Reportagem Renascença

Do “hiperfoco da Ritalina” ao estímulo dos nootrópicos. “Alunos andam todos à procura de uma pastilha” para melhorar notas

24 jun, 2025 - 07:00 • Miguel Marques Ribeiro

Estudos indicam que há uma percentagem crescente de estudantes universitários que se estão a medicar. Alunos falam de “stress” constante, enquanto uma especialista alerta para os perigos da toma de medicamentos sem efetivo acompanhamento médico. A Associação Nacional de Estudantes de Psicologia pede a alocação de mais recursos de apoio à saúde mental nas universidades.

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Do “hiperfoco da Ritalina” ao estímulo dos nootrópicos. “Alunos andam todos à procura de uma pastilha” para melhorar notas
Oiça a reportagem. Um em cada quatro alunos do ensino superior toma medicação psiquiátrica, revela um estudo de 2024 da ANEP. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR

“Sem a Ritalina não seria a mesma coisa”, reconhece Vasco. Este estudante de Educação Social foi diagnosticado com a “famosa PHDA”, a Perturbação de hiperatividade com défice de atenção, quando estava no 6.º ano de escolaridade.

O médico aconselhou o tratamento com o metilfenidato, o composto químico da Ritalina, e os resultados foram imediatos: “Aquilo era excelente. As notas subiram imenso”, recorda o estudante universitário.

Com o passar do tempo, porém, sentiu que a dose diária do fármaco moldava também a sua personalidade. “Com a Ritalina no meu corpo já não me sentia igual”, admite. O adolescente que se “mexia, que gostava de brincar, de falar” deu lugar a alguém “muito mais calmo” e “inibido” que “ficava muito mais irrequieto depois de o efeito passar e um bocado mais irritado por isso”.

No 9.º ano conseguiu convencer os pais a deixar de se medicar, mas quando chegou à faculdade e percebeu que o ensino ia ser “muito mais exigente que o básico e o secundário” recuperou o consumo da “antiga amiga Ritalina”, com a supervisão do seu médico.

"Aquilo era excelente. As notas subiram imenso" Vasco Vilela, estudante de Educação Social

Hoje toma o comprimido para melhorar os resultados académicos, embora com algumas restrições que impõe a si próprio.

“Eu não tomo todos os dias. Só tomo mesmo em contextos relativos à universidade. Durante os exames é quase sempre, durante os trabalhos, as avaliações finais de semestres é sempre dois, três, quatro dias seguidos que eu estou a tomar”, explica o universitário.

Os benefícios residem sobretudo na concentração: “Sei que só vou estar com a cabeça nos estudos e não vou pensar em mais nada. Por isso, sim. Ajuda-me bastante a nível dos estudos”.

Quando a faculdade piora a saúde mental

Marta, nome fictício de uma aluna de Psicologia do Grande Porto, também tem lidado com problemas de saúde mental. “Fui diagnosticada com [transtorno de] ansiedade aos 18 anos”.

A estudante relaciona, em parte, os seus problemas de saúde com as medidas de combate à pandemia. “Sou daquela fornada da Covid- 19, que teve aulas em casa e de facto foi uma fase muito complicada para os estudantes, porque tivemos que superar desafios, barreiras, para as quais ninguém estava preparado”. Foi “uma fase de choque”, resume.

No entanto, “a carga gigante” de trabalho que encontrou no ensino superior, acabou por ser o principal factor de deterioração da sua saúde. “Traduziu-se no aumento da minha ansiedade ao longo do tempo”, garante.

Durante anos, tentou resolver a situação com recurso à psicoterapia, mas durante o estágio académico acabou mesmo por quebrar, por cair naquilo que designa de “buraco negro”. “Comecei logo a dormir mal, mas de uma forma muito extrema e nem conseguia estar preparada, digamos, para estagiar”, recorda.

“Comecei logo a dormir mal, mas de uma forma muito extrema" — Marta [nome fictício], estudante de Psicologia

Desde então, pediu o encaminhamento para um psiquiatra e começou a ser medicada com Inderal, um fármaco anti-hipertensivo. A tentativa de realizar de novo o estágio académico exigiu o recurso a uma “medicação adicional” com antidepressivos.

“Sabia que ia entrar numa fase um bocadinho mais complicada, que ia passar por desafios que não eram novos para mim, no sentido de que eu já conhecia aquele desafio, mas que até agora não tinha conseguido ultrapassar. Expus isso ao meu psiquiatra. E de facto funcionou e eu consegui superar finalmente aquilo que durante anos não consegui”, afirma a universitária.

