26 mar, 2025 - 07:00 • Ana Catarina André
Peter Scholten, professor na Erasmus University Rotterdam e especialista em governança da migração, considera que atualmente há uma tendência para associar as migrações a outro tipo de problemas de áreas tão diferentes como a segurança ou a habitação.
“O modo como falamos e como nos sentimos em relação às migrações está muito desfasado da realidade”, afirma Peter Scholten.
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Em entrevista à Renascença, o especialista neerlandês fala numa “obsessão” pelo tema e diz que enquanto Donald Trump “mostra força nas fronteiras”, através das deportações de migrantes ilegais e da construção de um muro entre o México e os EUA, também “liberaliza as migrações laborais”. “A Europa faz mais ou menos o mesmo”, constata.
Está em Lisboa enquanto orador da conferência "The Migration Obsession" (A obsessão pela migração). Até que ponto estamos de facto, enquanto sociedade, obcecados com este tema?
Se olharmos para a Europa, todos os países estão a decidir as eleições, a focar os seus debates políticos, debates mediáticos nas migrações. Não há nada de errado na atenção às migrações. É muito bom como qualquer tópico sobre o qual queremos falar numa democracia. A atenção para com as migrações é ótima, mas a dimensão e o modo como fazemos isso tem traços de obsessão.
Qualquer problema que vemos relacionamo-lo às migrações. Por exemplo, a AfD, na Alemanha, os conservadores, no Reino Unido, quando falam sobre os problemas da habitação, não falam sobre o setor imobiliário per si ou sobre as políticas habitacionais em geral, mas relacionam-nos imediatamente à migração. [Dizem que] há problemas na habitação, porque há muitos migrantes a chegar. Os problemas da internacionalização do ensino superior ou a crescente influência de inglês não são vistos como um sinal de globalização, mas como um problema de migrações. Quando há um problema de segurança, num bairro, por exemplo, ou acontece alguma coisa e há um migrante envolvido, não olhamos para isso como um problema de ordem pública ou como qualquer outro problema de segurança, mas como algo maior que tem a ver com a chegada de migrantes e com o medo que se espalha.
Acho que o modo como falamos e como nos sentimos em relação às migrações está muito desfasado da realidade. As obsessões são irracionais, não se pode acalmar obsessões apenas olhando para factos.
O que é que pode explicar que isso aconteça? Sempre houve migrações na história da humanidade.
Esse é o ponto. As migrações são normais. Portugal é de facto uma sociedade migratória. Sempre foi assim. Há portugueses em todo o mundo. Em Roterdão, onde moro, há muitos portugueses, que são também novos habitantes da minha cidade. Se andar de metro ou andar pelas ruas aqui [em Lisboa], vejo uma cidade muito diversa.
Também sabemos que há mais migrações quando a economia corre bem. Por outro lado, quando o número de migrantes diminui, a economia não está tão bem. As migrações são normais. Então, porque é que fazemos uma confusão tão grande sobre isso e ficamos tão obcecados? Porque é que estamos constantemente a dizer uns aos outros que é um fenómeno novo?
Por exemplo, se for aqui na rua – e tenho muito respeito pelos portugueses –, estou confiante, tal como acontece com os holandeses ou os alemães, que se lhes perguntar quantos migrantes estão a chegar ao país, se esse número está a aumentar ou a diminuir, as pessoas serão muito irrealistas no que dizem. Provavelmente sobrestimam dez vezes os dados. Dirão sempre que há mais migração agora do que no passado. É um fenómeno estranho.
"O modo como falamos e como nos sentimos em relação às migrações está muito desfasado da realidade"
A explicação pode estar nos partidos políticos da direita e na forma como falam sobre migrações?
Há vários mecanismos que estão por trás desta obsessão pelas migrações. Um deles é, de facto, o aumento do nacionalismo político. Apesar de vivermos num tempo de globalização sem precedentes, ou talvez porque vivemos num tempo de globalização sem precedentes, há também uma reação contra.
Os partidos populistas assumem as migrações como um tema simbólico de luta contra a agenda de globalização, espalhando o medo diante da globalização e fazendo com que as pessoas se preocupem e se sintam inseguras sobre o que é a globalização e o que as mudanças na sociedade significam.
Acho que os partidos populistas têm sido incrivelmente bem-sucedidos a fazer isso. Ainda assim, não podemos dizer que é apenas por causa dos partidos populistas que isso acontece. Esse não é o tipo de poder que os partidos populistas têm. As sociedades dão-lhes esse poder devido a outros mecanismos.
