28 set, 2025 - 08:15 • Liliana Carona
António Carlos tinha acabado de entrar para os bombeiros, Sérgio Santos interrompeu a lua de mel para ajudar as vítimas do desastre ferroviário de Alcafache. Quatro décadas depois, as memórias e as marcas psicológicas daquele dia continuam gravadas na memória dos operacionais destacados para um dos piores acidentes com comboios em Portugal.
Os bombeiros da corporação de Nelas ainda têm guardadas imagens em vídeo do que viram e ouviram naquela tarde do dia 11 de setembro de 1985, registos de uma tragédia pela qual ninguém devia passar.
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António Carlos tinha apenas 20 anos e acabado de fazer o exame para bombeiro, quando foi chamado ao acidente de Alcafache.
De vez em quando ainda sonho com isso. E ainda me vêm certas imagens
“Desde a primeira vez que começou a tocar a sirene, aos arranques, fardei-me, entrámos no carro. Quando chegámos ao local do acidente, deparámo-nos com uma coisa mesmo fora do comum. Eu nunca imaginava enfrentar uma coisa daquelas. Carruagens a arder, todas as pessoas em alto stress e depois quando entrámos nas carruagens para tentar tirar algumas pessoas que ainda estivessem vivas, percebemos que elas acabaram por se matar umas às outras a tentar fugir. Basta que muitos ficaram agarrados com as mãos nos corrimãos das carruagens e nós tivemos de andar a forçar as mãos desses corpos, para os poder tirar. É uma coisa que eu tenho na minha memória para o resto da minha vida”, descreve o antigo bombeiro, de 60 anos, sobre a violência do que viu, admitindo que ainda tem pesadelos com o acidente ferroviário na Linha da Beira Alta.
António Carlos lamenta, enquanto bombeiro, não ter tido apoio psicológico. “De vez em quando ainda sonho com isso. E ainda me vêm certas imagens, imagens que uma pessoa, pronto, engole em seco, fico meio triste por ver aquilo, mas temos de seguir a nossa vida. Nunca tive apoio psicológico. O nosso apoio psicológico foi a nossa mentalidade, que tivemos de seguir com a nossa vida para a frente. Nunca tivemos apoio de ninguém. Andámos muitos meses com aquele cheiro no nariz, sem conseguir comer carne”, recorda, emocionado.
Também o então bombeiro Sérgio Santos, de 64 anos, acorda de noite, sobressaltado com o que viu aos 24 anos. Recorda que foi chamado quando estava de lua de mel, interrompida para socorrer os feridos do acidente ferroviário de Alcafache.
“Andei lá quatro dias e quando lá cheguei, dava vontade de fugir, mas pronto, somos bombeiros, arriscámos, fizemos tudo o possível, ouvia-se tudo, pessoas já a gritarem, e a consciência de que umas podíamos salvar, outras não”, diz com a voz embargada.
“As carruagens a derreterem e muita gente não pôde salvar-se. Pessoas a tentarem sair das janelas e ficavam penduradas nas janelas. E lembro-me de uma carrinha de um feirante, cheia de lençóis, o homem deixou lá quase a carrinha toda de lençóis e nós durante a madrugada a embrulharmos os corpos e os restos de corpos”, conta.
Sérgio relembra que “na altura não havia nada de apoio psicológico”. “Tínhamos de moer cá dentro. Mas ainda hoje me custa um bocadito. Eu algum dia imaginava pegar na metade de um corpo da cintura para cima e todo queimado, sem os órgãos lá dentro. Estão sempre vivas na minha memória essas imagens, ainda ontem à noite, pensei nisso, mas engulo em seco”, desabafa o bombeiro.
A 11 de setembro de 1985 chocaram frontalmente na (...)
Os ruídos, os gritos e os cheiros que ainda hoje descrevem ao pormenor - os Bombeiros de Nelas - denunciam que o trauma permanece vivo, explica Ângela Maia, 63 anos, professora associada com agregação na Escola de Psicologia da Universidade de Minho e investigadora do Centro de Investigação em Psicologia.
Terminou o curso em 1985 e foi das primeiras a estudar e a preocupar-se em caracterizar e descrever o impacto na saúde física e mental do exercício desta profissão.
“Estes depoimentos dos bombeiros mostram como a tragédia humana pode ser verdadeiramente trágica, pelo número de pessoas envolvidas, porque naquele caso havia homens, mulheres, muitas crianças, até foi criada uma vala comum porque não foi possível identificar todos os cadáveres e, portanto, tem mesmo uma dimensão com grande potencial para impacto psicológico, quer para os jornalistas, quer para os profissionais da saúde e, obviamente, os bombeiros que fizeram esta emergência pré-hospitalar e que tiveram de lidar com os cadáveres, com o resto de corpos, de facto, com partes de corpos”, analisa.
Para a investigadora, o aniversário marcante dos 40 anos do acidente de Alcafache reativa as memórias do passado “e podem aumentar os sintomas, nomeadamente o stress-pós-traumático em alguns momentos, porque a dimensão da tragédia foi muito elevada”, assume.
“Aquela dimensão trágica é muito rara, mesmo muito rara. E naquela altura não havia a consciência de que os profissionais como os bombeiros também são vítimas, não vítimas diretas, porque vítimas diretas são as pessoas que sofreram o acidente, mas são vítimas, são vítimas que têm uma exposição ao sofrimento humano, à morte, porque têm de fazer tarefas como, por exemplo, manipulação de cadáveres. E está mais que estudado, tem muito impacto e é um dos fatores no risco para desenvolvimento de stress pós-traumático”, explica Ângela Maia.
“Essa consciência não existia, não existiu durante muitos anos. Eu digo sempre, misturam-se fardas e masculinidade e a crença de que, enfim, se é sempre forte e não se pode mostrar vulnerabilidade. E, portanto, de facto, estas pessoas não só passaram por esta situação, como não tiveram o apoio que provavelmente teriam agora, porque agora há mais consciência de que pode ocorrer um impacto psicológico muito grande e por isso é oferecido o apoio”, adverte, remetendo para a Associação Nacional de Bombeiros que tem um conjunto de voluntários (psicólogos e voluntários), que normalmente dão apoio psicossocial a bombeiros.
A psicóloga e investigadora espera que os 40 anos do acidente ferroviário de Alcafache sirvam para perceber o silêncio em torno da saúde mental destes profissionais.
“Nunca esquecer que os profissionais também sofrem. Eu acabei o curso em 1985 e uma coisa que lhe posso dizer é que a perturbação de stress pós-traumático não existia em Portugal. As pessoas não voltam a ser as mesmas. Não é extemporâneo, estes bombeiros necessitarem e requererem apoio ainda hoje”, defende Ângela Maia.