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"Tanques" vs. "Pensões": Está a Europa a cortar no Estado Social para financiar a Defesa?

26 mai, 2025 - 09:05 • Marta Pedreira Mixão com equipa de verificação de dados da Euranet

A nova realidade orçamental da UE parece clara: a Europa está a rearmar-se como não se via há décadas — mas o verdadeiro teste será saber se conseguirá fazê-lo sem desarmar o Estado Social.

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Depois do fim da Guerra Fria, os países europeus beneficiaram do chamado dividendo de paz e canalizaram verbas militares para o reforço do Estado social. Com a guerra na Ucrânia, a prioridade passou a ser o reforço da capacidade defensiva.

Em toda a Europa, as despesas militares aumentaram para níveis nunca vistos desde a Guerra Fria, de acordo com um novo estudo do Instituto Internacional de Investigação da Paz de Estocolmo (SIPRI). Este aumento está também ligado à redução da dependência das garantias de segurança dos EUA e à pressão para que os europeus assumam uma maior responsabilidade na Defesa.

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Agora, surgem preocupações de que este aumento acentuado esteja a ser feito à custa das pensões, dos cuidados de saúde e de outros serviços sociais. Será mesmo assim?

A questão tornou-se também um alvo de desinformação, com alegações virais — muitas de origem pró-Kremlin – de que a União Europeia (UE) planeia recorrer a poupanças dos cidadãos ou desmantelar os sistemas públicos de segurança social para financiar a defesa.

De acordo com a investigação da equipa de verificação de dados da Euranet — rede europeia de rádios da qual a Renascença faz parte —, funcionários da UE e verificadores de factos rejeitam categoricamente estas afirmações, sublinhando que não existe qualquer plano para cortar pensões ou benefícios. No entanto, reconhecem que as pressões orçamentais são reais.

Quais são as contas do aumento da despesa com a Defesa?

Uma investigação do Instituto Internacional de Investigação da Paz de Estocolmo (SIPRI, em inglês) mostra que as despesas militares globais atingiram 2,72 biliões de dólares em 2024, um aumento de 9,4%.

De acordo com o SIPRI, "os gastos militares aumentaram em todas as regiões do mundo, com um crescimento particularmente rápido na Europa e no Médio Oriente". Os cinco maiores gastadores militares - EUA, China, Rússia, Alemanha e Índia - foram responsáveis por 60% do total global, com despesas combinadas de 1,635 biliões de dólares.

Os gastos militares na Europa (incluindo a Rússia) aumentaram 17% em relação a 2023, totalizando 693 mil milhões de dólares — que representa o valor mais elevado desde a Guerra Fria.

A Alemanha lidera agora os gastos militares na Europa Central e Ocidental em valores absolutos (88,5 mil milhões de dólares), enquanto a Polónia é o país da NATO com a maior percentagem do PIB destinada à defesa (4,2%). No total, 18 países da NATO já cumprem o objetivo de 2% da aliança – contra apenas 11 no ano anterior.

Nos últimos dez anos, Portugal reduziu significativamente o investimento em Defesa, com cortes que ultrapassam os 3 mil milhões de euros. Agora, o Governo prepara um reforço para recuperar este atraso e, no início deste ano, o primeiro-ministro, Luís Montengro, anunciou que o Governo está a estudar como pode antecipar a meta atualmente prevista — Portugal espera que, em 2029, o investimento em Defesa represente 2% do PIB. Já no OE 2025, o Estado prevê gastar mais de 3,1 mil milhões de euros em Defesa.

Também em 2024, Portugal ultrapassou as previsões de investimento na Defesa, executando mais cerca de 300 milhões de euros do que inicialmente previsto — a execução deverá fechar em 1,58% do PIB. O investimento público feito na área da Defesa registou assim a execução mais elevada de todos os programas orçamentais do governo até ao momento.

O plano "Rearmar a Europa" da UE, que destina 800 mil milhões de euros para a Defesa, não prevê financiamento comunitário adicional — por isso, os Estados-Membros têm de suportar os encargos financeiros. E, segundo a Foreign Policy, a Europa “precisa de gastar muito mais dinheiro nas suas forças armadas — à custa dos seus Estados-providência”.

