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Reportagem

"Voltar? Jamais. Amo Viseu!" Vieram do Brasil e criaram as suas empresas em menos de um ano

11 fev, 2025 - 11:30 • Liliana Carona

Sem ajudas do Estado, mulheres brasileiras chegam a Viseu e em menos de um ano tornam-se empresárias na área da estética. Para trás ficam licenciaturas, mestrados e um país onde dizem reinar a insegurança. Dados oficiais do Alto Comissariado para as Migrações indicam que 65% dos novos negócios em Portugal foram criados por cidadãos brasileiros — sobretudo mulheres.

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"Voltar? Jamais. Amo Viseu!" Vieram do Brasil e criaram as suas empresas em menos de um ano

Em menos de uma semana, Jeniffer Ranni Viana, 28 anos, abriu a sua própria empresa, o Estúdio Ranni Pestana, no centro de Viseu. Mais conhecida por "Ranni Pestana", prepara a maca que já não é de enfermagem, mas de estética. A enfermagem ficou no Brasil, quando, em novembro de 2022, veio para Portugal.

“No Brasil, era enfermeira, coordenadora do setor de navegação de pacientes de um hospital, referência em oncologia em Muriaé e eu trabalhava nessa área há três anos”, começa por contar Ranni, nascida no Rio de Janeiro, mas que fez em Itaperuna a graduação de enfermagem na Universidade Redentor.

“Após formada, passei no processo seletivo do Hospital de Câncer de Muriaé da Fundação Cristiano Varella na cidade de Muriaé, estado de Minas Gerais. Trabalhei nesse hospital por 3 anos, 2 anos como enfermeira supervisora da unidade de internação clínica/cuidados paliativos e o restante do tempo passei como enfermeira coordenadora do setor de navegação de pacientes”, recorda a enfermeira, agora esteticista, especialista em extensões de pestanas.

“Ouvem o sotaque e têm preconceito”

Criou a própria empresa, sem ajudas do Estado português, mas Ranni assume que, mesmo assim, sente preconceito quando o sotaque fala mais alto.

"A gente, às vezes, percebe. Hoje mesmo passei por uma situação em que eu cheguei num lugar, numa repartição pública para solicitar uma informação, falei 'bom dia' e nem me responderam. Falei o que eu gostaria de falar e, quando eu falei que eu tinha um cartão de cidadão, olhou para mim, sorriu, então tipo 'eu sou mulher, sou brasileira, tenho um sotaque brasileiro, mas eu também tenho um cartão de cidadão' e, quando é apresentado isso, eles mudam a forma que tratam a gente. Só porque eu mostrei um documento, passam a me tratar bem, com educação”, conta a enfermeira que agora como esteticista, agradece às clientes por não terem qualquer tipo de preconceito com ela.

“Eu já vim para Portugal com o intuito de empreender e eu pensei que na enfermagem ia ser um pouco difícil aqui, porque por mais que eu já tivesse vindo com processo de cidadania, ou seja, já ia me tornar portuguesa, eu abro a boca a as pessoas ouvem meu sotaque, então já tem um pouquinho ali de preconceito. As pessoas não dão muita atenção, então eu pensei que trabalhar na minha área, não ia dar”, explica Ranni que procurou por uma área que tivesse muita procura de clientes.

“Para ter procedimento, porque a gente precisa movimentar o nosso caixa todos os meses, pensei em unhas, sobrancelhas e conheci a extensão de pestanas, que foi aquela com que mais me identifiquei e com uma semana, eu já consegui montar minha sala de atendimento e estou aqui até hoje”, diz, visivelmente orgulhosa.

“Viemos em busca de constituir família num país sem violência”

Ranni pesquisou por Viseu e viu que “tinha um défice muito grande de profissionais qualificadas e que entregasse um trabalho com um preço bom e com uma qualidade boa” e afirma: “Eu via muitas pessoas falando que faziam extensões de pestanas e com uma semana já caía tudo, então eu quis trazer esse diferencial para as mulheres de Viseu."