'Doping' intelectual é “típico da nova geração”

Vasco e Marta são apenas dois casos, entre muitos outros, de estudantes que tomam comprimidos para conseguir responder às tarefas académicas.

No seu caso, apresentam condições de saúde pré-existentes, mas os estudos parecem indicar que o consumo de medicamentos está a aumentar entre os estudantes de forma transversal, mesmo entre os jovens saudáveis.

Um estudo de 2024 da Associação Nacional de Estudantes de Psicologia (ANEP), feito em parceria com a Ordem dos Psicólogos e o Conselho Nacional da Juventude, revelou que um em cada quatro alunos do ensino superior toma medicação psiquiátrica.

O inquérito realizado a 1174 estudantes de 53 instituições de ensino, indicou ainda que dois quintos dos participantes apresentavam sintomas psicológicos.

“Há sempre uma grande procura atualmente de tomar qualquer coisa" — Maria Augusta Coelho, professora e investigadora da FMUP

Uma pesquisa mais recente, elaborada pelo Observatório dos Ambientes de Aprendizagem Saudáveis e Participação Juvenil, concluiu que cerca de 60% por cento dos universitários estão em burnout e dois em cada cinco admitem tomar medicamentos psicotrópicos, isto é, fármacos que atuam a nível cerebral.

A professora de Farmacologia na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Maria Augusta Coelho, admite que podemos estar perante um problema geracional.

“Há sempre uma grande procura atualmente de tomar qualquer coisa, numa expectativa de melhorar os resultados académicos. E isso é uma coisa que eu acho que até é muito típico da nova geração”, declara.

A investigadora considera que se pode estar a instalar a cultura de “tomar uma pastilha para resolver rápido” todo o tipo de problemas, numa espécie de ‘doping intelectual’ generalizado. “Os alunos andam todos muito à procura disso”, afirma.

Nootrópicos: os dois mundos do universo da estimulação cerebral

O curso de Medicina é um dos mais longos e difíceis no país. Na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, colada ao Hospital São João, o mês de junho é invariavelmente um dos mais exigentes para os alunos.

“Até agora tem corrido bem, só que a época de exames é sempre um problema para nós. Precisamos de estudar um montão de cenas”, admite Raúl.

"A época de exames é sempre um problema para nós" - Raúl, estudante do 1.º ano de Medicina na FMUP

É um dos muitos estudantes espalhados pelos corredores da instituição ou concentrado junto a uma das portas de entrada dos auditórios, pronto para realizar mais uma prova.

Longe da azáfama do edifício principal, já em pleno espaço hospitalar encontramos na sala da Associação de Estudantes, um grupo de finalistas em plena pausa do estágio clínico. Perguntamos se usam ou já usaram medicamentação para estudar.

“Eu nunca usei nenhum fármaco para aumentar a rentabilidade”, garante Maria. “No máximo, às vezes, uns multivitamínicos, que são mais placebo do que outra coisa. Mas às vezes sinto necessidade de tomar alguma coisa para dormir, para conseguir descansar, porque se não, não consigo, mas é o máximo”, confessa a jovem.

Sentada em frente, do outro lado da mesa, uma colega contrapõe que “há muitas pessoas que recorrem tanto a fármacos para ajudar a concentrar como a fármacos como calmantes, ansiolíticos, para reduzir a ansiedade em momentos de exames, de apresentações”.

O grupo concorda e Maria acaba por admitir: “Sim, acho que tem vindo a aumentar o número de pessoas que usa esse tipo de medicamentos, que para conseguir atingir os objetivos sentem a necessidade de procurar uma ajuda extra, mas com prescrição médica”.

Para Maria Augusta Coelho, há de facto “uma procura de substâncias que são ativadores da função cerebral, numa tentativa de melhorar a capacidade académica”, o que levou à cunhagem, nas últimas décadas, do termo ‘nootrópicos’, para designar todo o tipo de produtos capazes de melhorar a função cognitiva.

"Estou ali quatro horas, cinco horas, às vezes quase sem pestanejar" - Vasco Vilela, estudante de Educação Social

Reúnem “dois mundos”, explica a investigadora: o dos chamados suplementos naturais de venda livre (como Ómega-3, vitaminas do complexo B ou cafeína) e o dos medicamentos (como o metilfenidato (Ritalina) ou modafinil).

Medicamentos seguros? “Hiperfoco” vs “arritmias graves”

E será que funciona? Vasco Vilela não tem dúvidas em afirmar que sim. “O efeito positivo para os estudos é bom, porque ajuda a concentrar”. As distrações típicas do PHDA desaparecem e aumenta a capacidade para produzir os resultados pretendidos. “Quando tomo a Ritalina estou ali quatro horas, cinco horas, às vezes quase sem pestanejar, não penso em mais nada a não ser no estudo”, explica o estudante do 2.º ano de Educação Social. “Nem vou ao telemóvel”.