Perante esta obsessão com as migrações, não devemos dizer que não há nada realmente a acontecer. As pessoas estão preocupadas com a globalização. A globalização implica mudanças rápidas e traz vencedores e perdedores, e isso geralmente não tem nada a ver com migrações, mas está ligado às migrações. Os partidos associam o medo da globalização com as migrações. Muito do debate sobre migrações é, na verdade, sobre globalização. Talvez seja por isso que os números são tão exagerados, porque se transformam num símbolo para a globalização. Mas há muito mais.
Como por exemplo?
A lógica dos media. As migrações têm algo que a inteligência artificial e, até mesmo, as alterações climáticas não têm. São incrivelmente dramáticas, pessoais, e prestam-se a histórias incríveis sobre o que há de errado na sociedade. Há estudos interessantes sobre a lógica dos media.
Sempre tivemos os media e as migrações, mas media profissionais e com informação verificada. Agora, temos uma influência cada vez maior das redes sociais e uma grande influência das redes sociais nos media tradicionais. Nas redes sociais, vemos este enfoque exagerado nas migrações. Há algo nas migrações que as tornam muito visuais, narrativas. As pessoas querem ler sobre o tema, clicam nele. Além dos media, há ainda outros partidos políticos.
Quais?
Não me refiro apenas aos partidos populistas. Os partidos mainstream nunca se decidiram sobre o tema das migrações. Têm uma certa ambiguidade. Os ingleses costumam dizer: "leia a sala” – acho que os partidos populistas leram a sala e os partidos mainstream saíram da sala, porque ficaram muito assustados com o conflito interno sobre o tema.
Na Europa, os partidos social-democratas tiveram sempre dificuldade com esta fricção existente dentro dos seus próprios partidos entre a solidariedade internacional com os pobres, incluindo os migrantes, e a escuta da população de classe trabalhadora que se sente assustada e que é realmente assustada pelas narrativas públicas sobre a migração. Estes partidos nunca criaram uma narrativa muito clara contra o populismo. O mesmo acontece com os partidos cristãos democratas em toda a Europa.
"Os partidos mainstream nunca se decidiram sobre o tema das migrações. Têm uma certa ambiguidade"
De que modo?
Têm-se confrontado com diversas questões: estão a defender os valores da liberdade religiosa ou estão a defender o Cristianismo? A chegada de migrantes de outras religiões é algo que não querem? Estes partidos estão divididos internamente. O mesmo acontece com os partidos liberais que, na Europa, são uma junção entre liberalismo, o que significa fronteiras abertas, liberdade de movimentos, e um conservadorismo associado à preservação da identidade cultural nacional. Muitos destes partidos conservadores estão também eles divididos internamente, porque, na verdade, as migrações acabam por cortar o coração destes partidos mainstream que se esquivaram de impor outras narrativas contra as narrativas populistas.
O que seria Portugal, o que seria Lisboa sem migrantes? Qual é o valor acrescido da migração para a economia? O que aconteceria se fechassem as fronteiras e se restringisse as migrações laborais em grande escala? Quais seriam as verdadeiras consequências? Esta seria uma ótima narrativa para entrar na sala e reclamar este campo, mas o que vejo em toda a Europa são partidos a fugir disso.
Os partidos populistas são muito importantes, mas não apenas eles. Usam este campo fértil que envolve também racismo, discriminação e nacionalismo, mas não apenas isso. A obsessão pelas migrações deixa-os produzirem isso e não são suficientemente contestados pelos outros partidos.
Concorda que os migrantes não são todos vistos e aceites da mesma forma? Basta pensarmos nos ucranianos e nas pessoas vindas de países asiáticos como o Bangladesh, por exemplo...
A obsessão pelas migrações também se alimenta de uma mistura entre racismo e nacionalismo. Muitas vezes, o termo migração refere-se apenas a migrantes internacionais, e não a pessoas que vêm do Porto para Lisboa, ou vice-versa. Isso é problemático. Até podemos dizer que há uma forma de racismo e de nacionalismo na nossa língua, porque apenas dizemos que alguém é migrante, quando há um problema associado a ele.
Se eu me instalasse aqui [em Lisboa], considerar-me-ia um imigrante, mas provavelmente seria apelidado de trabalhador qualificado, um especialista, ou algo semelhante, e não como verdadeiro imigrante. Provavelmente, não seria sujeito a uma política de integração, porque só se faz isso quando uma categoria é etiquetada como um problema. A nossa língua está entranhada com este tipo de nacionalismo misturado com o velho racismo que nunca deixou as nossas sociedades.
