12 fev, 2025 - 17:34 • José Pedro Frazão
É um ponto de situação de vários campos de análise da pobreza, com alguns dados já menos atuais mas que confirmam tendências que não desparecem de um ano para o outro em Portugal. Portugal continua a oscilar na fasquia dos dois milhões de pobres, dos quais 500 mil em privação severa, mas os estudos agora publicados consolidam a especial fragilidade dos idosos, dos deficientes, das mulheres e, também, dos trabalhadores que auferem baixos salários.
A obra, com prefácio do Presidente da República, reúne alguns estudos de diversos investigadores que se dedicam a este tema. Estando anunciada a sua presença no lançamento do livro, Marcelo Rebelo de Sousa poderá atualizar esse prefácio escrito há quase três anos mas só agora publicado, onde defende que o combate à pobreza "não exige apenas mudanças institucionais, mas sim alterações nos valores dominantes nas nossas sociedades", como propunha Bruto da Costa.
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Para avaliar as diversas faces da pobreza, um dos capítulos mais relevantes aborda a chamada pobreza multidimensional. O artigo da autoria de Nuno Alves, da Universidade Católica e do Banco de Portugal, parte de um indicador que junta informação de 21 variáveis, relacionadas com a participação no mercado de trabalho, a privação material, a privação social, a saúde e a habitação.
"Os resultados sugerem que a pobreza multidimensional em Portugal interrompeu em 2021 a tendência descendente observada entre 2014 e 2020. Em 2021, a proporção da população em situação de pobreza multidimensional ascendia a 17%, com 6,6% da população em pobreza multidimensional severa. Estas taxas são superiores às observadas no ano anterior à pandemia", pode ler-se no estudo.
A severidade deste indicador - não exatamente igual ao indicador da privação severa - remete a análise para a intensidade da pobreza.
"As pessoas abaixo da linha de pobreza são todos pobres, mas não estão na mesma posição. É muito diferente, por exemplo, uma pessoa ter um rendimento mensal de 450 euros ou uma pessoa que tem metade disso. Ambos estão em situação de pobreza, só que um está com uma situação muito mais intensa de pobreza que o outro. E quanto mais baixo é o rendimento das pessoas, maior o impacto de um pequeno aumento na sua qualidade de vida", explica Fernando Diogo, coordenadora da obra que homenageia Alfredo Bruto da Costa com diversos estudos inspirados no antigo presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz e uma das referências no estudo da pobreza, falecido em 2016.
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Os dados revelam também que cerca de um quarto das(...)
São os mais pobres dos mais pobres, mesmo com rendimentos muito baixos. A necessidade de uma pequena quantia mensal pode ter um "enorme impacto" na qualidade de vida e até da alimentação da pessoa em situação de pobreza.
"Por exemplo, numa família pobre, de repente, um miúdo que gosta muito de jogar futebol rompe os ténis e precisa de comprar uns ténis novos que custam 20 euros ou 30 euros numa feira. Isso pode ser uma despesa que destrutura o orçamento familiar durante o mês ou eventualmente até mais", ilustra Fernando Diogo, da Universidade dos Açores.
Os estudos confirmam outro dado consensual. A pandemia de covid-19 travou a tendência de redução da pobreza. "De um momento para o outro, o equivalente à população da cidade do Porto entrou em pobreza", exemplifica o autor. Caíram na pobreza pessoas que perderam o emprego e outras que, não tendo sido despedidas, viram os seus rendimentos reduzirem-se drasticamente e que, estando numa situação de vulnerabilidade, entraram imediatamente em situação de pobreza.
"Claro que, à medida que a pandemia se foi desvanecendo, isso foi, de facto, voltando a melhorar e nós já quase recuperámos dessa 'pancada'. Claramente, tem-se registado uma melhoria da situação, mas não totalmente, mas tem-se registado uma melhoria da situação. Estamos quase lá, onde provavelmente [chegaremos] com o crescimento económico. Quando a economia melhora, o número de pobres diminui", explica Fernando Diogo.