Mas como chegou Ranni à cidade de Viriato? “Eu já estou legalizada desde que cheguei, já tenho um cartão de cidadão, tirei através do meu pai, que é português, então nós já viemos para Portugal, porque eu conseguiria já chegar legalizada. A enfermagem ficou só na lembrança e às vezes bate uma saudade”, assume Ranni, sem deixar de esconder a satisfação pelo sucesso da sua empresa. “Tem corrido bem e vou falar em primeira mão que em breve estaremos a abrir um espaço novo”, nota.

Mas porque é que tanta mulher brasileira arrisca logo em abrir a sua própria empresa? Ranni tem uma explicação: “então a gente já teve essa transformação enorme que foi mudar de país, mudar de cultura, mudar de tudo. Então, quando a gente chega aqui, a gente já vai pensar em algo para empreender, então a gente já consegue dar essa volta, esse salto na vida bem rápido”, observa.

A fazer extensões de pestanas em Viseu, Ranni já não pensa em voltar ao Brasil. Acompanhada do marido, os objetivos estão traçados. “O maior apoio que eu tive e tenho foi do meu marido, apoios do Estado português não tenho, só do meu marido e das minhas clientes que são maravilhosas”, revela.

Para a jovem brasileira de 28 anos, Viseu tem tudo o que sempre sonhou. “Sou muito feliz aqui em Viseu, gosto muito de morar em Portugal e é onde nós vamos construir nossa família em breve”, sorri a jovem extensionista de pestanas. O que é que Viseu lhe traz que não encontrou no Brasil? “Segurança principalmente, porque foi um dos motivos pelos quais nos levaram a vir para cá. Nós morávamos no Rio de Janeiro e o índice de violência está muito grande. Infelizmente ainda ficaram parentes lá. Então, Viseu tem tudo o que a gente busca, uma cidade linda, com muitos jardins, que a gente acha lindo e seguro para os nossos filhos que ainda não temos, mas havemos de ter. Viemos em busca de constituir família num país sem violência”.

"Voltar para o Brasil? Jamais! Amo Viseu…"

Quem também seguiu outro rumo profissional diferente, foi a radiologista Michele Laux, 47 anos, agora em Viseu, é a estética que lhe ocupa os dias, também já com a sua própria empresa criada.

Vinda de Rio Grande do Sul, a radiologista chegou em 2019, para fazer o mestrado em Ciências Biomédicas. Mas os planos mudaram por causa da pandemia.

“Com a pandemia eu acabei não finalizando o mestrado, porque a parte financeira mudou todo o destino, mas também sempre tive interesse em estética no Brasil”, garante Michele, salientando que trabalhou 14 anos como radiologista.

“E vir para aqui foi só aquele impulso para abrir meu próprio negócio. A brasileira gosta muito de estética e as portuguesas apoiam e respeitam o nosso trabalho”, enaltece a agora esteticista.

“Tenho meu próprio negócio, vai fazer um ano em abril. Faço micropigmentação de lábios, faço microagulhamento robótico, peeling, tenho formação aqui em Portugal e formações do Brasil”, sublinha, considerando que não se arrepende da ‘troca’ de profissão.

“Resolvi criar coragem e encarar e abrir o meu próprio negócio, confiando em mim, e nos meus estudos, nas minhas especializações e está indo bem. Veio o marido, a filha e o cão, veio todo mundo”, diz satisfeita Michele Laux.

Veio todo o mundo de Rio Grande do Sul para Viseu, a cidade que Michele Laux passou a adorar.

“Amo Viseu, nunca senti nenhum preconceito comigo, nem com a minha família. Eu vim já legalizada com documentação, tudo ok, sempre respeitei a cultura do país, assim como quero que me respeitem e por acaso nunca tive o azar de ter algum problema em relação ao desrespeito. A minha filha é uma adolescente de 16 anos, adora Viseu. Voltar para o Brasil? Jamais. Só para passear. Viseu não é uma cidade grande como Porto ou Lisboa, mas também não é pequenina. Eu acho que ela tem tudo, tem shopping, tem praças maravilhosas, tem cultura, tem shows, a gente ama Viseu”, ressalva a esteticista brasileira.