Todos os Estados-membros, exceto Malta, aumentaram os seus orçamentos militares.

Os últimos dados da UE mostram que o total da despesa militar subiu de 240 mil milhões, em 2023, para 326 mil milhões de euros, em 2024 – um aumento de 36%, que representa cerca de 1,9% do PIB da UE. E prevê-se que as despesas aumentem mais de 100 mil milhões de euros em termos reais até 2027.

De acordo com a investigação da equipa de verificação de dados da Euranet, estes aumentos da despesa militar têm sido, até agora, financiados principalmente através da dívida e do aumento dos impostos, e não através de cortes diretos no Estado Social.

Que impacto tem o investimento da Defesa nas despesas sociais?

A investigação da Euranet Plus refere que, apesar do aumento expressivo nas despesas militares por toda a Europa, a proteção social continua a ocupar o lugar central nos orçamentos públicos.

Os números mais recentes da OCDE mostram que, em 2022, os gastos sociais representaram entre 35% e 59% da despesa pública total nos países europeus, correspondendo a um valor entre 17% a 32% do PIB — proporções que sublinham o peso estrutural do Estado social no modelo europeu.

As abordagens nacionais, contudo, são marcadamente distintas. Países como França, Itália e Bélgica continuam a alocar mais de um quarto do seu PIB à proteção social, o que complica o cumprimento do objetivo de 2% do PIB para a defesa imposto pela NATO. Em 2024, a França atingiu esse limiar, a Itália ficou ligeiramente abaixo, e a Bélgica manteve-se aquém.

Já na Europa de Leste, o equilíbrio tem sido diferente. Polónia, Letónia e Estónia têm vindo a priorizar o reforço das suas capacidades militares, optando por manter níveis de despesa social mais contidos em relação aos seus pares ocidentais. Esta escolha reflete tanto a geografia política como a perceção da ameaça direta da Rússia.

Ainda assim, os dados do Eurostat revelam que, em 2023, o investimento social — nomeadamente em educação, pensões e saúde — continua a ser uma prioridade na maioria dos Estados-membros da União Europeia. Mas o aumento das despesas com a Defesa pode tornar-se um desafio crescente para a sustentabilidade do modelo europeu de Estado Social.

Defesa vs. Estado Social: a difícil equação orçamental da Europa

Com a União Europeia a preparar o próximo quadro financeiro plurianual (2028-2034), cresce o desafio político: como reforçar a capacidade de defesa sem comprometer os pilares do Estado Social? A maioria dos países tem evitado cortes diretos nas áreas sociais, mas a redefinição de prioridades e o adiamento de investimentos em setores como saúde, habitação e pensões são sinais claros de uma pressão orçamental crescente.

Na maioria dos casos, os países estão a recorrer a dívida pública, flexibilização fiscal, ou reafectação interna de fundos existentes — e não a cortes diretos.

Em 2023, a despesa com proteção social na Europa manteve-se, no conjunto, praticamente inalterada — com um ligeiro aumento de 0,1%. No entanto, por detrás da estabilidade aparente, vários Estados começaram a mostrar sintomas de retração, sobretudo onde os orçamentos militares dispararam.

Países como Alemanha e França estão na linha da frente deste esforço. Berlim criou um fundo de 100 mil milhões de euros para modernizar as suas forças armadas, tornando-se o maior investidor militar da Europa Ocidental. Sem cortar no seu Estado social, a solução tem passado por recorrer ao endividamento e à contabilidade criativa para financiar ambos os pilares.

As despesas militares da França cresceram 6,1% em 2024, atingindo 64,7 mil milhões de dólares. O país continua empenhado no objetivo da NATO de 2% do PIB para as despesas de Defesa, com ambições de atingir 3,5% do PIB a longo prazo. O país está a explorar formas inovadoras de financiar estes aumentos, como o aproveitamento de poupanças privadas para a indústria de armamento, mas evitou grandes cortes no Estado Social.

