda os russos a salvar o controlo sobre a região.

Na maioria da população ucraniana deste lado da fronteira, as mulheres têm um grande fardo nesta situação, com as suas famílias e assim por diante. E também na saúde mental.

Os russos usam a dor como uma ferramenta para quebrar a resistência das pessoas e ocupar o país. Milhões de ucranianos estão a sofrer. Há dois dias, à noite, levantei-me devido a explosões. E de manhã, percebi que um prédio residencial foi atingido na região de Kiev, e uma bela família de uma jornalista e um cirurgião foi morta. Poderia ter sido a minha casa. Poderia ser a sua casa

É uma lotaria. Quando vamos para a cama, não fazemos ideia se vamos ou não levantar-nos na manhã seguinte. Porque a Rússia mantém edifícios residenciais, escolas, igrejas, hospitais.

Então, mesmo que esteja longe da linha de frente, não se está seguro. Com certeza, isto proporciona um enorme fardo para a saúde psicológica. Mas temos que encontrar uma maneira de transferir essa dor para energia coletiva, que pode defender a vida. É a nossa maneira de resistir.

Há espaço para o debate interno na Ucrânia numa altura em que está em unidade contra um inimigo como a Rússia?

Se são forem ucranianos, saberão que não tratamos o nosso governo como algo sagrado. Há muitas críticas a Zelensky e ao seu governo e parlamento, as pessoas criticam decisões e políticas diferentes.

Mas todos sabemos que, a nível externo, estes políticos democraticamente eleitos expressam a nossa vontade. Quando o Presidente Zelensky fala de sanções, de garantias de segurança, da identidade ucraniana, do nosso futuro democrático, ele expressa a nossa vontade. Portanto, não há problema dentro do país em criticar o poder.

Somos uma democracia, mesmo estando em transição. Mas estamos unidos quando falamos a nível internacional.

Falando de criminalidade transnacional, muitas pessoas são levadas a esquemas de tráfico de seres humanos. Poderá a Europa fazer mais em relação a este quadro jurídico?

Penso que sim. A Europa pode também conduzir a sua própria investigação anticorrupção no seu próprio país e encontrar dinheiro russo e influência russa. Porque esta guerra não tem apenas dimensão militar. Esta guerra tem dimensão económica, dimensão comercial, dimensão de valor, dimensão informativa.

E há muitas empresas ocidentais que ainda vendem na Rússia. Quando olhamos para os aviões e "drones" que caíram em territórios ucranianos, encontramos lá componentes ocidentais. Como é possível? Onde está a sua investigação externa? Como é que as suas empresas vendem os seus produtos para a Rússia?

Passaram três anos. O que fez com o seu Prémio Nobel da Paz?

Durante décadas, a voz dos defensores dos direitos humanos não foi ouvida. Dissemos que a paz e os direitos humanos estão umbilicalmente ligados. Que um país, que violou grosseiramente os direitos humanos, constituiu ameaça não só para os seus próprios cidadãos, mas também para a paz em geral. Que a Rússia que cometeu crimes na Chechénia, na Moldávia, na Geórgia, no Mali, na Líbia, na Síria e permaneceu impune, é uma ameaça. Porque a Rússia começou a acreditar que pode fazer o que quiser.

E não fomos ouvidos. O mundo civilizado fechou os olhos a tudo o que os russos fizeram com a sua própria sociedade civil, porque mataram jornalistas russos, prenderam ativistas russos. Noutros países, continuam a fazer negócios como habitualmente com a Rússia, apertam a mão de Putin.

E mesmo quando a Rússia ocupou a Crimeia, as sanções foram tão fracas que apenas encorajaram os russos a ir mais longe. Assim, o Prémio Nobel da Paz dá-nos a oportunidade de sermos ouvidos. Quando baseamos as nossas decisões apenas nos nossos próprios benefícios e não pensamos em valores, mesmo que beneficiemos a curto prazo, todos aguardaremos uma catástrofe a longo prazo.

Reforça o vosso posicionamento no domínio do direito internacional?

Dá-nos a oportunidade de falar com pessoas que ainda têm esta capacidade de distinguir entre o bem e o mal.

Sente-se pressionada e perseguida por ter esse tipo de atenção na sua vida?

Sinto uma responsabilidade enorme. Estamos a morrer. Todos os dias morrem ucranianos nos campos de batalha, nos territórios ocupados, nas prisões russas. E estou muito honestamente a tentar aproveitar esta oportunidade que o Prémio Nobel da Paz nos proporciona para salvar pessoas.

Imagina-se a viver, no tempo de vida que tenha, em paz com a Rússia?

A resposta honesta é que não sei. Quando discutimos o assunto com os meus amigos, colegas russos no domínio dos direitos humanos, eles dizem-nos que a única forma de o conseguir é a Ucrânia ser bem-sucedida. Porque só o sucesso da Ucrânia oferece uma oportunidade para o futuro democrático do Estado russo.

Há muita raiva na Ucrânia, por causa da forma como tem vindo a demolir a própria sociedade. Será um processo de cura muito longo se conseguirem a paz. Será possível fazer isso também no seu tempo de vida?

Sei que a justiça pode proporcionar um enorme efeito curativo. Porque quando se sente essa justiça, pode-se superar a dor e ir mais longe.

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