O princípio de atuação, em termos farmacológicos, é aparentemente simples. Medicamentos como a Ritalina ou outros “que estão aprovados para o défice de atenção e hiperatividade ou outras doenças do sistema nervoso central e que são derivados das anfetaminas, são de facto estimulantes” da atividade cerebral, explica Maria Augusta Coelho.

Contribuem para “aumentar o tempo que uma pessoa consegue estar concentrada”, mas “porque diminuem a sensação de fadiga”.

Ou seja, de alguma forma ‘enganam’ o cérebro: “o nosso corpo não fica tão atento àquilo que é estar cansado e, portanto, o estudante, neste caso, consegue estar mais tempo a estudar. Mas isso não significa que tenha melhores resultados académicos”, sublinha a investigadora, nomeadamente se estivermos a falar de jovens saudáveis.

Há mais energia, mais concentração, é certo, “a pessoa até pode ficar uma noite inteira a estudar quando se não tivesse tomado, não ficava”, analisa a professora de Farmacologia. O problema são os efeitos secundários que daí podem resultar.

Desde logo, o efeito oposto que “provocam depois de desaparecerem [os compostos] do nosso corpo” e que é comum a todos os estimulantes: “A pessoa fica mais cansada, mais triste ou mais parada do que estava previamente.”

Mas há outro tipo de problemas que geram “inquietação” entre a comunidade médica. Compostos como o metilfenidato, que foi recentmente indicado como o mais prescrito entre os 10 e os 14 anos, se é verdade que “são estimulantes para o cérebro, também são estimulantes para a função cardiovascular e, por exemplo, aumentam o ritmo cardíaco, aumentam a tensão arterial. Há pessoas que têm arritmias graves”, alerta a especialista.

Maria Augusta Coelho alerta ainda para outro tipo de problemas de maior gravidade: “Têm havido acidentes cardiovasculares com a utilização destes compostos”. O facto de o cérebro ficar mais alerta pode ter, também, outro tipo de consequências, como “perder o apetite de uma forma intensa, o que em alguns casos aumenta o risco de convulsões. Algumas pessoas começam a desenvolver perturbações do sono graves”, alerta.

"A evidência científica da sua eficácia é muito baixa.” — Maria Augusta Coelho, FMUP

Há, portanto, a assinalar um “impacto na saúde mental do estudante” e tudo isso sem que haja, no seu entender, uma relação cientificamente comprovado entre a toma dos comprimidos e a melhoria da performance académica.

“Potencialmente têm efeitos adversos, alguns deles de alguma gravidade — e o que se sabe é que, apesar de tudo, a evidência científica da sua eficácia é muito baixa.”

Possível porta de entrada para dependências

Vasco reconhece que existem impactos indesejados na toma da Ritalina. O “hiperfoco” mental tem contrapartidas na diminuição das interações sociais: “A nível de competências sociais, seja a interagir com outras pessoas, colegas, professores, não sinto aquela faceta humana, a empatia pelas pessoas, pelas coisas. Fico um bocado indiferente, mas com a cabeça a funcionar mil vezes melhor. Ou seja, dá-me o intelectual no seu expoente máximo, mas tira-me todas as competências sociais”.

O estudante recusa, porém, que o fármaco provoque dependência. “Zero, zero. Não tem qualquer efeito”. Depois de um determinado período a tomar o medicamento, pode-se interromper sem qualquer problema. “Não me dá, digamos, ressaca”, assegura, embora admita que, em situações pontuais, toma acima do valor diário recomendado.

A professora Maria Augusta Coelho aponta, no entanto, o perigo de o consumo deste fármacos poder ser o “gatilho para o início de uma perturbação do uso de substâncias”.

“É assim que também começam as dependências” — Maria Augusta Coelho, FMUP

“É assim que também começam as dependências”, alerta, sublinhando que “não é legal prescrever estes medicamentos” quando está apenas em causa a melhoria de resultados académicos.

Preocupada, a professora questiona a facilidade de acesso a estas substâncias, quando as mesmas, sobretudo no caso do metilfenidato ou modafinil, estão sujeitas a receita médica: “Há alguma coisa que não está correta do ponto de vista ético. Como é que as pessoas compram ou utilizam esses medicamentos? Compram como? Utilizam os medicamentos de alguém, de algum familiar? É algum médico que prescreve? Isso é totalmente errado e eticamente muito pouco adequado”.