Até porque França lidera nas despesas sociais (mais de 31% do PIB) — o valor mais elevado da UE, apesar de uma ligeira diminuição. As despesas com a Segurança Social têm-se mantido estáveis, reflectindo o forte apoio público. Contudo, em 2023, o país implementou a impopular reforma das pensões — uma decisão que muitos relacionam com a crescente pressão orçamental induzida pela despesa militar.

Já em Portugal, o reforço do orçamento de Defesa — atualmente estimado em cerca de 1,58% do PIBnão tem implicado cortes significativos nas áreas sociais. Segundo a proposta de Orçamento de Estado para 2025, os benefícios sociais representam 18,1% do PIB, uma redução mínima face aos 18,3% em 2024. Esta ligeira descida deve-se sobretudo à normalização das atualizações das pensões, que serão superiores à inflação, mas inferiores às dos anos anteriores — e não a qualquer transferência direta de verbas para fins militares.

A política orçamental do Governo para 2025 mantém o foco no desagravamento fiscal para jovens e empresas, além de apostar na execução do Plano de Recuperação e Resiliência. A despesa pública deverá subir de 44,4% para 45,2% do PIB, com os maiores aumentos a registarem-se nos custos com pessoal e nas prestações sociais.

Esta estratégia foi aprovada pela Comissão Europeia. A execução tem sido facilitada pela ativação da cláusula de salvaguarda orçamental da União Europeia, que permite a Portugal aumentar o seu orçamento militar sem prejudicar o seu sistema de Segurança Social.

Na Polónia, o orçamento de defesa saltou para 4,2% do PIB — o mais alto da NATO —, refletindo a proximidade geográfica à Ucrânia. O país tem mantido apoios sociais significativos, contudo, analistas alertam para possíveis tensões futuras, à medida que o esforço militar consome uma fatia cada vez maior dos recursos públicos, já que orçamento da defesa registou um aumento dramático de 31% em 2024.

Na Bélgica, o investimento em defesa disparou — 5,9 mil milhões de euros em 2023 —, mas coincidiu com reformas insuficientes nas pensões, cortes no acesso a subsídios de desemprego e reforma antecipada, além do congelamento de apoios à habitação, gerando críticas internas e externas.


Com uma das mais baixas percentagens de despesa militar no seio da NATO — 1,28% do PIB em 2024 —, a Espanha tem estado sob pressão para se alinhar com os objetivos da aliança. O governo já prometeu atingir a meta dos 2% até 2025, prevendo um reforço de 10,4 mil milhões de euros. Este compromisso levou a um aumento de 25% nas despesas militares num só ano, elevando o total para cerca de 22,3 mil milhões de dólares.

Apesar de as pensões terem aumentado 8,5%, os salários da função pública ficaram estagnados e o financiamento dos cuidados de saúde registou atrasos.

Em Itália, o reforço do orçamento militar tem seguido uma trajetória constante, embora a um ritmo mais lento do que outros países europeus. A prioridade tem sido a modernização das forças armadas e o cumprimento gradual das metas definidas pela NATO.

No plano social, no entanto, em 2023, o governo de Giorgia Meloni reduziu o financiamento do “Reddito di Cittadinanza”, um programa de combate à pobreza e ao desemprego, justificando a decisão com alegadas ineficácia do programa. A medida foi amplamente contestada, com críticos a apontarem o dedo ao aumento da despesa com a Defesa.

Nos Estados Bálticos, a prioridade clara tem sido a segurança, com a Estónia a atingir 3,4% do PIB em 2024 - uma meta definida para atingir 5,4% em 2025. Já as despesas de Defesa da Letónia em 2024 foram de aproximadamente 1,43 mil milhões de dólares.

O governo da Letónia está a considerar cortes na despesa pública, com o compromisso de reduzir a despesa da administração pública em 450 milhões de euros ao longo de três anos, o que poderá afetar indiretamente os programas de assistência social.

A Bulgária seguiu um caminho semelhante. Entre 2023 e 2024, aumentou significativamente a despesa com a defesa para 2,04% do PIB, cumprindo assim a meta da NATO.

