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Reportagem

"É uma ferida sempre aberta". Cinco anos depois da Covid, Paula ainda não fez o luto do sogro

11 mar, 2025 - 06:30 • André Rodrigues

Depois de ser internado, Gilberto nunca mais foi visto. Desapareceu num caixão fechado e o filho nunca pode despedir-se. "O mais violento era limitar a compaixão a um olhar", conta o padre Amaro Gonçalo Lopes. No final, a sociedade parece ter saído da pandemia pior. "Só daqui por 20 anos é que as pessoas vão falar mais facilmente disto", acredita o psicólogo Rui Devesa Ramos.

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Ouça a reportagem: Cinco anos depois da Covid, há marcas que perduram na saúde mental, no ensino e no mundo do trabalho

Naquela sexta-feira, 13 de março de 2020, António Costa anunciou ao país que o Governo tinha aprovado medidas extraordinárias para responder à epidemia da Covid-19. O país entrava em estado de alerta. Ninguém sabia por quanto tempo, mas a expetativa era de que durasse pouco.

Mal o país sabia que estava a entrar num longo período de vida suspensa, num novo normal.

Do alerta à emergência passaram poucos dias. Gradualmente, as escolas fecharam, os espaços comerciais encerraram, as pessoas passaram a trabalhar em casa, as visitas aos lares foram suspensas e foram impostos limites às concentrações de pessoas em locais públicos. Até 10 pessoas, no máximo. Funerais incluídos.

Foi o início de um tempo com rituais de despedida reduzidos ao mínimo, aceites pelas famílias num misto de revolta e de impotência. Numa solidão aterradora que nenhum olhar, nenhuma palavra, conseguiam aliviar. Ainda hoje, cinco anos volvidos, a onda de choque não passou.

Do que nós precisávamos mesmo era de um abraço, era de sentir o coração do outro perto do nosso”, desabafa Paula, que ainda hoje não consegue falar da morte e do funeral do sogro sem se emocionar.

É uma ferida sempre aberta”, diz em tom pausado, como se tentasse encontrar a melhor forma de sistematizar em palavras um sofrimento sem adjetivos adequados que o qualifiquem.

E continua: “Fui ao cemitério... não vimos o corpo”.

O sogro de Paula morreu por causa da Covid-19. A última vez que o viu foi através de uma videochamada, “que as enfermeiras faziam sempre".

Aconteceu tudo muito rápido. O sogro ficou infetado, mas, apesar de o seu quadro não ser grave, acabou por ser internado, porque estava sozinho em casa. "A minha sogra também apanhou a doença e teve de ir para o hospital... ele estava sozinho... foi uma espécie de internamento social", conta.

Só que, em poucos dias, o senhor Gilberto deixou de estar conversador. O estado de saúde deteriorou-se muito rapidamente. Chegado aos cuidados intensivos, os médicos foram preparando a família. “Disseram-nos que esperássemos o pior”. E o pior acabou mesmo por acontecer.

As regras sanitárias impunham que o cadáver fosse encerrado dentro de um saco. Sem se vestir, fechado num invólucro, metido dentro de uma urna que nunca foi aberta.

O senhor Gilberto, “que tanto gostava de ter toda a família de volta dele”, nunca mais foi visto. Desapareceu. “Era muito importante essa despedida”.


Marido ausente do funeral do pai: “Fiz videochamada e pedi a um senhor da funerária para filmar"

Paula é a expressão de um luto inconclusivo, a porta-voz da memória coletiva de uma família que, ainda hoje, lida com a violência de não ter feito o seu luto.

A Covid-19 apanhou toda a família: seis infetados, três internamentos — Paula incluída — e uma morte. “Curiosamente, da única pessoa que nunca pensámos que pudesse morrer de uma coisa destas… Eu não me lembro de alguma vez ter visto o meu sogro doente.”

A conversa com Paula é um constante andar para trás e para a frente na fita do tempo. Marcou-a a ausência do marido, que não pôde assistir ao funeral do próprio pai, porque estava infetado com o vírus, forçado ao isolamento.

Fiz videochamada e pedi a um senhor da funerária para filmar, porque estava mais perto da urna”, recorda.