“Não era feliz como contabilista no Brasil”

Jamais voltar para o Brasil, só para visitar familiares é também a decisão de Thayline Rocha, 32 anos, natural de Minas Gerais. A contabilista Thayline Rocha está há dois anos e dois meses em Viseu. Agora é nail designer e não podia estar mais feliz.

“Estou muito feliz de morar aqui. Viseu é uma cidade incrível, quero criar meus filhos aqui. Porque é uma cidade tranquila, bonita, tem tudo perto. Eu amo Viseu”, começa por dizer, relevando o que pesou na decisão de vir para Portugal, depois de uma licenciatura em Contabilidade e outra em Administração de Empresas.

“O Brasil é fantástico, a comida, a família, mas era muito cansativo na empresa, o trânsito e aqui tenho tempo livre, lá tinha medo de não conseguir ter filhos. Eu não fiz equivalência dos meus diplomas, porque não queria trabalhar mais nessa área, eu já estava muito cansada de escritório, de gente estressada. Viseu me despertou a vontade de ser mãe. Portugal me dá essa segurança”, defende, elogiando mais uma vez Viseu. “Viseu é incrível porque me acolheu. Conheci pessoas boas, é uma das melhores cidades para se viver e eu me senti acolhida aqui, até a Sé é igual à da cidade de Tiradentes em Minas”, graceja Thayline.

Em Viseu, Thayline já não tem espaço na agenda para tanta procura e recorda como foi a decisão e o processo de vir para Portugal.

“Uma prima minha, veio antes de mim para Viseu e ela falou muito bem da cidade e quando chegamos aqui, nos apaixonamos pela cidade, eu e meu marido. Então, eu vim e retirei a documentação aqui, não vim com visto, fiz a manifestação de interesse e abri a minha atividade. Abri a loja, com todos os direitos certos e pago todos os impostos, já fui chamada para a entrevista na AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo, agora estou só esperando chegar o cartão de residência, porque o cartão é o comprovante de que eu resido aqui em Portugal”, esclarece sobre o processo de vir para Viseu.

Thayline Rocha nunca imaginou estar onde está hoje. Uma cliente foi indicando a outra e quando deu conta não tinha mais espaço na agenda e nem hora para terminar o dia. Nada a que não estivesse habituada, desde os 13 anos que fazia unhas. “Inclusivamente eu paguei minha faculdade fazendo unhas, eu cresci dentro do salão de beleza da minha mãe”, relembra Thay.

Da contabilidade para o design de sobrancelha

Começou num sótão, em Viseu, a trabalhar à comissão, mas em menos de um ano abriu a sua própria empresa de design de sobrancelha, num espaço a cheirar a novo, em tons brancos e dourados. Emília Santos, 27 anos, filha de uma manicure, licenciada em Contabilidade, concordou com a ideia do marido, engenheiro civil, de sair do Pará para Viseu, há um ano e três meses.

“Trabalhei dois anos na área da contabilidade, mas também sempre trabalhei na estética. Porém, tinha aquele pensamento de que só poderia ser alguém na vida se tirasse uma licenciatura, uma formação e quando eu vim para Portugal, eu já vim com uma outra ideia. Eu já vim com o pensamento de eu posso crescer na área da estética, me destacar lá, fazendo o que gosto e aquilo que me dá dinheiro”, resume sobre a vinda para Portugal. Para Emília, o “Brasil não está fácil de se viver, muito trabalho e muitas despesas e Viseu é o grande amor por quem se apaixonou”.

“Eu vim como turista, fiz tudo errado, mas consegui manifestação de interesse, já fui chamada para entrevista. Estou aguardando meu cartãozinho chegar”, conta sobre o seu processo de legalização. Para Emília Santos, não foi só força do trabalho, mas da fé que moveu montanhas, ou um oceano, entre Brasil e Portugal.