"Trump, enquanto mostra força nas fronteiras, liberaliza as migrações laborais. A Europa faz mais ou menos o mesmo"
A União Europeia lida há vários anos com a chegada de milhares de imigrantes às suas costas. Considera que tem havido uma evolução positiva na forma como se tem lidado com a questão, no modo como estas pessoas são acolhidas e recebidas?
Acho que as cenas dramáticas no Mediterrâneo, de pessoas que morreram no caminho, também mostram como essa obsessão pelas migrações não é apenas um tema político, narrativo ou de linguagem. Tem consequências reais. Os políticos europeus julgam que é necessário mostrar força de vez em quando, e essa força tem consequências humanas e conduz a tragédias. As tragédias acontecem em vários lados: em primeiro lugar, nas pessoas que morrem no Mediterrâneo, mas, também, na distribuição desigual das consequências deste tipo de fluxo migratório (alguns países europeus empurram o tema para outros).
Esta é apenas a ponta do icebergue. Assim se veem as consequências de um discurso politizado e a necessidade de os governos mostrarem ao eleitorado que estão a fazer alguma coisa. Trump está a fazer o mesmo com as deportações forçadas e com a construção do muro na fronteira com o México. Ele quer convencer o eleitorado que mantém a sua palavra e está a ser duro para com a migração, porque isso lhe dá popularidade. Se olharmos com profundidade para a questão, conseguimos perceber que a União Europeia e os EUA são muito dependentes da imigração. É uma realidade. A economia europeia precisa de imigração em grande escala. Isso é um bom sinal, porque uma economia próspera precisa de migração; uma economia pobre não. Trump está muito consciente disso relativamente aos EUA. Enquanto mostra força nas fronteiras, liberaliza as migrações laborais. A Europa faz mais ou menos o mesmo. Também se prepara para a migração laboral com o esquema de cartão azul.
A migração é um fenómeno normal. Sempre foi assim também na União Europeia. Estas tragédias que vemos no Mediterrâneo são consequência dos nossos discursos e da necessidade política de mostrar força no que diz respeito à gestão ou à regulamentação da migração. A migração motivada por causas humanitárias é apenas uma parte muito pequena da migração em geral. A maior parte da migração é laboral ou está relacionada com a família. A migração por amor sempre foi e sempre será uma das principais razões para explicar estes fenómenos. Não para nas fronteiras. Não se pode regular e os governos também não querem fazê-lo. É uma espécie de engodo. A atenção das pessoas é desviada para um pequeno fluxo de migração, como a ponta do icebergue, sendo que o icebergue abaixo da superfície da água é muito maior.
Como é que as sociedades podem então mudar ou transformar esta obsessão pelas migrações?
Primeiro precisamos de nos tornar conscientes de que há uma obsessão relação às migrações. Enquanto académico dedicado às migrações, não basta explicar como é que as migrações funcionam, porque a política e os políticos são movidos por tantos outros fatores que não apenas factos e factos científicos, o que é bom. Não vivemos numa tecnocracia. É bom que entendamos os mecanismos do nosso excesso de enfoque, excesso de problematização e a linguagem que usamos quando se trata de descrever as migrações e as diversas questões relacionadas com o tema. Essa será a primeira coisa. A segunda coisa é que precisamos de diferentes narrativas.
Alternativas às dos partidos populistas?
A obsessão pelas migrações contém elementos políticos e psicológicos. Não há uma resposta rápida ou um comprimido miraculoso para isso. Precisamos de uma narrativa para nos tornarmos conscientes e tratarmos a migração, depois, de forma diferente. Isso significa, também, que precisamos de nos insurgir mais contra os discursos populistas.
Se há um incidente que envolve um migrante, pensa-se que todo o grupo faz isso. Pensar assim é muito obscuro. Precisamos de nos corrigir quando fazemos isso. Precisamos de integrar isso na educação. Se uma criança cresce em Lisboa, precisa de ter capacidades interculturais e de estar consciente de que está numa sociedade de migrantes que é assim não apenas agora, mas sempre foi. É preciso que alguém lhe diga – as escolas e as narrativas sobre a história são muito importantes.
Precisamos de chegar a uma normalização das migrações. Isso não quer dizer que não haverá problemas, não quer dizer que não podemos falar sobre migrações. Não é isso que estou a dizer. Estou a dizer que quando falamos sobre migrações, abordamos o assunto como um aspeto normal da vida social contemporânea e como um aspeto normal do que é Lisboa, do que é Portugal e do que sempre foi.