No cemitério, Paula esteve ao lado da sogra. As duas abraçadas. E mais cerca de 10 pessoas. Não dava para mais. Todos estavam longe uns dos outros, longe da sepultura do familiar que foi a enterrar, dispersos na imensidão de um cemitério. Apenas ligados por olhares de tristeza e impotência.

Achei que aquilo não me estava a acontecer”, recorda, ainda traumatizada. Ainda a tentar encontrar um sentido para o sofrimento por que passou.

Nesse funeral, Amaro Gonçalo Ferreira Lopes, pároco da Senhora da Hora e de Guifões, presidiu à cerimónia. Foi ele quem ficou mais perto da urna.

Aconteceu várias vezes durante a pandemia: quando um carro fúnebre passou à porta da casa paroquial, no trajeto entre a capela mortuária e o cemitério da Senhora da Hora, sozinho, sem ninguém a acompanhar, mandou-o parar e fez “umas orações para aquela pessoa”; quando soube da morte de uma paroquiana que, mesmo em pandemia e sem celebrações presenciais, nunca deixou de contribuir com um euro no ofertório das missas, a que assistia ao vivo pelas redes sociais.

Quando revisita a história dos funerais que mais o marcaram, este sacerdote recorda que “o mais violento era limitar a compaixão a um olhar. E por isso é que era quase impossível não chorar”.

A crueza imposta pela Covid-19 mostrou que “não era apenas a finitude daqueles que estavam a morrer que se tornava clara, era também a nossa finitude, a morte já é o limite do limite. Nós estávamos muito perto desse limite do limite”.

Toda a literatura sobre o luto recomenda que os rituais sejam feitos, que a morte não seja um tabu e seja vivida em todas as suas expressões. Chorar é preciso, para que a dor faça o seu caminho, para que a desolação não se instale e para que as memórias possam ajudar.


"Não era apenas a finitude daqueles que estavam a morrer que se tornava clara… era também a nossa finitude", recorda o padre Amaro Gonçalo

Na solidão dos dias de quem perdeu entes queridos em tempo de pandemia, o padre Amaro Gonçalo recomenda “que as pessoas vejam os seus álbuns de fotografias, que falem para elas e, onde haja sepultura, que possam visitá-la”.

É a forma de trazer quem partiu para o meio daqueles que os amam. Paula gosta de o fazer.

“Muitas vezes, dizemos que os miúdos estão a fazer as mesmas coisas que o avô fazia, ou fazem manobras no futebol que ele lhes ensinou. Houve, até, uma altura em que o meu sobrinho mais velho estava a cortar a relva, não estava a conseguir, e disse ‘ó Gilberto, vê lá se me ajudas’”.

São essas memórias que devolvem a presença e ajudam a andar em frente. A conversa com Paula não se alonga. É evidente o esforço para conter as emoções.

O trauma de um luto inacabado agravou uma depressão ansiosa. Paula é professora de Geografia e está de baixa, a ver se consegue voltar às aulas.

O que a move? “A esperança e a fé”. Sem elas, diz que não teria conseguido sobreviver àquela crise.

Só lhe falta falar de tudo isto sem chorar. Mas quando? “Não sei, porque foi tudo bastante traumatizante… vivemos tudo com uma enorme intensidade e num curto espaço de tempo, sem esperar por aquele desfecho.”

No luto com trauma, o silêncio é uma defesa. O padre Amaro Gonçalo admite mesmo que algumas pessoas nunca conseguirão falar sobre estas perdas". Também não sabe se encontrariam "ouvidos capazes": "uma conversa sobre isto exige uma escuta ativa, uma escuta vulnerável e não é fácil encontrar ouvidores”.

Paula concorda, se bem que não se importava que algumas pessoas até falassem com ela sobre o assunto. “Mas, normalmente, prefiro que não falem.”

Ficou, no entanto, uma lição importante: “Tudo isto fez-nos ver que a vida tem limites e que temos de saber andar para a frente, sem adiar para amanhã uma experiência, um telefonema. A vida é muito curta e pode ser-nos roubada a qualquer momento”.