“Foi bênção de Deus mesmo. Ele foi abençoando, abrindo as portas, criando situações, até abrir o meu próprio negócio e hoje estou aqui completando dois meses, na minha própria clínica. Não me arrependo nada de ter saído do Brasil”, assegura, convidando as clientes a beberem um chocolate quente, sempre após cada atendimento. “É oferta minha”, diz Emília, enquanto poisa a chávena no balcão da entrada.

Os números

Os imigrantes residentes oficialmente em Portugal ascendem a 1,04 milhão de pessoas, sendo que a comunidade brasileira corresponde à percentagem mais elevada de população estrangeira, cerca de 30%, segundo os dados mais recentes da PORDATA, a base de dados estatísticos da Fundação Francisco Manuel dos Santos. 3 em cada 10 imigrantes são do Brasil e em Viseu a população estrangeira residente com nacionalidade brasileira corresponde aproximadamente a 4 mil pessoas, 4% da população.

De acordo com os últimos dados oficiais publicados pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), 65% dos novos negócios em Portugal foram criados por cidadãos brasileiros. E foram as mulheres brasileiras que mais empreenderam (75% dos que iniciaram um novo negócio em Portugal em 2020 foram mulheres). Também a associação Empreendedores Vencedores, com mais de 4 mil seguidores no Instagram, publicou nas redes sociais, em setembro passado, que passaram de 25 elementos em 2020 para 700 em 2024, com brasileiros e mulheres em maioria, sendo 93% mulheres, dos 700 empreendedores.

De acordo com o Relatório do Barómetro da Imigração, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, “a história da imigração em Portugal é relativamente recente. Em 1960, residiam em Portugal 29.428 estrangeiros, dos quais 40% tinham nacionalidade espanhola e 22% nacionalidade brasileira. Em 1975, eram apenas 31.983; em 1980 eram 50 750; em 2000 atingiram os 207.587; em 2020 eram já 661 607 e os últimos dados conhecidos, respeitantes ao final de 2023, apontavam para um total de 1.044 606 cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência”.

Segundo o mesmo documento, em 2023, viviam em Portugal, um milhão e quarenta e quatro mil cidadãos estrangeiros com estatuto legal de residente, representando 9,8% do total da população. “A maior parte das pessoas que escolhem o nosso país para viver - 8 em cada 10, vêm de países de fora da União Europeia, sendo que 3 em cada 10 vêm do Brasil. A seguir ao Brasil e ao conjunto dos outros países da União Europeia seguem-se a Ucrânia, o Reino Unido e a Índia”, descreve o Relatório do Barómetro da Imigração, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, apontando ainda que o Brasil, nas contribuições para a Segurança Social, em 2023, apresentou: 1033 milhões de euros (38,6% do total das contribuições dos trabalhadores de nacionalidade estrangeira).

E há também números concretos do distrito de Viseu. Márcia Cabral, 60 anos, professora reformada é a presidente da Associação Casa do Brasil, uma associação independente, apartidária, sem fins lucrativos, constituída a 8 de outubro de 2019, com o objetivo de promover o acolhimento do imigrante brasileiro e seus familiares, visando proteger os seus direitos, de modo a permitir sua plena integração na comunidade portuguesa. “Não temos a informação por género, mas com título de residência no distrito de Viseu, há 8.394 indivíduos”, anuncia, enaltecendo a evolução na forma como a comunidade brasileira é acolhida. “Cheguei aqui há 8 anos e sentia estigma, mas depois da pandemia, isso praticamente se extinguiu”, defende, admitindo ter conhecimento das “muitas mulheres brasileiras que criam as suas próprias empresas”, embora não consiga avançar dados numéricos.

Ainda assim, sem conseguirmos obter o número concreto de mulheres empresárias brasileiras, em Viseu, o concelho parece acompanhar os números da realidade nacional, com muitas que, em menos de um ano, inauguram as suas próprias empresas na área da estética, abandonando as áreas para as quais estudaram. Uma enfermeira, uma radiologista e duas contabilistas contam as suas histórias.

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