O livro apresenta uma dezena de capítulos temáticos de análise ao fenómeno da pobreza. Ana Cardoso, investigadora do CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, conclui que "é apenas entre as mulheres pobres que existe um número significativo de indivíduos a trabalhar menos de 20 horas por semana". Os dados de base são 2016, do Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e de Mulheres.
A percentagem de 6,5% implica que "são as mulheres pobres que menos horas, em média, dedicam por dia ao trabalho remunerado, mas que, ao mesmo tempo, são quem tem mais horários atípicos". A desigualdade de género no uso do tempo entre homens e mulheres resulta evidente neste capítulo "especialmente acentuada entre as mulheres pobres, dado que têm mais 2 horas e 1 minuto por dia de trabalho não pago que os homens pobres. Entre os indivíduos não pobres as mulheres têm mais 1hora e 32 minutos de trabalho não pago"
No seu próprio capítulo, Fernando Diogo, da Universidade dos Açores, conclui que "uma melhor educação protege da pobreza mais os homens do que as mulheres". A sua análise centra-se na realidade europeia que acrescenta que "uma infância passada em situação de pobreza traduz-se em ordenados baixos em adulto, mesmo para o caso dos indivíduos que atingem uma escolaridade dentro da média".
O último capítulo do livro recupera resultados de um projeto publicado em 2023 sobre as condições de vida nas "ilhas" e bairros populares do Porto e Braga, da autoria de Manuel Carlos Silva, professor catedrático aposentado da Universidade do Minho.
O inquérito original é de 2017 e abrangeu 826 moradores neste territórios. "A média dos rendimentos líquidos mensais de cerca de 50% dos inquiridos/as e de 36% de agregados familiares situava‑se no escalão de 251‑557 euros, havendo todavia 12% de indivíduos e 9% de agregados com rendimentos igual ou abaixo dos 250 euros", pode ler-se nas conclusões. Noutra estratificação , a pobreza encontrava-se em em 25% trabalhadores/as por conta de outrem, 75% entre trabalhadores/as por conta própria, 95% entre reformados/as e 100% entre desempregados.
Estudo
Estudo revela que "os desempregados (25%) e as fam(...)
A proporção de indivíduos que se consideram "pobres" e "muito pobres" vai diminuindo na perceção dos inquiridos ao longo da vida, sendo de 66,6% "ao nascer" , 49,1% "ao casar" e 47,4% na atualidade.
"Esse estudo tem um viés assumido. O autor sabe que vai entrevistar pessoas que estão em situação de pobreza, sobre o seu percurso de uma pobreza tradicional, ou seja, tende a prolongar-se ao longo da vida dos indivíduos e entre gerações. Aqueles indivíduos que saíram da situação de pobreza já não estão a ser entrevistados", ressalva Fernando Diogo, um dos coordenadores da compilação de estudos sobre a pobreza em homenagem a Alfredo Bruto da Costa
O estudo apresenta ainda um capítulo assinado por Alexandra Lopes, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sobre a relação entre rendimento e felicidade entre idosos pobres. Apesar de conter dados de base de 2016, trabalhados a partir do Inquérito Europeu sobre Qualidade de Vida, numa amostra de população acima dos 65 anos, o estudo confirma uma das crónicas debilidades nos apoios sociais.
A discrepância entre linha de pobreza e valor mínimo de atribuição do Complemento Solidário para Idosos (CSI) tem sido sistematicamente apontada em diversos estudos.
Em 2016, o padrão que definia "um mínimo adequado para atingir níveis médios de bem-estar subjetivo" desta população, de acordo com os dados de base, apontava para rendimentos acima de 7.400€ por ano, ou seja, longe do valor de referência para a linha de pobreza monetária desde ano (5.443€ por ano e por adulto equivalente) ou do valor de referência para o Complemento Solidário para Idosos (5.022€ por ano).