O luto atípico pode, também, ter manifestações criativas: “As minhas cunhadas, que nunca iam a um cemitério, agora vão várias vezes". E o marido, que nem ligava muito a isso, "compra equipamentos do Grupo Desportivo de Chaves e fez-se sócio do clube”, para homenagear o pai transmontano.


"As pessoas só irão falar mais facilmente disto daqui por 20 anos", acredita o psicólogo Rui Devesa Ramos

De acordo com um estudo do Instituto Ricardo Jorge, entre 22 de maio e 14 de agosto de 2020, pelo menos um terço dos inquiridos de uma observação sobre o estado da saúde mental diz ter sentido algum tipo de sofrimento psicológico. Mais de um quarto sentiu problemas como ansiedade moderada a grave, stress pós-traumático, depressão e burnout

A mesma observação conclui que os efeitos se agravaram quando as pessoas passavam por uma quarentena obrigatória. Nesses casos, 72% dos inquiridos relatam sofrimento psicológico; 56% apresentaram sintomas depressivos moderados a graves; 36% manifestaram ansiedade moderada a grave; 43% sofreram stress pós-traumático.

Em janeiro de 2022, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto publicou os resultados de um estudo realizado entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021.

A principal conclusão foi de que 26,9% dos inquiridos apresentaram sintomas de ansiedade. E 73,3% relacionaram o agravamento dos sintomas de depressão e de ansiedade com a pandemia.

Já em fevereiro deste ano, o relatório Mental State of the World in 2024, da Global Mind Project, referia que o "impacto da pandemia na saúde mental e no bem-estar permanece sem sinais de recuperação".

Estima-se que 63% da população mundial se sinta em estado de manutenção das necessidades básicas em termos de saúde mental e de bem-estar; 37% sentem-se a progredir e a prosperar. Mas 28% sente-se num estado permanente de angústia.

O mesmo estudo conclui que, "enquanto os adultos mais velhos estão bem, cerca de metade dos adultos mais jovens está a passar por dificuldades ou angústias funcionalmente debilitantes".

Na faixa etária dos 18 aos 34 anos, há mais 25% de tendência para novos sintomas psicológicos, como "pensamentos indesejados, estranhos e obsessivos, bem como uma sensação de distanciamento da realidade".

Sintomatologia que, de acordo com os especialistas, é agravada pela desconexão social, pelos smartphones, pela comida ultra processada e pela exposição a químicos.

Mas, cinco anos depois, ainda está por perceber muito do que aconteceu à sociedade durante a pandemia. Os dados chegam a ser, por vezes contraditórios.

Em março do ano passado, um artigo da revista Nature advertia que, "devido à falta de dados sistemáticos anteriores à pandemia, ainda não é claro de que forma a saúde psicológica dos indivíduos foi afetada por este acontecimento".

Esta análise contradiz um outro estudo que apontava para um "efeito global positivo da pandemia de Covid-19 na saúde mental".

Ou seja, a leitura é dinâmica com o tempo. E ainda há quem tenha grande dificuldade em falar sobre esse tempo com a clareza necessária.

Rui Devesa Ramos, psicólogo especialista em terapia do luto, diz que a explicação para essa circunstância já ocorreu no passado, quando o mundo ainda digeria a onda de devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial.

“No Japão, o desastre de Hiroshima e Nagasaki só ganhou espaço na opinião pública na década de 1970, assim como, na Alemanha, a Segunda Guerra Mundial era um assunto proibido nas décadas de 1950 e 1960.”

Extrapolando estes exemplos da história para os seus pacientes, este especialista diz que, “enquanto uma pessoa está preocupada com a recuperação de um evento catastrófico, não quer falar sobre ele”.

Os sentimentos associados ao luto, sobretudo em tempo de pandemia, oscilam algures entre a revolta, a impotência e a culpa.

“Nós tivemos casos de pessoas que foram internadas em contexto hospitalar e acabaram por falecer em período pandémico. Os familiares não puderam visitá-los e só queriam saber se as suas pessoas estavam bem, porque tinham-nas deixado no hospital. Tem muito a ver com sensação de culpa pelo abandono, de pena e de muita impotência”, recorda.