O estado permanente de stress

O problema, porém, não pode ser visto apenas do lado dos estudantes. “Alguma coisa está mal do lado da academia”, defende Maria Augusta Coelho.

A investigadora critica o enfoque dos modelos de ensino nos resultados académicos e na obtenção de notas, o que gera uma pressão acrescida sobre os estudantes, conduzindo à deterioração da sua saúde mental.

Uma ideia acompanhada por Carolina Paiva, da Associação Nacional de Estudantes de Psicologia: “Se pudesse mudar alguma coisa diminuiria o enfoque da avaliação, porque esse é o maior problema do ensino superior na atualidade. A nota final é altamente dependente de um só momento”.

Carolina Paiva e Tiago Taliscas são dois dos autores do Estudo Sobre a Saúde Mental nas IES [Instituições de Ensino Superior], realizado em 2024, pela ANEP.

“Estamos sempre em estado de stress" — Maria, aluna do 6.º ano de Medicina

Segundo Tiago Taliscas, tal como está pensado, o sistema de avaliação eleva a níveis máximos a pressão num curto período de tempo, durante o qual há “uma carga de trabalho muito grande e isso depois leva a que haja menos hábitos de saúde, alimentação, sono. É muito comum nestas alturas as pessoas deixarem de dormir as horas normais”, sublinha, exagerando em hábitos pouco saudáveis, como o tabaco e o café.

Prejudicada fica também a relação com a família e os amigos. “Estamos sempre em estado de stress, independentemente daquilo que estamos a fazer”, lamenta Maria, finalista do curso de Medicina na FMUP.

“Quando estamos com a família, sentimos-nos culpados por não estar a estudar e quando estamos a estudar, sentimo-nos culpados por não estar com a família”, reforça a estudante.

Mas na raíz do problema está também a falta de oferta de serviços de saúde mental.

“Os sistemas de ensino não têm os recursos de apoio suficientes para fazer face às exigências que impõem aos alunos”, afirma Carolina Paiva. Essa foi uma das conclusões do estudo realizado pela ANEP.

Tiago Taliscas refere mesmo a existência de “filas de espera muito grandes, acessos difíceis”, horários incompatíveis. Há até um caso que foi identificado pela ANEP de uma Instituição de Ensino Superior que dispunha de dois psicólogos para 5 mil alunos.

Marta, que tem de lidar com um transtorno de ansiedade enquanto procura terminar os estudos de psicologia, teve de recorrer a um gabinete externo, pago do seu próprio bolso, devido à ausência de serviços de apoio psicológico no seu estabelecimento de ensino.

Medida do cheque-psicólogo “não está a ter os resultados esperados” — Carolina Paiva, ANEP

Todos estes obstáculos, argumentam os co-autores do Estudo da ANEP, “levam a que as pessoas procurem outras alternativas e muitas vezes alternativas mais rápidas. E a medicação muitas vezes apresenta-se como sendo uma”.

O cheque-psicólogo foi pensado precisamente para combater as insuficiências da rede de cuidados de saúde mental das IES. A medida, aprovada pelo primeiro governo liderado por Luís Montenegro atribuiu pelo menos 2.355 cheques, de um total previsto de 100 mil.

Os representantes da ANEP afirmam, porém, que a medida que está a ser implementada com o apoio da Ordem dos Psicólogos, “não está a ter os resultados esperados”.

“As pessoas aderem, ou seja, pedem o cheque mas depois nem aparecem à primeira consulta”, ou seja, estão a ocorrer “dropouts antes de começar sequer o processo terapêutico”, afirma Carolina Paiva.

Saúde mental? Método seguro em três palavras

Reconhecendo todas estas insuficiências, o que podem ainda assim fazer os estudantes, para manter o equilíbrio psicológico em períodos de maior carga de trabalho?

“Que tenham alguma coisa fora da faculdade, um hobbie, e não vivam apenas para a faculdade”, sugere Carolina Paiva. E o ideal, mesmo, é que esse hobbie esteja relacionado com o exercício físico. “Existe imensa literatura que aponta na direção de o exercício físico promover melhor saúde mental em diversos indicadores”, declara a estudante de psicologia.

"Não vivam apenas para a faculdade" — Carolina Paiva, ANEP

A professora Maria Augusta Coelho sintetiza a sua proposta em três palavras: “Sono, dieta, exercício”.

“Se as pessoas quisessem realmente ter melhor aprendizagem, melhores resultados académicos deviam atuar muito nestas três frentes”, resume a investigadora da FMUP.

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