Resta saber qual seria o valor mínimo de "saciedade" dos idosos que seria apurado quase uma década depois, tendo em conta as flutuações de inflação em diversos produtos básicos. A linha de pobreza, que define o valor abaixo do qual alguém que vive sozinho é considerado pobre, avançou em 2023 para 7.588 euros anuais por adulto equivalente. O limiar de risco de pobreza em paridades de poder de compra é de 8.053, de acordo com o Eurostat. O valor de referência anual do Complemento Solidário para Idosos aumentou em janeiro para 7.568 euros, com um valor máximo mensal para 630,67 euros.
A taxa de pobreza entre quem trabalha continua a ser um foco central da abordagem à pobreza. No seu capítulo, Pedro Perista, investigador Sénior do CESIS, lembra que Alfredo Bruto da Costa chamou muitas vezes à atenção para esta realidade.
"Considerando o período entre 2012 e 2022, é possível perceber um aumento da taxa de pobreza entre quem trabalha (TPT) em Portugal. Aumentou, de forma significativa, de 9,9% em 2012 para 10,4% em 2013. Em 2020, cifrou‑se em 9,5%, tendo os impactos da crise pandémica feito sentir, levando a uma subida assinalável para 11,3% em 2021", assinala Perista, um dos coordenadores deste livro.
pobreza
O aumento é desigual entre as diferentes prestaçõe(...)
Os baixos salários e um nível elevado de segmentação do mercado de trabalho são identificados pelo autor como os fatores‑chave por detrás da taxa de pobreza entre quem trabalha em Portugal. O investigador sublinha que o sucessivo aumento do salário mínimo "não é suficiente por si só para reduzir a TPT", mas assume que a ligação entre trabalho e pobreza pode ser alterada.
"Haverá sempre franjas mais vulneráveis de população trabalhadora, mas os dados empíricos demonstram que é possível ter TPT em torno dos 3%, como acontece na Finlândia e na Chéquia", assume o autor.
O desemprego é outro fator que potencia a pobreza. Noutro capítulo do livro, os investigadores Renato do Carmo e Frederico Cantante, do ISCTE, assinalam que, em 2021, 43,4% da população desempregada em Portugal encontrava-se nessa situação.
Sublinham ainda que as prestações de desemprego têm baixas coberturas, associadas a "insuficiências óbvias indutoras de pobreza". O valor médio das prestações de desemprego "está longe de afastar os indivíduos e as famílias de situações de pobreza relativa e de destituição material aguda", consideram os autores.
Ser deficiente é, geralmente, ser mais pobre do que quem não apresenta essa dificuldade. E, sem apoios sociais, a pobreza instalava-se na maioria desta população.
No capítulo assinado pelas investigadoras Paula Campos Pinto, Patrícia Neca e Sofia Bento, mostra-se que o risco de pobreza em Portugal foi sempre consideravelmente mais elevado no grupo das pessoas com deficiência (23% em 2021 face a 15,3% na população não deficiente)
Contudo, os dados do Eurostat mostram que, em 2021, em Portugal, mais de dois terços dos adultos com deficiência enfrentavam risco de pobreza antes de transferências sociais (64,1% contra 36,6% das pessoas sem deficiência)
As prestações sociais são tão decisivas neste domínio que, devido à sua intervenção, a taxa de pobreza nos deficientes recuou cerca de 40 pontos percentuais em 2021 face a apenas 21,3 pontos nos não-deficientes. Sem apoios sociais, o risco de pobreza seria três vezes maior nas pessoas com deficiência, pode ler-se no estudo.
"Este dado parece sugerir a escassez ou fragilidade de outras fontes de rendimento para uma grande parte das pessoas com deficiência no nosso país", escrevem as autoras. Em 2021, um em cada três trabalhadores com deficiência tinha rendimentos abaixo do limiar de pobreza.
Em 2019, a taxa de desemprego entre deficientes era de 17,6% de acordo com os dados da rede EDE — European Disability Expertise, citados neste capítulo. "A presença da deficiência reduz a intensidade laboral do agregado doméstico, o que não deixará de ter repercussões no rendimento disponível das famílias", alertam as investigadoras que, ainda assim, reconhecem melhorias globais na condição económica e social das pessoas com deficiência em Portugal, entre 2015 e 2021, apesar da sua exposição a situações de exclusão social.