No entanto, este esforço orçamental teve consequências sobre as finanças públicas, levando o governo a reduzir os subsídios à energia num momento de forte crise energética. Projetos de infra-estruturas de educação e cuidados de saúde — sobretudo em regiões rurais — têm registado um crescimento mais lento e atrasos, e as pensões tiveram aumentos mínimo, que não acompanharam o ritmo da inflação.

Embora a maioria dos países europeus tenha evitado cortes diretos nos serviços sociais, os sinais de tensão orçamental são cada vez mais visíveis. A França, líder europeia em despesa social, registou uma ligeira redução real desde 2022. Com pensões indexadas à inflação e revisões nos orçamentos da educação, o compromisso do presidente Macron de não aumentar impostos levanta receios de uma reafectação de verbas.

Na Alemanha, Itália e Portugal, as despesas sociais mantêm-se estáveis ou com ligeiras descidas. No caso alemão, analistas alertam que, sem aumentos fiscais ou cortes noutras áreas, esta trajetória poderá tornar-se insustentável a longo prazo. Já nos Estados Bálticos, como a Estónia e a Letónia, a proteção social perdeu terreno em relação à inflação, com os orçamentos militares a crescerem à custa de adiamentos nas atualizações sociais e recurso a dívida pública.

Qual a estratégia da UE?

Perante o aumento contínuo da despesa militar, os governos enfrentam decisões cada vez mais difíceis. Algumas das estratégias já em curso incluem: endividamento e flexibilização fiscal, reorientação de fundos comunitários e prioridades orçamentais. Mas de que forma?

Desde maio de 2025, 12 Estados-membros ativaram uma "cláusula de salvaguarda nacional" que permite excluir até 1,5% do PIB em defesa do cálculo do défice, abrindo espaço para reforços militares sem penalizações imediatas — Portugal, Alemanha, a França e a Polónia, ativaram esta cláusula para reforçar os seus orçamentos de defesa.

No caso de Portugal, Luís Montenegro argumentou que o pedido feito pelo Governo a Bruxelas quer permitir que o "país invista na Defesa sem prejudicar a sustentabilidade das contas públicas".

A Comissão Europeia estuda a utilização de fundos de coesão e sociais não utilizados, como o NextGenerationEU para financiar a Defesa, mas esta reprogramação pode comprometer investimentos em áreas como o clima, o digital ou a coesão social.

Há também a proposta de um fundo europeu de 150 mil milhões de euros (SAFE) para financiar a Defesa, contudo países como a Alemanha e Países Baixos opõem-se a aumentar as suas contribuições, temendo desequilíbrios e perda de autonomia fiscal.

A legislação da UE também impede o uso direto do orçamento comunitário para comprar armamento. As despesas com Defesa dependem, por isso, de projetos de dupla utilização, como infraestruturas ou cibersegurança, e o Fundo Europeu de Defesa dispõe de 8 mil milhões de euros até 2027 para responder a estas necessidades.

O investimento na Defesa está ou não a afetar o Estado Social?

De acordo com a investigação da equipa de verificação de dados da Euranet, a afirmação de que há um desvio direto de fundos das pensões e da segurança social para o setor da Defesa na Europa carece de provas substanciais.

Apesar de haver aumentos consideráveis nos orçamentos de Defesa por toda a Europa, estes parecem ter sido realizados, principalmente, através de medidas de flexibilidade fiscal e da reafectação de fundos existentes, e não através de cortes nos programas sociais — pelo menos até agora.

Contudo, há sinais crescentes de pressão orçamental e de decisões políticas que estão a afetar indiretamente os programas sociais — governos adiaram expansões, congelaram orçamentos ou redefiniram prioridades de despesas.

A verdadeira questão para a próxima década será saber se a Europa conseguirá sustentar o reforço da Defesa sem desinvestir no seu modelo social. O novo orçamento plurianual da UE (2028-2034) colocará este dilema no centro do debate político europeu, exigindo escolhas difíceis entre segurança, bem-estar, transição verde e inovação.

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