Eis a explicação para o tabu: “Ativar esse período na memória das pessoas é muito desconfortável”. Mas não falar “também não é bom” e Rui Devesa Ramos acredita que, por cada reportagem que seja emitida sobre esse período da pandemia, “a visão das pessoas afetadas torna-se mais integrada e mais vivida”.

Mas o psicólogo não tem ilusões: “as pessoas só irão falar mais facilmente disto daqui por 20 anos".


Sair melhor da pandemia? “É estranho, mas não se concretizou… é uma falha”, considera o psicólogo

Rui Devesa Ramos considera que, apesar de silenciosos, os efeitos de uma crise como a pandemia da Covid-19 poderiam ter dado o clique para uma mudança da sociedade para melhor.

Em geral, este psicoterapeuta é da opinião de que a sociedade terá mesmo perdido uma oportunidade para sair da crise melhor do que quando entrou nela: “É estranho, mas a expetativa de que íamos sair melhor não se concretizou”.

Andando cinco anos para trás, Rui Devesa Ramos recorda o tempo das “grandes experiências de estarmos unidos, de nos ajudarmos uns aos outros, de termos redes de vizinhança que ajudavam os mais vulneráveis, como os idosos”.

Mas a pandemia passou. “Ainda bem, por um lado, mas agora cada um voltou a meter-se na sua vida e ninguém quer saber do outro”.

“É uma falha”, lamenta. As crises ativam o lado emocional e mais compassivo do ser humano e “a pandemia veio dizer-nos que, enquanto humanos, precisamos uns dos outros”.

Por isso é que Rui Devesa Ramos admite que, “num certo sentido, se calhar, era bom que estivéssemos sempre em pandemia, para termos um maior sentimento de solidariedade”.

Mas o especialista também testemunhou casos em que a adversidade do luto em pandemia permitiu avanços — que nunca teriam ocorrido se a crise não tivesse acontecido.

“Vamos a um cenário muito típico: homem de 75 anos, vivia com a esposa. A esposa morre e os filhos já estão fora de casa. O que era comum era voltar a sair de casa, conviver, estar com os seus amigos e fazer o seu luto.” Em pandemia, “esse homem não teve essa estratégia" e isso forçou-o a abrir-se de outra forma. "Acabou por deprimir, ficou mais isolado, procurou ajuda clínica, foi integrado num grupo de luto e começou a partilhar sentimentos. Isto não é nada comum. Este homem ficou mais rico”, remata.

Até 10 de março de 2025, a Covid-19 matou 29.157 pessoas em Portugal, sendo que os primeiros meses de 2021 foram os que registaram o maior número de óbitos.

No entanto, as mortes por doenças respiratórias, para além da Covid-19, diminuíram ligeiramente durante o período pandémico.

De acordo com o Observatório Nacional de Doenças Respiratórias, as mortes por doenças respiratórias diminuíram significativamente a partir de 2019.

No relatório que observa as percentagens de óbitos por doença respiratória não Covid entre 2013 e 2021, "a diminuição da mortalidade por pneumonias, muito significativa, pode apontar como causas a diminuição da ocorrência de gripe em 2021 e a transferência de mortalidade para a Covid-19”, sendo que o uso da máscara e os sucessivos confinamentos também ajudaram a reduzir a circulação gripal.

Mas a ausência de assistência a outras doenças no período da pandemia fez aumentar a mortalidade. No caso das doenças oncológicas, as mortes por cancro no pulmão aumentaram entre 2020 e 2021. Mas foi em 2019, ainda antes da pandemia, que se verificou o número mais elevado de óbitos por esta doença.

De acordo com a OCDE, em termos globais, a população que não teve ou não procurou cuidados médicos atingiu o valor mais baixo da década em 2020 (1,6%). Nos anos seguintes, aumentou: 2,3% em 2021, 2,9% em 2022 e 2,8% em 2023. Portugal é o país em pior posição no conjunto dos 27 estados-membros da União Europeia.

Quanto à esperança média de vida, após uma ligeira queda, Portugal recuperou e atingiu mesmo o segundo valor mais alto em 2022.

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